Planejamento sucessório como instrumento de prevenção de litígios
26 de agosto de 2018, 8h00
O planejamento sucessório advém, então, como uma necessidade premente nesse contexto, para prevenir ou minimizar litígios futuros e praticamente certos. As diversas ferramentas utilizadas nas operações de planejamento patrimonial e familiar em geral são capazes de fornecer respostas mais adequadas aos conflitos entre herdeiros do que as do Direito de Família e das Sucessões. A constituição de uma holding familiar, por exemplo, permite que se atribuam regras convivenciais mínimas, à medida em que os herdeiros são submetidos ao ambiente societário, estando obrigados a se comportar não mais como parentes, mas como sócios, respeitando as cláusulas de um contrato social e jungidos a resolverem seus conflitos pelas balizas do Direito Empresarial, nas quais estão previstos e disciplinados os procedimentos e as técnicas de composição de conflitos (autocomposição e heterocomposição).
Trata-se de “instrumento jurídico multidisciplinar” por envolver diversas áreas do Direito, que interagem para garantir o máximo de eficiência, agilidade e segurança na transferência do patrimônio de uma pessoa após a sua morte. É claro que se relaciona principalmente com o Direito das Sucessões. Mas não é só isso. Exige um diálogo com o Direito de Família, das Obrigações, Contratos, Empresarial e com o Direito Tributário.
É corrente a afirmação de que o planejamento sucessório pretende evitar disputas entre herdeiros, na maioria das vezes muito próximos, de maneira que é também uma afirmação do valor da família. Nessa perspectiva, Gladson Mamede e Eduarda Cotta Mamede chegam a dizer que “o planejamento sucessório, nesses casos, é um ato de amor”, de maneira que a “definição antecipada dos procedimentos de transferência da titularidade de bens, quando bem executada, cria um ambiente favorável à harmonia”[1].
Não obstante, o planejamento sucessório não se resume a essa função. Na verdade, o planejamento sucessório ganha destaque e importância atualmente, justamente porque se insere em um contexto muito mais amplo, visando atender a uma nova realidade social em que os institutos do Direito das Sucessões, isoladamente, não alcançam plenamente as aspirações sociais.
Jorge Duarte Pinheiro salienta que a matriz do Direito das Sucessões é ainda pré-industrial, própria de uma época em que o bem imóvel era o tipo mais significativo de riqueza. Todavia, hoje em dia, o tipo de riqueza que avulta é aquele que se constitui graças ao rendimento do trabalho[2].
Basta pensar na situação em que está presente uma complexidade de bens a transmitir, como uma empresa, ou mesmo uma complexa situação familiar do falecido, envolvendo famílias reconstituídas com filhos de outros matrimônios[3].
A dificuldade se coloca quer sob o prisma dos bens a transmitir, quer sob o prisma da designação dos herdeiros. De um lado, há uma gama de bens que serão transmitidos, não se esgotando na riqueza imobiliária, e de outro existe uma complexidade evidente nas relações familiares, diante da superação do monopólio da família matrimonial.
Emerge daí a necessidade de novos instrumentos ao alcance do planejamento sucessório. O negócio jurídico clássico e basilar do planejamento é certamente o testamento. Mas que pode não atender, de modo adequado, a diversas demandas do falecido e aspirações dos herdeiros, inclusive por se tratar de negócio jurídico unilateral. Por conta disso, no bojo do testamento há necessidade de se compor alternativas mais elaboradas, como é caso da distribuição da herança em legados, ao mesmo tempo em que é possível se pensar em outros negócios jurídicos, como doação, partilha em vida e usufruto, além dos instrumentos financeiros (trusts, planos de previdência complementar, seguros de vida etc).
Habitual e frequente, ainda, o recurso aos instrumentos societários (constituição de sociedade de participação ou holding, alterações em estatutos sociais, acordos de sócio, pactos parassociais etc).
É claro que em certas ocasiões todo esse ferramental deve ser utilizado concomitantemente, de modo a atender às expectativas do autor da herança e dos herdeiros. Por isso é que a operação de planejamento não é simples, até mesmo por seu caráter multidisciplinar.
O primordial é o ato de planejar, ou seja, a elaboração de um plano para a transmissão futura do acervo patrimonial. Entretanto, ocasionalmente, o planejamento sucessório pode não ser muito bem executado, resultando em uma inadequação entre os fins almejados e os meios utilizados e, por conseguinte, o indesejado conflito entre os herdeiros. A acurada observação das peculiaridades do caso concreto é fundamental para o seu sucesso, até mesmo porque os aspectos subjetivos podem ser relevantes e, inclusive, decisivos, como o afeto por determinada pessoa ou mesmo a confiança de que aquele outro parente terá a capacidade para bem gerir e dar continuidade aos negócios da família.
Nesses casos, arrisca-se a realizar um planejamento sucessório que não é ajustado à situação concreta, não atendendo aos fins propostos, apesar de não implicar em ofensa à lei. Simplesmente o planejamento não atendeu à vontade do autor da herança, não evitando o conflito entre os futuros herdeiros.
O planejamento sucessório deve ser efetuado nos limites legais, respeitando a legítima e a sua intangibilidade. O principal limite ao planejamento sucessório, além dos requisitos gerais de validade de todo e qualquer ato jurídico, a serem compulsoriamente observados, juntamente com as balizas da ordem pública, é a existência de herdeiros necessários por parte do autor da herança e, consequentemente, autor do próprio planejamento.
O desafio que se coloca, nessa perspectiva, é a utilização desse instrumento, levando-se em conta a restrição da legítima que — embora possa ser questionada doutrinariamente diante de todas as transformações da atual sociedade brasileira — não pode ser ignorada, sob pena de configurar fraude à lei ou mesmo abuso de direito.
Só assim o planejamento será capaz de trazer uma razoável segurança jurídica para o autor da herança e seus herdeiros, prevenindo e evitando conflitos futuros.
[1] MAMEDE, Gladston; MAMEDE, Eduarda Cotta. Planejamento Sucessório: introdução à arquitetura estratégica – patrimonial e empresarial – com vistas à sucessão causa mortis. São Paulo: Atlas, 2015, p. 8.
[2] PINHEIRO, Jorge Duarte. O Direito das Sucessões Contemporâneo. 2ª ed. Lisboa: AAFDL Editora, 2017, p. 28.
[3] Cf. MORAIS, Daniel de Bettencourt Rodrigues Silva. Revolução Sucessória: Os Institutos Alternativos ao Testamento no século XXI. Cascais: Principia, 2018, p. 16.
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