Direitos Fundamentais

STJ, STF e os critérios para fornecimento de medicamentos (parte 1)

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27 de abril de 2018, 9h33

O tema[1] da assim chamada judicialização da saúde, que encontrou suas primeiras importantes (mas na ocasião ainda isoladas) expressões em meados dos anos 1990, desde então não deixou de ocupar a agenda da academia, da governança e do meio judiciário brasileiras, alcançando cada vez maior repercussão, seja no que diz com o número de demandas judiciais propostas, seja no concernente ao impacto de tais ações sobre o sistemas público e privado de saúde e as políticas e finanças públicas em geral.

Embora os números que envolvem a intervenção judiciária nessa seara, portanto, no processo de da proteção e promoção da saúde (e, portanto, na esfera da efetividade do direito à proteção e promoção da saúde) sejam constantemente divulgados — em especial para efeitos de um olhar crítico em relação à judicialização — não é demais lembrar que de acordo com o relatório Justiça em Números de 2017, do CNJ, em 2017 tramitavam 1.346.931 demandas judiciais de natureza diversa envolvendo o direito à saúde até 31.12.2016. Além disso, os gastos da União com ações judiciais envolvendo prestações de saúde cresceu na ordem de 727% entre 2010 e final de 2016, quando alcançou a cifra de R$ 3,9 bilhões, isso segundo estudo do Observatório de Análise de Políticas em Saúde (OAPS).

Tais dados, à evidência, não podem por si só já ensejar qualquer juízo qualitativamente seguro sobre a temática aqui versada, mas demonstram claramente que — para o bem ou para o mal, a depender do olhar — que o tema e suas tantas facetas segue carente de atenção por parte do Estado e da Sociedade e cada vez mais sugere que as críticas assacadas contra a atuação do Poder Judiciário (do sistema judiciário, melhor dizendo) devem ser especialmente levadas a sério.

Precisamente por tais razões é que uma série de ações concretas têm sido criadas e executadas no âmbito do próprio Poder Judiciário (mas também na esfera das funções essenciais à Justiça, designadamente, pelo fato de serem os agentes que mais provocam a ação dos juízes, o Ministério Público e a Defensoria Pública), buscando imprimir pelo menos maior racionalidade e consistência no processo, mas também minimizar o seu impacto, como dão conta as Resoluções do CNJ orientando os magistrados para avaliarem a decidirem de modo mais criterioso nos casos concretos que lhes são submetidos, apenas para aqui ilustrar a questão.

Que tais esforços não têm surtido os efeitos almejados não carece de maior esforço para ser detectado, bastando aqui remeter aos dados acima colacionados, muito embora já se saiba que não fosse isso o impacto da judicialização seria muito maior.

Mas aqui o nosso foco é mais limitado, pois vinculado ao problema dos critérios adotados por juízes e tribunais — com destaque aqui para o STJ e o STF — com o intuito de justificar o deferimento, ou não, dos pedidos que lhes são apresentados.

Nesse contexto, não poderíamos ter encontrado melhor provocação do que a divulgação da notícia de que a primeira Seção do STJ, em 25.4, concluiu o julgamento de recurso repetitivo, estabelecendo requisitos (critérios) para que o Poder Judiciário determine o fornecimento de remédios fora da lista do Sistema Único de Saúde (SUS). Importa anotar, todavia, que os critérios fixados, em virtude da modulação dos seus efeitos, só serão exigidos nos processos judiciais distribuídos a partir dessa decisão.

