Direito do Agronegócio

Contratos de venda de safra futura: compromisso x revisão

Autor

20 de abril de 2018, 8h10

Spacca
Um instrumento útil para reduzir os riscos inerentes à produção agrária, sempre sujeita às variações ambientais e de mercado que nela ocorrem de modo peculiar, está representado pela possibilidade de venda futura de safras agrícolas ou de animais, com a pré-fixação dos preços a serem recebidos pelo produtor em data determinada e posterior àquela da contratação, tal como ajustada com o comprador, representado muitas vezes pelas tradings que atuam no mercado de grãos.

A ocorrência de tal contratação é economicamente justificável e juridicamente possível. Fixado o preço, estabelecida a qualidade do produto a ser entregue e a data limite para tanto, as partes podem estabelecer, de modo antecipado, várias das obrigações recíprocas e próprias à compra e venda de bens móveis, criando-se assim vantagens evidentes no que diz respeito à maior previsibilidade de custeio da produção, bem como à segurança superior no que diz respeito às datas de recebimento pelo preço do produto, permitindo-se, dessa forma, melhorar a organização da própria empresa.

A licitude de tais negócios é, como dito, indiscutível. Não havendo restrição da lei, das normas de ordem pública e dos bons costumes, a contratação é, em regra, sempre possível, em conformidade com os princípios gerais que regem o nosso ordenamento jurídico.

Além disso, não impõe a lei que o objeto da prestação exista ao momento da contratação, podendo ser ele, assim, determinado ou mesmo determinável, que é o que basta para que se considere o contrato válido sob essa perspectiva.

Problemas podem surgir, contudo. Contratos de compra e venda são, em regra, comutativos, ou seja, presume-se neles a existência de equilíbrio consensual entre prestação e contraprestação, ou seja, no caso entre o produto vendido e que deverá ser entregue no futuro e o seu preço.

Todavia, existindo variáveis por vezes incontornáveis e um conjunto de fatores que sempre podem alterar o preço dos produtos agrícolas, principalmente daqueles negociados na qualidade de verdadeiras commodities, não é nada desprezível a chance de haver grandes variações entre os preços de mercado dos produtos verificados no momento da contratação e aqueles, alterados, no momento previsto para a entrega da mercadoria ao comprador.

Colocam-se, aqui, frente a frente, princípios opostos que, com diferente intensidade, estruturam a teoria geral do contrato e orientam a análise dos intérpretes.

De um lado, a partir de ideias oriundas das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, erigiram-se os três princípios ditos clássicos e que continuam a ser reconhecidos como tais nos dias de hoje, escorados na noção da autonomia da vontade. Estabelecem eles que a) as partes convencionam o que querem, como querem, dentro do limite da lei (princípio da liberdade contratual lato sensu); b) o contrato faz lei entre as partes (princípio da obrigatoriedade dos efeitos contratuais); e c) o contrato somente vincula as partes, não beneficiando nem prejudicando terceiros (princípio da relatividade dos efeitos contratuais).

Com o advento de Estados mais intervencionistas e com o crescente espaço de direitos civis, por assim dizer, despatrimonializados — e que são representados, por exemplo, na figura dos direitos da personalidade —, cresceram os estudos em torno daquilo que se poderia chamar de novos princípios contratuais, que podem ser indicados nas figuras da boa-fé objetiva, da função social e do equilíbrio econômico do contrato.

No caso deste artigo, é este último princípio que nos interessa destacar, em especial no confronto com aquele outro, dito clássico, da força obrigatória dos contratos.

Voltemos ao ponto, pois. Um contrato de venda futura de soja pode ter fixado, por exemplo, o preço em R$ 50 no momento de sua celebração, o que deverá ser pago pelo comprador ao produtor apenas no momento da entrega da safra colhida. Contudo, supondo-se a ocorrência de uma grave quebra na produção nos EUA, tal valor poderia subir, no mercado nacional e internacional, para R$ 100.

O produtor poderia, legitimamente, alegar onerosidade excessiva para buscar a revisão do contrato celebrado ou então a sua rescisão?

Aí está o confronto entre o chamado “justo convencional”, ou seja, estabelecido a partir da livre negociação das partes, com o “justo natural”, que considera a equivalência real entre prestação e contraprestação.

De um lado, argumentaria o comprador que vale o que foi pactuado pelas partes de modo claro e inequívoco; que a natureza da atividade agrária pressupõe oscilações de preço e que elas poderiam também ocorrer no sentido inverso; que a contratação dessa forma realizada instrumentaliza operação econômica lícita e que ela constitui importante meio de financiamento e de diminuição dos riscos da produção.

Já o produtor poderia sustentar que a diferença do valor de mercado com o preço pago seria efetivamente lesiva; que a comutatividade da operação teria sido alterada por fato imprevisível e inevitável e que, ao final, haveria o enriquecimento injusto e desproporcional de uma das partes às custas da outra.

O que deve preponderar?

Segundo penso, o que foi contratado pelas partes. A revisão é excepcional, ainda que possível, mas deve ser realizada em situações específicas, não como regra.

A eventualidade de se atribuir ao juiz a faculdade de alterar cláusulas de contratação ajustadas pelas partes, ancorada em sobretudo em ideais de equidade, não pode ser vista de modo amplificado, a partir, inclusive, do que estabelece o artigo 478 do Código Civil, e que submete tal fato a situações excepcionais, ou seja, “extraordinárias e imprevisíveis”, tal como consta da lei, in verbis.

Desconsiderar tal regra significaria, na verdade, aumentar a insegurança jurídica neste tema, condenando ao desaparecimento essa modalidade de contratação que tem grande sentido e utilidade, na medida em que seja respeitada não apenas pelas partes, mas também pelo Estado-juiz.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!