Embargos Culturais

O florentino Nicolao Maquiavel e a maldição de seus tradutores para português

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

29 de abril de 2018, 8h00

Spacca
Em algum ponto do universo (no céu ou no inferno ou nenhures, a depender do leitor) o florentino Nicolau Maquiavel convive com a descoberta de que passou de Florença para a posterioridade na forma de adjetivo negativo. Nossas hipocrisias transformaram Maquiavel em “maquiavélico”, simbolizando o maligno e significando muito que se crê que Maquiavel teria dito, ainda que não o tenha escrito.

Nessa categoria, uma lista de sentenças não localizadas como “fazei o mal, mas fingi fazer o bem”, “sede bruto e miserável”, “quando apunhalar o inimigo o faça pelas costas”, a par da mais da mais significativa de todas: “Os fins justificam os meios”. Na tradição ocidental Maquiavel é a própria encarnação da astúcia, da hipocrisia, da crueldade; é lugar comum lembrar que o substantivo próprio transformou-se em adjetivo prenhe de antropologia negativa. Mais. Como demonstrarei mais adiante, Maquiavel também sofre nas mãos de seus maiores algozes: seus tradutores traidores; ou, ainda, os faz sofrer.

O florentino também tem seus méritos. Afastou da teorização política a fabulização da realidade. Não nos vendeu nenhuma utopia. Também não nos legou nenhuma premonição de um mundo distópico. O futuro não é sombrio, e nem nirvânico. É apenas o resultado de nossa ação, pautado por nossos cálculos, e também influenciado por eventos externos, que fogem a nosso controle. É bíblico: colhemos na velhice o que semeamos na juventude.

A principal preocupação de Maquiavel consistia no esforço em influenciar a condução dos negócios públicos na cidade-república na qual vivia. Era um prático. Maquiavel defendeu a república florentina, a ordem estabelecida; inspecionava pessoalmente as fortalezas da cidade. Era um homem de costumes simples, de hábitos plebeus e anticonvencionais, gostava da boa conversa e sentava-se com desembaraço com qualquer tipo de gente.

Com a queda da república florentina em 1512 Maquiavel viveu seu inferno. Em 1513 foi preso e torturado. Tinha 44 anos. Retornou aos negócios da cidade de Florença em 1519. Em 1521 teve de abandonar a vida pública. Dedicou-se a literatura. Morreu em 21 de junho de 1527, aos 58 anos. Estava pobre e não exercia nenhuma influência política.

Seu legado, tomando-o sem qualquer folclore, consiste no fato de que deixou de fabulizar a realidade política, como o fizeram Platão e Morus, por exemplo, intervindo na vida real, aliás, a única que nos permite algum espaço de ação prática. Menos do que as prosaicas e úteis instruções deixadas no “Príncipe”, talvez o maior legado de Maquiavel seja o próprio exemplo, no sentido de que entendamos que a vida nos exige muita ação e muita energia.

Maquiavel é personagem emblemático do Renascimento, época que se opunha ao misticismo, ao coletivismo, ao antinaturalismo, ao teocentrismo e ao geocentrismo. O Renascimento era marcado por intensa defesa do racionalismo, do individualismo, do antropocentrismo, do heliocentrismo. O humanismo foi também um dos traços definidores daquele tempo, centrado na retomada dos valores greco-romanos, circunstância muito característica na obra de Maquiavel.

Especialmente no “Príncipe”, sua obra mais conhecida, Maquiavel suscita problemas de difícil solução. Trato da questão dos tradutores e me refiro à parte final do Capítulo XXV. Nesse capítulo, Maquiavel acrescenta a sorte (fortuna) à virtude, como indicativos do pleno sucesso e domínio do príncipe. O poder exige qualidades (virtude) mas de algum modo também depende de um contexto pré-determinado (a fortuna, ou a sorte). No original: “perché la fortuna à donna, et è necessario, volendola tenere sotto, batterla er untala”.

Maquiavel equiparou a fortuna à mulher. E afirmou que a sorte seria obtida com força e violência, a exemplo de como mulheres seriam tratadas. Há aqui um tremendo problema que todo tradutor deve enfrentar, especialmente porque não pode passar ao largo para com a dignidade da pessoa humana.

Vejamos o que escreveram os tradutores de Maquiavel para nossa língua. Na prestigiosa tradução da Editora Martins Fontes lemos: “a fortuna é mulher, e é necessário, para submetê-la, bater nela e maltratá-la”[1]. Na tradução da Coleção Os Pensadores, optou-se por “a sorte é mulher e, para dominá-la, é preciso bater-lhe e contrariá-la”[2]; essa opção também foi a da Edipro, que manteve a versão da Editora Abril[3], bem como foi a opção da Ediouro[4]. A tradução da Martim Claret foi mais metafórica: “a sorte é uma mulher, sendo necessário, para dominá-la, empregar a força”[5]. Na edição da Golden Books optou-se por; “a sorte é uma mulher e, se quiseres conquista-la, precisas enfrenta-la e subjuga-la”[6].

