Hermenêutica tem relevante importância para a pesquisa jurídica
21 de abril de 2018, 8h00
Nessas aulas, deveríamos aprender como pesquisar no Direito, os diferentes métodos que podemos utilizar para nossos trabalhos. Mais do que isso: pouco se fala da crítica ao método (moderno) e “método” hermenêutico.
Método na hermenêutica? Sim, isso mesmo. Ouve-se, por parte dos analíticos, que na hermenêutica não há método, é tudo uma confusão, uma ausência de rigor científico. Antes de discutirmos, precisamos ajustar o que entendemos por método. Se método é um cumprimento de etapas, do tipo passo-a-passo, e que tal cumprimento garantiria a verdade do resultado, então os analíticos estão certos, não há método na hermenêutica.
Agora, se método é o comprometimento do pesquisador com a verdade da investigação, isto é, para além/apesar de um mero checklist de procedimentos, então nós, hermeneutas, temos um autêntico método.
Por que afirmamos isso? Porque a hermenêutica está para além de um mero método de pesquisa científica. A hermenêutica está mais para um modo-de-ser-no-mundo. Interpretar não está à nossa disposição. Se compreendemos, interpretamos, se interpretamos, aplicamos. Por isso hermenêutica não se faz em abstrato. Interpretar é aplicar. Para dizer que algo é fácil ou difícil nós precisamos compreender, pois as coisas não nos aparecem com rótulos — por exemplo, no direito, de easy/hard cases.
A afirmação de que a hermenêutica é um modo-de-ser-no-mundo não seria demasiado pretenciosa? Não estaríamos supervalorizando a hermenêutica? Não. Pois a hermenêutica, juntamente com a fenomenologia, nos demonstra o óbvio (e isto, demonstrar o óbvio, muitas vezes é o papel do teórico, desvendar as obviedades, mostrar o elefante que está por detrás da formiga, como afirma o professor Lenio Streck), que não somos divinos, somos seres finitos, que o mundo não começa juntamente com a nossa existência, nós entramos no curso da história, somos influenciados e moldados por ela, e não se dar conta disso é uma atitude solipsista, é ver as coisas negando a sua tradição.
Mas como a hermenêutica foi trazida para as ciências do espírito? Com o problema sobre o método. No método, esconde-se a arbitrariedade. Por quê? Porque cada método pode conduzir a um resultado diferente. Assim, já sabendo de antemão o resultado que quero alcançar, escolho um dos diversos métodos que estão a minha disposição. De acordo com Luiz Alberto Warat:
[…] As principais fórmulas de significação elaboradas pelos distintos métodos ou técnicas seriam: a) remissão aos usos acadêmicos da linguagem (método gramatical); b) apelo ao espírito do legislador (método exegético); c) apelo ao espírito do povo; apelo à necessidade (método histórico); d) explicitação dos componentes sistemáticos e lógicos do direito positivo (método dogmático); e) análise de outros sistemas jurídicos (método comparativo); f) idealização sistêmica do real em busca da adaptabilidade social (método da escola científica francesa); g) análise sistêmica dos fatos (método do positivismo sociológico); h) interpretação a partir da busca da certeza decisória (método da escola do direito livre); i) interpretação a partir dos fins (método teleológico); j) análise linguística a partir dos contextos de uso (método do positivismo fático); k) compreensão valorativa da conduta através da análise empírico-dialética (egologia); l) produção de conclusões dialéticas a partir de lugares (método tópico-retórico)[1].
Percebendo-se o sucesso do método nas ciências naturais, os teóricos das ciência do espírito importaram-no para as suas áreas de conhecimento. Inicialmente, o cumprimento do método, do passo-a-passo, era sinônimo de verdade/neutralidade. A verdade (resultado da pesquisa) estava garantida pelo método.
É como se o método fornecesse um ar científico para o trabalho. Mas, como dissemos anteriormente, o método esconde ideologias, arbitrariedades, assim, ele está(va) sendo utilizado como um álibi teórico para garantir uma escolha (resultado) de antemão tomada (almejado) pelo sujeito investigador.
Principalmente com Gadamer, a hermenêutica, até então somente utilizada para a interpretação de textos, vem demonstrar a discricionariedade que estava na escolha do método pelo sujeito investigador. Para isso, na sua obra Verdade e Método I, especificamente no tópico “2.3.2. O conceito de experiência e a essência da experiência hermenêutica”[2], o autor faz uma análise sobre o desenvolvimento das investigações científicas nas ciências do espírito, relação eu-tu, até chegar ao modo hermenêutico, que seria a experiência autêntica para investigação.
