Diário de Classe

Algumas indicações sobre o método fenomenológico-hermenêutico

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26 de dezembro de 2015, 7h00

Na coluna deste sábado – que entremeia as festas de final de ano –  queremos tratar de um tema que nos é muito caro e, assim, compartilhar com os leitores da ConJur alguns indicadores para se trabalhar com o método fenomenológico no direito. Trata-se, portanto, de mais uma coluna que se encaixa nos quadrantes do problema da metodologia ou metódica jurídica. Todavia, o principal assunto será a filosofia e não o direito. De todo modo, o clima natalino parece-nos reivindicar uma reflexão um pouco mais profunda e rigorosa sobre o modo como nos relacionamos com a Cultura.

Nesse passo, é importante anotar que há uma transformação em torno do conceito de método no interior da modernidade. Nesse contexto, é possível falar em pelo menos duas acepções para o termo método: a) na primeira, e que fez mais fama desde o racionalismo cartesiano, baseia-se na ideia de certeza e segurança próprias da matematicidade do pensamento moderno. Nesse caso, o método da modernidade é sempre acabado e definitivo. Método, é, assim, o supremo momento da subjetividade. São fórmulas previamente determinadas que, se seguidas corretamente, irão garantir com certeza e segurança o resultado pretendido. b) Numa segunda hipótese, quando se procura falar em método no contexto daquilo que pode ser nomeado como “ambiente hermenêutico” (Heidegger, Gadamer, etc..), tem-se que ele é sempre precário e provisório e não permite sua total apreensão e domínio. Tanto é assim que Martin Heidegger – a quem devemos o desenvolvimento do método fenomenológico para além das conquistas husserlianas – nunca chegou a expor com precisão quais seriam os contornos de seu método. Método este que receberá ainda o adjetivo de hermenêutico.

Heidegger tratou de seu método, de modo provisório, no parágrafo 7º de Ser e Tempo, embora seja possível encontrar elementos formais, próprios do método fenomenológico em toda obra, principalmente nos parágrafos 5º e 6º (onde se trata da analítica do ser-aí[1] como descobrimento do horizonte para uma interpretação do ser em geral, e da tarefa de uma destruição das ontologias tradicionais). Além destes dados referentes a Ser e Tempo, podemos mencionar o curso Ontologia – Hermenêutica da Faticidade de 1921, que em seu parágrafo 14 traz algumas considerações sobre a fenomenologia. Há também um curso de 1927, intitulado Os Problemas Fundamentais da Fenomenologia, no qual Heidegger retoma a questão do método procurando ressaltar alguns aspectos relevantes que não haviam sido explicitados em Ser e Tempo.

Podemos dizer que este é o panorama geral e topográfico daquilo que foi escrito por Heidegger a respeito do método fenomenológico.

Quanto ao método propriamente dito, importante mencionar três pontos que o próprio Heidegger oferece como descrição, e que parecem exprimir, de um modo englobante, aquilo que o método fenomenológico comporta. São elas: a) a redução; b) a destruição; c) a construção. Para compreender o que significam estas três estratégias da fenomenologia hermenêutica, podemos remeter a uma frase situada no parágrafo 7º de Ser e Tempo que pode ser considerada uma espécie de núcleo de toda a filosofia heideggeriana: “Por encima de la realidad está la posibilidad. La compresión de la fenomenología consiste únicamente en aprehenderla como posibilidad”[2]. É preciso saber transpor-se para o âmbito em que Heidegger formula tais considerações, para que essa frase possa ser suficientemente compreendida.

Com efeito, o projeto heideggeriano se dá em função de pensar aquilo que ficou impensado pela tradição Metafísica: o sentido do ser. Mas, se há no interior da metafísica uma ontologia e se a ontologia tem por objeto o estudo do ser, o que permite Heidegger dizer que as ontologias metafísicas não pensaram o ser? Para responder a esta pergunta podemos aduzir pelo menos dois fatores: 1) o desenvolvimento daquilo que Emil Lask já havia antevisto e a que Heidegger deu o nome de diferença ontológica[3]; 2) um novo conceito de ser.

Desse modo, aquele que lê Heidegger com o conceito de ser da tradição metafísica (onto-teológica, conforme magnificamente pontifica Ernildo Stein em seu recente As Voltas com a Metafísica – Ed. Unijui), fatalmente incorrerá em mal-entendidos na leitura da obra de Heidegger, principalmente Ser e Tempo. Para o filósofo, o conceito de ser não é algo que se possa manipular como um objeto, tampouco descrevê-lo teoricamente como se faz com um ente. Ser, em Heidegger, é um conceito operativo o que implica dizer: sempre que lidamos com algo ou pensamos sobre algo, já aconteceu o ser. Esse ser sempre acontece num horizonte de sentido, que jamais chegará a integralizar-se e que não pode ser alcançado em sua plenitude. Ou seja, o ser não representa uma simples realidade, mas sempre está ligado a uma determinada possibilidade.