A tradução da Paz e Terra é das mais agressivas: “a sorte é mulher e é necessário, para subjuga-la, espanca-la e surra-la”[7]. A tradução da Cultrix também é pesada: “a sorte é mulher, e é necessário, para domina-la, bater-lhe e feri-la”[8]. De igual modo, a tradução do Jardim dos Livros: “a fortuna é mulher e convém, se a queremos subjugar, batê-la e humilha-la”[9]. Na tradução da Companhia das Letras (que tem prefácio de Fernando Henrique Cardoso) a passagem também foi traduzida com aspereza: “a fortuna é mulher, e é preciso, case se queira mantê-la submissa, dobrá-la e força-la”[10].

Na tradução da L&PM Pocket tem-se a impressão que o tradutor registrou seu espanto com a passagem, colocando um “sic” em seguida do excerto: “a fortuna é mulher e, para mantê-la submissa, é preciso bater-lhe e maltrata-la [sic]”[11]. Na tradução da Revista dos Tribunais manteve-se o tom pesado: “a sorte é mulher e é necessário, para domina-la, bater-lhe e agredi-la”[12].

As traduções de Portugal mantém o mesmo tom de misoginia infinita. Na edição do Círculo dos Leitores “a fortuna é mulher e é necessário, querendo-a ter debaixo, vergá-la e acomete-la”[13]. Na edição da Europa-America optou-se por “a fortuna é mulher e, para a conservar submissa, é necessário bater-lhe e contrariá-la”[14], tradução também utilizada na edição da Casa Coisas de Ler[15]. Pesadíssima a tradução do Editorial Presença: “a fortuna é mulher e, se quiser mantê-la submissa, há que espanca-la e contraria-la”[16]. Na edição da Casa Guimarães também se optou por uma fórmula forte: “a fortuna é mulher, e é necessário, se se quer domina-la, bater-lhe e feri-la”[17].

Todas as traduções acima indicadas são medonhas e agressivas para com a condição feminina. São inaceitáveis, ainda que registrem o que Maquiavel escreveu. Não há hermenêutica ou teoria da tradução que explique o que Maquiavel tinha em mente quando compôs essa sentença.

Esse excerto é mais um componente, entre tantos outros, que confirmam que não entendemos o passado, que o passado não nos explica e que a possibilidade de compreensão universal é próxima do nada. Persiste o mundo, e as relações humanas, como um perpétuo mal entendido, no qual falamos o que não pensamos e ouvimos apenas o que queremos ouvir. E se a fortuna de alguém dependa de maus tratos para com qualquer ser humano, melhor perecermos na desgraça e na adversidade.


[1] Maquiavel, O Príncipe, São Paulo: Martins Fontes, 2010, pp. 124-5. Tradução de Maria Júlia Goldwasser.

[2] Maquiavel, O Príncipe, São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 105. Tradução de Lívio Xavier.

[3] Maquiavel, O Príncipe, Bauru: Edipro, 2010, p. 88. Tradução de Lívio Xavier.

[4] Maquiavel, O Príncipe, Rio de Janeiro: Agir-Editouro, 2008, p. 119. Tradução de Lívio Xavier.

[5] Maquiavel, O Príncipe, São Paulo: Martin Claret, 2007. Tradução de Pietro Nassetti.

[6] Maquiavel, O Príncipe, São Paulo: DPL-Golden Books, 2008, p. 233. Tradução de Cândida de Sampaio Bastos.

[7] Maquiavel, O Príncipe, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 127. Tradução de Maria Lúcia Cumo.

[8] Maquiavel, O Príncipe, São Paulo: Cultriz, 2006, p. 146. Tradução de Antonio D'Elia.

[9] Maquiavel, O Príncipe, São Paulo: Jardim dos Livros, 2007, p. 221. Tradução de Ana Paula Pessoa.

[10] Maquiavel, O Príncipe, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 134. Tradução de Maurício Santana Dias.

[11] Maquiavel, O Príncipe, Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 124. Tradução de Antonio Carucio-Carporale.

[12] Maquiavel, O Príncipe, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 151. Tradução de J. Cretella Jr. De Agnes Cretella.

[13] Maquiavel, O Príncipe, Maia: Círculo de Leitores, 2011, p. 234. Tradução de Diogo Pires Aurelio.

[14] Maquiavel, O Príncipe, Mira-Sintra: Europa-America, 2002, p. 157. Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues.

[15] Maquiavel, O Príncipe, Almargem do Bispo: Coisas de Ler Edições, 2007, p. 107. Tradução de Antonio Simões do Paço.

[16] Maquiavel, O Príncipe, Lisboa: Editorial Presença, 2008, p. 186. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo.

[17] Maquiavel, O Príncipe, Lisboa: Guimarães Editores, 2008, p. 112. Tradução de Carlos Eduardo de Soveral.

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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