Em síntese, restou decidido que o Poder Judiciário poderá determinar ao poder público o fornecimento de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS, desde que presentes, cumulativamente, os seguintes requisitos:

1 – Seja comprovado pela parte autora, mediante laudo médico fundamentado e devidamente circunstanciado (da lavra de médico que assiste o paciente), de que o medicamento pleiteado lhe seja imprescindível, necessário também demonstrar a ineficácia dos fármacos fornecidos pelo SUS para o efeito do tratamento pretendido;

2 – A demonstração da incapacidade financeira do demandante (paciente) de arcar com o custo do medicamento prescrito; e

3 – Existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

De cimeira importância é, além disso, o fato de que além da fixação dos critérios referidos, foi determinado que, depois de transitada em julgado a decisão em cada caso concreto (envolvendo a obrigação de dispensação de fármacos não constantes nas “listas” do SUS), o Ministério da Saúde e a Comissão Nacional de Tecnologias do SUS fossem comunicados para o efeito de procederem a estudos sobre a viabilidade de serem os medicamentos pleiteados incorporados às prestações a serem disponibilizadas pelo SUS.

A decisão do STJ, por sua vez, deve ser situada num contexto mais amplo, visto que no STF, pelo menos desde o julgamento da STA 175 (2010), não apenas já vinham sendo estabelecidos alguns critérios, como já foi reconhecida a Repercussão Geral da matéria, designadamente nos RE – RG 566.471 e 657.718, cujo julgamento, contudo, ainda não foi encerrado, colhidos apenas os votos do relator e de alguns ministros.

No caso do RE 566.471/RN, relator ministro Marco Aurélio, discute-se a obrigação do Estado no sentido de dispensar medicamento de alto custo não incluído na Política Nacional de Medicamentos, a portador de doença grave carente de recursos financeiros para a sua aquisição no mercado. Já no RE 657.718/MG, igualmente relatado pelo ministro Marco Aurélio, o que está em questão é a possibilidade de se obrigar, mediante ação judicial, o poder público a fornecer medicamento não registrado pela Anvisa.

Assim, numa primeira e rápida mirada, já se pode verificar que embora exista um elo comum entre o caso do STJ ora apresentado e o objeto das duas Repercussões Gerais, qual seja, o fato de que o fármaco pleiteado não está contemplado pelas políticas públicas de saúde, há algumas diferenças a serem consideradas, visto que os processos que tramitam no STF dizem respeito: a) apenas (?) a medicamentos de alto custo, e b) a medicamentos não registrados pela Anvisa.

De qualquer sorte, também é possível constatar que os critérios estabelecidos pelo STJ foram referidos também nos votos por ora proferidos nas Repercussões Gerais, com o que aqui não se está a fazer ainda qualquer juízo de valor sobre tal circunstância. Ademais disso, outros critérios foram sugeridos pelos ministros que até o presente momento tiveram a oportunidade de apresentar os seus votos em ambos os casos.

Para o relator, ministro Marco Aurélio, o poder público apenas poderia ser judicialmente compelido a fornecer medicamento de alto custo não incorporado ao SUS quando demonstrado que se estaria a violar o mínimo existencial do paciente/pleiteante, o que, por sua vez, estaria configurado com a presença de dois requisitos: a) a comprovação do caráter imprescindível do medicamento, no sentido de sua eficácia e segurança para o aumento de sobrevida e/ou melhora da qualidade de vida do enfermo, bem como a impossibilidade de substituição por fármaco constante das “listas” do SUS; b) a prova da incapacidade financeira do enfermo ou de sua família (em regime de solidariedade) para a sua aquisição, tendo como parâmetro as regras que regem o dever de prestação de alimentos na esfera cível.

Já o ministro Roberto Barroso, em seu voto-vista, sustentou ser necessária — para a concessão via judiciária do medicamento pleiteado — a observância cumulativa de cinco requisitos: a) a comprovação da incapacidade financeira de o autor da demanda arcar com o custo correspondente; b) a demonstração de que a não incorporação do medicamento não resultou de decisão expressa dos órgãos competentes; c) a inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS; d) a prova da eficácia do medicamento pleiteado com base na assim chamada medicina baseada em evidências; e e) a propositura da demanda necessariamente em face da União, já que a ela cabe a decisão final sobre a incorporação ou não de medicamentos ao SUS.

O ministro Roberto Barroso propôs ainda a observância de um requisito de natureza procedimental, qual seja, a necessidade de promoção de um diálogo interinstitucional entre o Poder Judiciário e os entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, como é o caso câmaras e dos núcleos de apoio técnico em saúde dos próprios Tribunais, bem como dos profissionais do SUS e os técnicos da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).