Com este novo conceito de ser – que como dissemos é operativo, pragmático – o filósofo pôde dizer que toda Metafísica (onto-teológica) pensou o ente enquanto dizia o ser. Isto significa: aquilo que a Metafísica chamou de ser, não era o ser, mas sim o ente. Nisto consiste a diferença ontológica: o ente só é – e portanto só pode ser percebido pelo ser-aí – no seu ser. Não há ser sem ente, porém o ente não pode ser compreendido fora do ser[4]. Isso implica uma dupla estrutura que percorre toda linguagem e que sempre opera conosco no momento em que pensamos ou fazemos algo e reduzimos esse pensar e esse fazer a enunciados. Como um conceito operativo, que acontece na compreensão do ser-aí de uma maneira profunda, a compreensão do ser possibilita que o ser-aí se relacione com os entes na dimensão que efetivamente aparece na superfície do discurso humano. O que se mostra é a superfície ôntica dos enunciados.[5] Porém, neste mostrar-se há algo que permanece oculto: o ser que já foi compreendido. O método – tradicional – sempre chega tarde.

Desse modo, temos por descrito o que significa o primeiro ponto levantado por Heidegger e que caracteriza a fenomenologia: a redução. Ou seja, pela redução é preciso deslocar o olhar do ente em direção ao ser, de modo que aquilo que permanece oculto no que se mostra, possa se manifestar[6].

Mas a possibilidade que caracteriza o método fenomenológico se manifesta também em um procedimento regressivo que realiza uma operação interna no seio da história da filosofia (autores como Günter Figal falam em repetição fenomenológica[7]), procurando destruir as sedimentações que se formam na linguagem e endurecem a tradição. Ou seja, trata-se de ler a tradição de modo que seja possível perceber nela possibilidades que ficaram inexploradas por uma série de encobrimentos. Neste sentido, Gadamer assevera: “Para que algo se mostre é necessário um desentranhamento do encoberto, a fim de que ele possa chegar a mostrar-se. Portanto, a palavra “fenomenologia” não significa apenas “descrição daquilo que é dado”, mas inclui a supressão do encobrimento que não precisa consistir apenas em falsas construções teóricas”[8].               

Esta afirmação de Gadamer é importante na medida em que, com Heidegger, tem-se uma verdadeira renovação da intenção da filosofia e do próprio método fenomenológico: quanto à filosofia, Heidegger a libera do corte opressivamente teórico que a marcava desde Descartes e a matematização do pensamento na modernidade, e abre caminho para sua invasão pela história, para a colocação da história como modelo de pensamento; ao passo que, na fenomenologia, enquanto como da investigação ou método, o filósofo rompe com a orientação para a descrição daquilo que é dado à consciência pela intencionalidade, para estabelecer a superação dos atrelamentos existentes na linguagem que implicam em encobrimento das possibilidades existentes na tradição. Heidegger substitui o termo “dado” – tão caro à fenomenologia transcendental de Husserl – por acontecer, procurando apontar para a compreensão do ser na abertura do ser-aí. Isso é de extrema importância porque, em Husserl, a fenomenologia continuava refém do dualismo metafísico entre sensível e supra-sensível e do esquema sujeito-objeto, o que tornava artificial qualquer possibilidade de um pensamento da história – e conseqüentemente das ciências humanas. Isto porque o conceito de intencionalidade e do “dado” a ser descrito, continuam pressupondo um sujeito que recebe – monadológicamente – um objeto intencionado em sua consciência. Para Heidegger, tanto o elemento sensível como o supra-sensível só podem ser pensados na radicalidade da própria existência, estando excluída qualquer possibilidade de justificação de um “mundo paralelo” no qual os dados sensíveis fossem pensados de um modo supra-sensível.

É importante, nesse sentido, lembrar que “o sensível e o supra-sensível tinham que estar vinculados ao próprio modo de o ser humano ser; sensível é o sentimento de situação, é o estar jogado no mundo; inteligível é a compreensão, a antecipação de sentido”[9].

Tendo isso presente, podemos dizer que a destruição se mostra como o elemento fenomenológico que nos permite olhar para a tradição orientados pelo desentranhamento das possibilidades que nela permanecem enrijecidas. Como lembra Figal, para Heidegger a grandeza da fenomenologia reside, basicamente, na descoberta da possibilidade do investigar na filosofia. Mas uma possibilidade compreendida em seu sentido mais próprio no qual ela permanece retida como possibilidade. Esse permanecer retida como possibilidade não implica num estado causal em relação à problemática “efetivamente real”, mas antes em mantê-la aberta e liberá-la dos soterramentos atuantes[10].     

O último elemento lembrado por Heidegger (a construção) pertence em verdade à destruição. Isto porque a repetição da tradição com a conseqüente supressão de seus encobrimentos lingüísticos não representa uma pura negação dela. Tampouco representa a destruição um prejuízo no qual a tradição tenha que ser totalmente removida, a partir da instituição de uma espécie de “grau zero”, senão que a destruição implica numa apropriação positiva do passado que sempre possibilita a construção de novos projetos.

