Paradoxo da Corte

Desconsideração da personalidade não é sucedâneo da ação pauliana

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

17 de abril de 2018, 8h00

Para reprimir a fraude contra credores, o ordenamento jurídico brasileiro admite, no artigo 158 e seguintes do Código Civil, a declaração de ineficácia do negócio ou negócios que acarretaram a insolvência do devedor. O meio processual para atingir esse objetivo é a denominada ação pauliana (também chamada de revocatória), a ser ajuizada pelo credor lesado contra o devedor que alienou seus bens, levando-o à insolvência.

O prazo decadencial para o ajuizamento dessa demanda, a teor do disposto no artigo 178, inciso II, do Código Civil, é de quatro anos, a contar da data do registro do título de aquisição. O credor demandante tem o ônus de provar a precedência do crédito e o consilium fraudis entre o devedor e um terceiro, com o deliberado intuito de cometer o ato fraudulento. Este, na verdade, pode ser efetivado por inúmeras formas, como, por exemplo, transmissão gratuita de bens, contrato oneroso, renúncia à herança e ainda outras tantas registradas nos repertórios de jurisprudência.

É certo que a ação pauliana — clássico instrumento de tutela jurisdicional — em nada se confunde com a desconsideração da personalidade jurídica.

Prestigiando consistente evolução doutrinária, preceitua o artigo 50 do Código Civil que:

"Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica".

De modo cada vez mais frequente, a nossa praxe forense evidencia o recurso à desconsideração da personalidade jurídica, na tentativa de obter a integral satisfação de créditos inadimplidos. Com efeito, a lei autoriza o órgão jurisdicional ignorar a aparente autonomia patrimonial da pessoa jurídica, para obstar a utilização desta com o escopo deliberado de fraudar credores.

Contudo, torna-se necessário ressaltar que a incidência desta fictio iuris somente se dará quando restar amplamente comprovada a ocorrência de abuso.

Assim, não será suficiente a simples insolvência da sociedade para que seja ignorada a autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Na verdade, o credor que pretende a "desconsideração" tem o ônus de provar o conluio perpetrado pelos administradores da empresa. Caso o credor não produza prova da fraude, suportará o dano da insolvência da sociedade devedora, visto que serão mantidas as regras de limitação da responsabilidade dos sócios, bem como de outra sociedade. Desse modo, a desconsideração da personalidade jurídica somente será autorizada pelo Poder Judiciário quando for verificada de forma incontestável a ocorrência de ato fraudulento por parte dos administradores da sociedade; caso contrário, será mantida a separação do patrimônio dos sócios e da sociedade.

Importa observar que a literatura especializada, de um modo geral, preconiza que a admissibilidade da incidência da chamada disregard doctrine está condicionada à verificação do abuso da pessoa jurídica, demarcado pela fraude manifesta ou pela confusão patrimonial entre sociedade e sócios, ou mesmo entre sociedades.

Embora com finalidade assemelhada, o pleito de desconsideração da personalidade jurídica não pode se sobrepor ou mesmo ser sucedâneo da ação pauliana, sobretudo quando transcorrido o prazo de quatro anos!

Não se pretende afirmar que o credor tenha de requerer a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no prazo decadencial da ação pauliana. Essa posição ficou superada no polêmico precedente cujo voto condutor é da lavra do ministro Luis Felipe Salomão, ao ensejo do julgamento do Recurso Especial 1.180.714-RJ, pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.

Todavia, nesse importante acórdão, foi feita a ressalva de que a ação pauliana possui requisitos absolutamente distintos daqueles exigidos para autorizar a desconsideração da personalidade jurídica, textual:

"A partir dessas características já se conclui que a desconsideração da personalidade jurídica não se assemelha à ação revocatória falencial ou à ação pauliana, seja em suas causas justificadoras, seja em suas consequências.

A primeira (revocatória) visa ao reconhecimento de ineficácia de determinado negócio jurídico tido como suspeito, e a segunda (pauliana) à invalidação de ato praticado em fraude a credores, servindo ambos os instrumentos como espécies de interditos restitutórios, no desiderato de devolver à massa, falida ou insolvente, os bens necessários ao adimplemento dos credores, agora em igualdade de condições (artigos 129 e 130 da Lei n. 11.101/05 e artigo 165 do Código Civil de 2002).

A desconsideração da personalidade jurídica, a sua vez, não consubstancia extinção da pessoa jurídica, tampouco anulação/revogação de atos específicos praticados por ela, ainda que verificados os vícios a que faz alusão o artigo 50 do Código Civil.

Em realidade, cuida-se de superação de uma ficção jurídica, que é a empresa, sob cujo véu se esconde a pessoa natural do sócio".

Nesse mesmo sentido é a conclusão de Renato Franco de Campos, ao constatar de forma taxativa, em monografia específica, ainda inédita, que a desconsideração não pode ser admitida, quando o caso aponta para as características seculares da ação pauliana:

"Resta evidente, deste modo, que não se justifica, pelo simples fato de a fraude contra credores ter sido praticada por uma pessoa jurídica, aplicar-se a desconsideração da personalidade jurídica em lugar da anulação do negócio jurídico. Como já exposto, em quaisquer hipóteses em que o ordenamento jurídico pátrio dispuser de remédios específicos e de vasta utilização para atos ilícitos ou abusivos também específicos, não há se falar na utilização da desconsideração, a qual deve ficar restrita aos seus pressupostos de aplicação" (Desconsideração da personalidade jurídica: limitações e aplicação no direito de família e sucessões, dissertação de mestrado (USP), 2014, pág. 95-96).

Em conclusão, repita-se, pois, que o mecanismo da desconsideração incidental da personalidade jurídica não pode ser concebido como sucedâneo da ação pauliana.

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