Diário de Classe

É possível um positivismo prescritivo ou isso já não seria mais positivismo?

Autores

  • William Galle Dietrich

    é advogado doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) como bolsista Capes/Proex membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDpro) e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

  • Frederico Pessoa

    é graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

11 de agosto de 2018, 8h00

Nos últimos dias de junho de 2017, a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) sediou o II Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito (ver vídeos aqui), organizado pelo professor Lenio Luiz Streck. Esse evento reuniu os teóricos do Direito mais importantes do Brasil, com o intuito de discutir e problematizar os rumos da Teoria do Direito brasileira. Todos os debates e discussões que ocorreram nesse evento têm potencial para render inúmeros textos e problematizações sobre o papel da Teoria do Direito. Neste pequeno ensaio, pretendemos abordar uma rápida — e profunda — pergunta feita pelo professor Marcelo Cattoni durante o evento.

Em determinado momento do 2º painel, o professor Cattoni perguntou ao professor Rafael Tomaz de Oliveira: “Você acha que o positivismo normativo é possível?”.

O positivismo normativo, para o leitor que desconhece, em linhas gerais, é uma teoria que adota um pressuposto metodológico prescritivo. Ou seja, para essa corrente, o positivismo seria exatamente isso que você, leitor, aprende em sala de aula: o positivismo é a teoria que diz que o juiz deve seguir a lei.

Mas, então, por que a pergunta do professor Cattoni é tão intrigante?

Para comentar sobre determinado fenômeno, um dos pressupostos da hermenêutica é procurá-lo em sua origem. Então, neste pequeno ensaio, procuraremos demonstrar o status quæstionis em que estava inserido um dos primeiros positivistas de que se tem notícia, David Hume[1], para tentar compreender melhor a pergunta feita pelo professor Cattoni.

O Tratado da Natureza Humana, centro gravitacional do pensamento humeniano, apresenta-se como uma clara tentativa de ruptura com os paradigmas epistemológicos e metodológicos da filosofia de seu tempo (escolásticos e racionalistas). Logo nas páginas iniciais da obra, o filósofo sustenta que é necessário abandonar o método “moroso e entediante que seguimos até agora”, que levou muitos a cometer o equívoco de “impor ao mundo suas conjeturas e hipóteses como se fossem os princípios mais certos”[2].

O filósofo escocês acreditava, assim, que o problema da filosofia estava na aposta de suas reivindicações excessivamente especulativas, descartando a experiência e observação. Seu objetivo, portanto, era trazer a filosofia para o mundo empírico, deixando de lado os excessos especulativo-abstratos. Isso fica claro até mesmo no seu elogiável modo de escrever, que se dá de forma simples e objetiva. O positivismo tem em seu berço, portanto, a aposta na experiência e na observação como o “único fundamento sólido” para a ciência[3].

Tão radical foi a ruptura proposta pelo autor em questão que ele afirma taxativamente que, ao se procurar uma leitura, era preciso passar pelas seguintes questões: “Possui [o livro] algum raciocínio abstrato relativo à quantidade ou número?”; “Contém algum raciocínio experimental em matéria de fato e existência?”. Se a resposta para essas duas perguntas for negativa, o conselho de Hume é que os livros sejam lançados ao fogo, pois não podem conter nada além de “sofismas e ilusões”[4].

Aquilo que Hume efetivamente estava propondo é que a metodologia das ciências sociais deve ser, fundamentalmente, a mesma das ciências naturais[5], ou seja, com Hume, as ciências do espírito passarão a se preocupar muito mais com o mundo como ele é (descrição), sendo cética com relação às proposições de como ele deveria ser (prescrição).

Kolakowski, ao explicar a história do pensamento positivista, trabalha com quatro características fundamentais, dentre as quais nos interessa para este ensaio a característica da “unidade do método científico”[6]. Tal regra, em sua leitura mais standard, enuncia que o método para a aquisição válida de conhecimento é essencialmente o mesmo para todas as áreas científicas, sejam naturais, sejam sociais[7]. Isso fica muito claro em David Hume já no subtítulo de sua obra: “Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais”. No limite, tal regra é uma reivindicação metodológica que estabelece o modo como o cientista atuará. Explicando de um modo mais didático, se na biologia um cientista observa e descreve como as plantas se desenvolvem (se abstendo de afirmar como as plantas deveriam ser, por exemplo), não poderá ser diferente no âmbito das ciências sociais. Um jurista deve se limitar a observar o modo como o Direito é, e descrevê-lo. Tudo o que passar desse ponto não se tratará mais de atividade científica.

Quem tratou disso com maestria foi Kelsen. Dentre as inúmeras passagens da TPD, destacamos o prefácio à segunda edição em que diz o jurista que “agora, como antes, uma ciência jurídica objetiva que se limita a descrever o seu objeto esbarra com a pertinaz oposição de todos aqueles que, desprezando os limites entre ciência e política, prescrevem ao Direito, em nome daquela, um determinado conteúdo, quer dizer creem poder definir um Direito justo e, consequentemente um critério de valor para o Direito positivo”[8].

