Tribuna da Defensoria

Educação pela pedra: a defesa no Plenário do Tribunal do Júri

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24 de abril de 2018, 10h44

No Plenário do Tribunal do Júri, vigora o discurso do medo. Não raro, os representantes do Ministério Público exploram a fundo a arquitetura do medo; imbuídos de excessiva emoção, materializam frente aos jurados todo o horror de uma possível, porém improvável, absolvição. E essa estratégia de falar alto, de gesticular muito — os dedos apontados na cara do réu —, de empunhar a arma do crime, de atacar a defesa com o embuste da impunidade, de usar o sofrimento da vítima ou os antecedentes do réu como único argumento para a condenação, todo esse roteiro antigo, utilizado em tantos e incontáveis debates, requentado por tantos e quantos anos, bem, esse roteiro funciona e condena, condena muito. Como nos alertou Drummond: “Em verdade, temos medo. (…). E fomos educados para o medo. Cheiramos flores de medo. Vestimos panos de medo. De medo, vermelhos rios vadeamos”.

Então, pergunto: contra tal discurso de fé, que lugar de fala deve ocupar a defesa?

Provavelmente, caso advogados e defensores públicos naveguem nas mesmas águas do Ministério Público, com o mesmo palavrório inflamado, recheado de noções do senso comum, vitimando o acusado e o papel que ele ocupa na sociedade, o réu deixará o Plenário algemado, irá direto para o bonde e de lá para o presídio, de onde não sairá tão cedo. Fé por fé, os jurados escolherão, medrosos, o discurso de sempre, aquele que edificou, com duros tijolos de medo, os alicerces do nosso tempo.

Ao contrário disso, a defesa precisa desconstruir com a razão os dogmas da fé.

Entretanto, desconstruir a criminologia midiática que permeia a argumentação ministerial e a bagagem televisiva e jornalística que os jurados carregam consigo ao Plenário não é tarefa simples. Afinal, são muitas e muitas horas de "Brasis Urgentes" e "Cidades Alertas", de manchetes da Globo e reportagens do Fantástico; são anos e anos de armas apontadas nas favelas, de meninas baleadas e mortas dentro de escolas nas favelas; de condomínios residenciais herméticos, de investimentos em empresas de segurança privada em prol da segurança pública. Não é pouco o que precisa ruir, e por isso cada vitória importa.

A defesa precisa modificar o espaço da fala e, para tanto, é fundamental retirar-se do terreno da violência, onde a prelação do Ministério Público susteve os jurados durante, no mínimo, uma hora e meia.

É preciso mostrar objetivamente que o Brasil apresenta a 3ª maior população carcerária do mundo, sendo que 40% são presos provisórios; mais da metade dessa população é de jovens de 18 a 29 anos; 64% são negros, sendo que, na Bahia, esse percentual chega a 89%; 75% da população prisional brasileira não chegou ao ensino médio, enquanto menos de 1% dos presos tem graduação. É preciso mostrar objetivamente que a "lava jato" e a prisão ou a não prisão do ex-presidente Lula em segunda instância pouco se relacionam com o contingente carcerário habitual e que o teatro do combate à corrupção apenas mascara a verdadeira clientela do Direito Penal: jovens, negros e pobres. É imprescindível demonstrar que o perfil de quem mata é o mesmo perfil de quem morre, e que, diante deste ciclo periférico e lucrativo da violência, setores ligados à segurança privada faturam bilhões e empregam mais do que a polícia.

A defesa necessita comprovar, através da linguagem racional, dos dados, dos gráficos, com a calma de quem aponta verdades, o engodo da produção de provas no Brasil, especialmente no que tange à prova testemunhal. Não são juntados laudos de local do crime, não são feitas perícias técnicas, exames de DNA só nos filmes de tribuna americanos; testemunha presencial é artigo de luxo, sendo chamadas a depor a mãe, a irmã, a mulher da vítima ou outras pessoas que ouviram dizer algo sobre os fatos, mas que, com toda certeza, podem atestar a culpa do réu. Reconhecimento pessoal, só o fotográfico ou pelo olho mágico da porta da sala de audiências. Sobre os ombros do acusado, o peso da presunção de culpa e, nos bolsos, amarrotada, a página arrancada da Constituição Federal, artigo 5º, inciso LVII.

O nosso trabalho é como o de Sísifo. Empurrar a pedra até o alto da montanha todos os dias, com firmeza e coragem, apesar do risco da queda. E por isso a defesa precisa ler mais João Cabral de Melo Neto, aprender com o poeta a calcular as palavras, educar-se pela pedra: por lições; para aprender da pedra, frequentá-la.

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