Redução, Destruição e Construção são elementos do “método” fenomenológico-hermenêutico que não podem ser pensados fora daquilo que Stein nomeia como a dupla vertente do “método”: a vertente molar e a vertente molecular[11]. Na vertente molar se opera uma leitura regressiva da história da filosofia na perspectiva de liberar aquelas possibilidades que os encobrimentos presentes na própria tradição tendem a esconder. Enquanto que, na vertente molecular, tem-se como ponto de partida a micro-análise da cotidianidade do ser-aí na perspectiva de fazer aparecer as próprias possibilidades deste ente que permanecem encobertas pelo relacionar-se cotidiano com os entes que ignora aquela compreensão não temática do ser que somente uma interrogação e interpretação fenomenológicas podem trazer à tona[12].

Por certo, o tratamento de questões tão complexas não cabem em uma coluna. Mantemos como possibilidade, porém, o retorno à esta temática em uma outra oportunidade, para explorar melhor as interseções desses indícios fenomenológicos-hermenêuticos com o direito. Em coluna próxima mostraremos como o método fenomenológico vem sendo utilizado nas pesquisas jurídicas. O livro Lições de Crítica Hermenêutica do Direito é um bom exemplo disso, conforme se pode ver já na Introdução, que mostra como o revolvimento do chão linguístico é a condição para que as coisas se mostrem ao intérprete.

Boas Festas. Feliz Ano Novo a todos os leitores que prestigiaram nossos textos no ano de 2015, que tardará ainda muito em terminar…!


[1] Importante anotar que Heidegger constrói um conceito próprio para responder pelo ente que compreende o ser e, nesta compreensão tem implícita uma compreensão de seu próprio ser. Esse ente é o Dasein. Dasein é saber que sabemos. De onde nem saber que não sabe é alienação. 

[2] HEIDEGGER, Martin. Ser y Tiempo., op. cit., p. 61.

[3] Quanto a isso, Ernildo Stein aponta para o fato surpreendente de Heidegger ter herdado um elemento fundamental de seu pensamento dos arraiais neokantianos – que sabidamente era combatido pelas intenções do movimento fenomenológico. (STEIN, Ernildo. Uma Breve Introdução à Filosofia. 2 ed. Ijuí: Unijuí, 2005, p. 83).

[4] Neste sentido, já tivemos a oportunidade de se manifestar: “O ser não é uma generalidade, dirá Heidegger. Com o ser chegamos aos entes. O ser existe para dar sentido aos entes. Não vemos o ser; vemos o ente no seu ser. É neste sentido que Heidegger pensa as bases da diferença ontológica (ontologische Differenz)” (STRECK, Lenio. Martin Heidegger. In: Dicionário de Filosofia do Direito. Vicente de Paulo Barreto (Coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 427).

[5] Aqui remetemos para Verdade e Consenso (Streck, 2014) em que feita a discussão acerca do conceito de princípio, a partir da metáfora da aula na Universidade.

[6] Quanto ao uso do termo redução, Heidegger faz a seguinte ressalva: “Adoptamos así um término central de la fenomenología de Husserl, valiéndonos de la expresión pero no de su contenido. Para Husserl la reducción fenomenológica, que por primera vez elaboró de forma expresa en las Ideas para una fenomenología pura y una filosofía fenomenológica (1913), es el método de la reconducción de la mirada fenomenológica desde la actitud natural propia del hombre que vive en el mundo de las cosas y de las personas hasta la vida transcendental de la consciencia y sus vivencias noético-noemáticas, en las cuales se constituyen los objetos como correlatos de la consciencia. Para nosotros la reducción fenomenológica significa la reconducción de la mirada fenomenológica desde la comprensión, siempre concreta de un ente hasta la comprensión del ser de ese ente (proyectada sobre el modo de su estar develado)” (HEIDEGGER, Martin. Los Problemas Fundamentales de la Fenomenología. Tradução de Juan José Garciá Norro. Madrid: Trotta, 2000, p. 47).

[7] Cf. FIGAL, Günter. Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 34.

[8] Cf. GADAMER, Hans-George. Hermenêutica em retrospectiva. A virada hermenêutica. Vol. II. Tradução de Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 16.

[9] STRECK, Lenio Luiz. Martin Heidegger. op., cit., p. 427.

[10] Cf. FIGAL, Günter. op., cit., 34 e segs. Como afirma Heidegger, tendo em vista o âmbito puramente ontológico de problemarização: “Sólo mediante la destruccíon puede la ontología asegurarse fenomenológicamente la autenticidad de sus conceptos” (HEIDEGGER, Martin. Los Problemas Fundamentales de la Fenomenología. op., cit., p. 48).

[11] Cf. STEIN, Ernildo. A Questão do Método na Filosofia. Um estudo do modelo heideggeriano. 3 ed. Porto Alegre: Movimento, 1991.

[12] Cf. PAISANA, João. Fenomenologia e Hermenêutica. As relações entre as filosofias de Husserl e Heidegger. Lisboa: Editorial Presença, 1992, p. 198.

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