Dessa forma, fica evidente que a “ciência jurídica” é incompatível com reivindicações prescritivas para grande parcela dos positivistas. Grande parcela do positivismo surge justamente com o intuito de se contrapor a posturas valorativas que pretendem dizer como o Direito deve ser ou como um juiz deve julgar. Com isso, a pergunta do professor Marcelo Cattoni vai no ponto de uma grande discussão: pode o positivismo, que surgiu justamente para se opor a teorias contrafactuais, se tornar uma teoria contrafactual? É possível um positivismo prescritivo ou isso já não seria mais positivismo?

Trata-se de uma grande discussão. O presente texto não tem o objetivo de esgotar o tema por uma questão óbvia e formal. Pretende-se apenas lançar um alerta sobre como as coisas não são tão simples como parecem[9].

De tudo que foi abordado até aqui, não deixa de ser curioso observar que existem bons argumentos para sustentar que o positivismo jurídico é uma teoria que surge para contrapor justamente o que a grande parcela da comunidade jurídica acredita que ele é. Por isso que nem sempre — ou até mesmo na grande maioria dos casos — aplicar a letra da lei não é uma atitude positivista[10]. Tudo depende da perspectiva teórica adotada e dos pressupostos assumidos.

Essa importante discussão chega a todos os níveis do âmbito prático, inclusive na sala de aula: o professor deve adotar uma postura descritiva? Deve apenas dizer como são as leis e julgam os tribunais? Ou o professor deve se posicionar? Dizer como o tribunal deveria ter julgado? O aluno prefere que o professor seja positivista ou que prescreva, inserindo sua valoração sobre a correção (ou não) do Direito[11]?

Eis um tema fundamental em nosso "Diário de Classe"!

P.S. Aproveitando que o texto abordou o Colóquio de Crítica Hermenêutica, já deixamos aqui o nosso convite a toda comunidade jurídica para que participe da 3ª edição, que ocorrerá nos dias 22 e 23 de outubro. A programação está quase fechada e será divulgada em breve, assim como a venda de ingressos. Mais informações serão divulgadas aqui e aqui.


[1] Segundo Kolakowski, David Hume é “cronologicamente o primeiro pensador que podemos chamar de positivista”. KOLAKOWSKI, Leszek. The Alienation of Reason: A history of positivist though. New York: Doutileday & Company, Inc., 1968, p. 31.
[2] HUME, David. Tratado da Natureza Humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Trad. de Débora Danowski. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 21-23.
[3] HUME, David. Tratado da Natureza Humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Trad. de Débora Danowski. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 22.
[4] HUME, David. An Enquiry Concerning Human Understanding and Other Writings. Edited by Stephen Buckle. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 144.
[5] ROSENBERG, Alexander. Hume and the philosophy of science. The Cambridge Companion do Hume. Edited by David Fate Norton. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 84.
[6] KOLAKOWSKI, Leszek. The Alienation of Reason: A history of positivist though. New York: Doutileday & Company, Inc., 1968, p. 03; Essa unidade do método científico, conforme leciona Lenio Streck, adentra no juspositivismo como um ideal descritivista Ver em: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017, p. 168.
[7] É importante deixar claro que tal regra comporta algumas variações. Afirma Kolakowski que “to an even greater extent that the previous principles, the meaning of this one admits of various interpretations, For all of that, the idea itself is invariably present in positivist discussion […] This assumption-that all knowledge will be reduced to the physical sciences, that all scientific statements will be translated into physical terms-does not, to be sure, follow from the foregoing positivist rules without further assumptions, Moreover, belief in the unity of the scientific method can be specified in other ways as well”. KOLAKOWSKI, Leszek. The Alienation of Reason: A history of positivist though. New York: Doutileday & Company, Inc., 1968, p. 08-09.
[8] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
[9] Grande parcela das perguntas aqui lançadas já está respondida e enfrentada pela Crítica Hermenêutica do Direito, principalmente no verbete “positivismo” do Dicionário de Hermenêutica. Ver STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017, passim.
[10] STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a "Letra da Lei" é uma atitude positivista?. Novos Estudos Jurídicos (Online), v. 15, p. 158-173, 2010.
[11] A Crítica Hermenêutica do Direito adota posicionamento frontalmente oposto ao positivismo com relação ao papel do professor e da doutrina: “O Direito não é aquilo que o intérprete quer que ele seja. Portanto, o Direito não é aquilo que o tribunal, no seu conjunto ou na individualidade de seus componentes, diz que é (lembremos, aqui, a assertiva de Herbert Hart, em seu Concept of Law, acerca das regras do jogo de críquete, para usar, aqui, um autor positivista contra o próprio decisionismo que claramente exsurge do acórdão em questão). A doutrina deve doutrinar, sim. Esse é o seu papel. Aliás, não fosse assim, o que faríamos com as mais de mil faculdades de Direito, os milhares de professores e os milhares de livros produzidos anualmente? E mais: não fosse assim, o que faríamos com o parlamento, que aprova as leis? E, afinal, o que fazer com a Constituição, lei das leis?”. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 298.

Autores

  • é advogado, mestrando em Direito Público pela Unisinos, bacharel em Direito pela Universidade Feevale (Novo Hamburgo-RS) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

  • é graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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