Primeiramente ele cataloga o método científico-naturalista, que obteve grande sucesso nas ciências naturais, e, tal como era aplicado lá, foi importado por Hume para as ciências do espírito. Gadamer afirma que este método é inautêntico para as ciências humanas porque promete neutralidade ao sujeito investigador (eu da relação eu-tu).
A crítica a este método está no fato de que é impossível fazer essa cisão entre tradição e sujeito investigador, pois isso é negar a sua historicidade, aquilo que o constitui. Nas palavras de Gadamer, esse modo de investigação representa “a fé ingênua no método e na objetividade”[3], pois acredita no poder de neutralidade que o método pode fornecer ao sujeito investigador, fazendo com que este não seja influenciado pela tradição em que está inserido. Ledo engano.
Posteriormente, o autor analisa o método dialético (ir)reflexivo, em que o sujeito investigador já não nega mais a historicidade que o constitui, mas, ao invés de deixar o sujeito investigado (tu da relação eu-tu) expressar-se através da sua vontade, o “eu” quer dominar o “tu” e falar por ele, isto é, quer “entendê-lo melhor que ele mesmo se entende”[4].
Dessa forma, será relevante, na “coisa” investigada, somente aquilo que o investigador entender como importante. Exemplo disso é quando, na leitura de um texto, somente procuramos a parte que nos interessa, muitas vezes, descontextualizando a ideia do autor, atribuindo-lhe um falso posicionamento somente para enquadrá-lo na nossa pesquisa. Por isso, Gadamer já afirmava que antes de dizer algo sobre o texto (que é um evento), devemos deixar que o texto nos diga algo.
Por fim, a autêntica experiência hermenêutica é aquela que propõe uma mútua abertura na relação eu-tu. Isto é, abertura do sujeito investigador para a historicidade, dando-lhe ciência de que é constituído pela tradição; e, abertura do sujeito investigador para o tu, objeto/sujeito investigado, que expressa-se naturalmente. Nas palavras de Gadamer, a experiência hermenêutica é um verdadeiro vinculo humano, ou seja, “pertencer-se uns aos outros [ou] poder-ouvir-se-uns-aos-outros”[5].
Assim, o método hermenêutico é a autêntica experiência. Porque considera a finitude do homem, percebe que ele está inserido na tradição, e que tradição não é somente os acontecimentos passados, mas também, e principalmente, linguagem.
Portanto, a experiência hermenêutica vem antes de qualquer método. Pois, além de deixar o objeto expressar-se naturalmente, reconhece todo o passado que constitui o sujeito investigador, ou seja, toda a influência que a história tem sobre ele revela ao sujeito investigador seus pré-conceitos.
Como mencionado anteriormente, o mundo não começa conosco, somos moldados pelo acontecer do tempo, por isso a neutralidade é ilusória, pois não existe um grau zero de compreensão, sempre haverá um pré-conceito, autêntico ou inautêntico. Reconhecer tudo isto e abrir-se para um diálogo autêntico é uma importante lição da hermenêutica.
Por fim, cabe destacar que a Crítica Hermenêutica do Direito (CHD, inicialmente batizada de Nova Crítica do Direito), idealizada pelo professor Lenio Streck, adaptou/importou, de forma inédita, o "método hermenêutico-fenomenológico" para o âmbito da pesquisa jurídica. Colocando uma pá de cal na algaravia existente na "metodologia" desta área do conhecimento, acostumada a trabalhar dialéticas inexistentes, deduções e induções indemonstráveis e ainda presa ao velho esquema sujeito-objeto das ciências naturais.
[1] Citado por STRECK, Lenio Luiz. Método de interpretação. In: Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2017, p. 142-3.
Para saber mais sobre a aplicação do método fenomelógico-hermenêutico à pesquisa jurídica, confira-se a coluna dos professores Lenio Streck e Rafael Tomaz de Oliveira: https://www.conjur.com.br/2015-dez-26/diario-classe-indicacoes-metodo-fenomenologico-hermeneutico
[2] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis (RJ): Vozes, 1997, p. 512.
[3] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis (RJ): Vozes, 1997, p. 529.
[4] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis (RJ): Vozes, 1997, p. 530.
[5] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis (RJ): Vozes, 1997, p. 532.
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