No que diz com a Repercussão Geral em que se discute a obrigação do Estado de dispensar medicamento não registrado na Anvisa (o que constitui pressuposto para a posterior — mas nem por isso desde logo cogente — incorporação aos programas de fornecimento de medicamentos do SUS), o ministro Marco Aurélio, relator, depois de na primeira sessão do julgamento ter votado pelo desprovimento do recurso, alterou o sem entendimento sustentado que o poder público apenas pode ser obrigado a fornecer medicamento registrado na Anvisa, salvo, em caso excepcional, quando se tratar de medicamento passível de importação e inexistente similar nacional, desde que comprovado ser o fármaco indispensável à preservação da saúde da pessoa e que tenha sido registrado junto aos órgãos competentes no pais de origem.

De acordo com o ministro Roberto Barroso, a regra geral deve ser a de que o Estado não pode ser compelido a fornecer medicamento não registrado na Anvisa, que atua precisamente na avaliação e certificação da segurança e eficácia dos medicamentos produzidos e/ou comercializados no Brasil.

Assim, ainda de acordo com o ministro Roberto Barroso (a exemplo do que se decidiu já na STA 175 supra referida) em se tratando de medicamentos ainda em fase de pesquisas e testes, o Estado não pode ser judicialmente obrigado ao seu fornecimento, sem prejuízo de sua dispensação no âmbito dos respectivos programas de testes clínicos, indispensáveis precisamente para a sua posterior certificação e registro.

Além disso, cuidando-se dos assim chamados medicamentos “novos” (v. novamente a STA 175), ou seja, daqueles fármacos já devidamente testados, mas ainda não registrados na Anvisa, é possível — em caráter excepcional — ao Poder Judiciário compelir o poder público à sua dispensação, mas apenas no caso de demora não razoável no que diz com a apreciação do pedido de registro e ainda assim observados, em caráter cumulativo, os seguintes critérios: a) pedido de registro do medicamento no Brasil; b) registro do medicamento pleiteado em renomadas agências de regulação no exterior; e c) inexistência de substituto terapêutico registrado na Anvisa.

Note-se, além disso, que aqui também o ministro Roberto Barroso acrescentou um requisito de natureza processual, ao propor que as demandas por falta de registro do medicamento na Anvisa devam ser propostas em face da União.

O ministro Edson Fachin, por sua vez, também enfatizou ser em regra inviável obrigar o Estado a fornecer medicamento (e mesmo outros procedimentos) não reconhecidos e certificados pela Anvisa, salvo quando demonstrado em juízo o descumprimento dos controles fixados para a política regulatória.

À vista do que até agora foi (sumariamente) exposto, é possível arriscar a afirmação de que tanto no caso da decisão do STJ quanto no caso dos votos já proferidos no STF, que se está buscando o aperfeiçoamento dos critérios para justificar a imposição — pela via judicial — ao poder público de prestações de saúde em matéria de medicamentos, com o escopo de estabelecer uma pauta de diretrizes mais seguras e racionais a orientar as instâncias judiciárias ordinárias, mas também de modo a permitir aos demais atores estatais, em especial ao Poder Executivo, um adequado planejamento e formulação de ajustes no sistema de saúde.

Que tais critérios não são imunes a críticas e não afastam importantes objeções à atuação do Poder Judiciário no que diz com a imposição de prestações sociais (no caso, medicamentos) ao poder público não é preciso aqui destacar, mas nos impele a retornar ao tema numa próxima coluna. Por ora, o que se pretendeu foi proceder a uma prevê apresentação da matéria tal qual apreciada já pelo STJ e em fase de julgamento no STF.


1 Agradeço ao preciso auxílio que me foi prestado pelas Doutoras e Professoras Mariana F. Figueiredo e Catarine Acioli no que diz com a preparação da pesquisa para a redação da presente coluna.

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