Tribuna da Defensoria

O RE 593.818, o defensor público natural e a atuação custos vulnerabilis

Autor

  • Jorge Bheron Rocha

    é defensor público do estado do Ceará professor mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e doutorando pela Universidade de Fortaleza.

10 de abril de 2018, 10h50

O brilhante defensor público federal Gustavo de Almeida Ribeiro publicou recentemente artigo[1] tratando do indeferimento da participação das Defensorias Públicas como amici curiae no Recurso Extraordinário 593.818, cuja temática se refere ao período depurador da incidência ou não de maus antecedentes e no qual houve reconhecimento do requisito de repercussão geral para apreciação. Esclarece o defensor que, naquele caso concreto, a participação da Defensoria Pública da União (DPU), bem como das Defensorias estaduais, tem como fim a “democratização do processo, a maior participação de atores com posições diferentes (…) na construção de um resultado mais justo, em que oportunizada a participação da defesa”. Isso em razão de o defensor dativo do acusado já ter esclarecido que não iria comparecer para fazer a sustentação oral no julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.

Tratamos em outro artigo[2] acerca da questão da legitimidade da Defensoria Pública, que assume vertiginosa dinamicidade, especialmente diante da nova sistemática processual explicitada pelo Código de Processo Civil de 2015 e da missão constitucional alargada e aprofundada que a Emenda Constitucional 80/2014 incumbiu à instituição, concretizadas nas regras legais dispostas na Lei Complementar 80/94 — a Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (Londep).

De fato, a legitimidade e o interesse para o processo constituem, agora mais do que nunca, posições processuais dinâmicas, devendo ser aferidos a cada momento processual, e em relação ao conteúdo da prestação jurisdicional buscada e a forma (procedimento) com que se busca. Neste viés, resta claro que as Defensorias Públicas têm interesse para intervirem na demanda, não apenas como amici curiae[3], mas também como custos vulnerabilis, essencialmente porque está ali em discussão a formação de um precedente que vinculará o entendimento de todos os demais órgãos judiciários em matéria cujos efeitos atingem pessoas que são, em sua maioria, defendidas pela instituição.

Configura-se a legitimidade das Defensorias Públicas para a atuação como órgão interveniente na condição de custos vulnerabilis no caso do RE 593.818, para o fiel cumprimento de sua missão institucional prevista no artigo 134 da Constituição da República, em nome próprio e no regular exercício da Procuratura Constitucional das Vulnerabilidades[4], que se extrai da necessidade de se buscar — e alcançar — a participação ativa e substancial na formação do precedente que acarretará grande impacto no acervo jurídico de centenas ou, talvez, milhares de pessoas que são representadas pela instituição.

Contudo, a situação é diversa em relação à Defensoria Pública de Santa Catarina, porque esta, na verdade, atrai a representação judicial da parte acusada no recurso extraordinário em razão de fazer parte de sua estrutura orgânica o defensor natural para a atuação no caso concreto.

Explica-se.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina acolheu, em sede de julgamento da Apelação Criminal 2007.027017-2, a tese da defesa que argumentou pelo não reconhecimento dos maus antecedentes em razão de as condenações criminais anotadas em nome do acusado terem sido extintas em período anterior aos cinco anos que antecederam o delito apurado no processo.

O Ministério Público recorreu dessa decisão, apresentando nas razões do RE argumentos no sentido de ver reconhecidas as referidas anotações como maus antecedentes, uma vez que não são aptas a serem consideradas reincidência.

Para as contrarrazões ao RE, fora nomeado advogado dativo, conforme fica expresso na própria peça, apresentada ainda no ano de 2008, ou seja, há dez anos.

Neste ponto, é necessário frisar que em 2008 ainda não existia a DP-SC, o que só veio a ocorrer em 2012, tendo sido implantada, de fato, em 2013, quando tomaram posse e passaram a atuar os defensores públicos aprovados no concurso público específico.

Com a posse dos membros da instituição, os processos que antes eram conduzidos por advogados dativos passaram a ser conduzidos por defensores públicos lotados nos órgãos e núcleos de atuação responsáveis pelas respectivas unidades jurisdicionais, a fim de cumprir com seu múnus público de assistência jurídica integral e gratuita e em obediência ao comando legal de que o custeio e o fornecimento dessa assistência pelo Estado deve ser feito por intermédio da Defensoria Pública (artigo 4º, parágrafo 5º, Londep).

Especificamente, o membro da Defensoria Pública de Santa Catarina com as atribuições de recorrer e acompanhar os recursos extraordinários é o defensor público natural para atuar no RE 593.818.

O Princípio do Defensor Público Natural se refere àquele membro da Defensoria Pública, aprovado em concurso de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil, detentor da garantia da inamovibilidade, que exercerá, com independência funcional, a orientação, a promoção e a defesa aos necessitados, dentro de seu plexo de atribuições previamente fixadas, com a vedação de designações casuísticas efetuadas pelo defensor público-geral[5]. Há, nesse princípio, portanto, dois importantes prismas: de um lado, assegurar ao membro da Defensoria Pública o desempenho de seu múnus de forma independente em prol da plena defesa do acusado e, de outro, a garantia do acusado de que haverá um defensor público para atuação em seu processo e que essa atuação se dará com a energia e o desembaraço necessários à causa que patrocina, sem receios de o ver afastado, removido ou substituído.

O Princípio do Defensor Público Natural é, portanto, resultado do sistema constitucional e das soluções por ele adotadas para a salvaguarda das garantias da pessoa investigada ou acusada, pois, ao determinar que a assistência jurídica seja feita pela Defensoria Pública, Estado-defensor, cada caso será automaticamente distribuído ao defensor público com atribuições previamente fixadas na Constituição, nas leis e nos normativos internos, ou seja, o defensor público natural.

Além de presente na doutrina[6] e da legislação[7], o Princípio do Defensor Público Natural passou a ser reconhecido pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[8], de forma explícita, e do Supremo Tribunal Federal[9], embora não se referindo expressamente ao instituto.

Ressalte-se que a circunstância de a parte poder nomear a qualquer momento um defensor privado não abala o fundamento do princípio, da mesma forma que a existência da ação penal privada exclusiva ou da ação penal privada subsidiária da pública não elidem o Princípio do Promotor Natural.

Pois bem.

Como consequência do aqui exposto, após a criação, estruturação e início das atividades da Defensoria Pública de Santa Catarina junto ao Tribunal de Justiça daquele estado, especialmente com a implementação de um núcleo de recursos extravagantes, a representação judicial no processo referente à parte acusada na ação penal originária do RE 593.818 passou a ser feita pelo defensor público com as atribuições fixadas pela Lei Complementar catarinense 575/2012 e pelas normas internas da instituição, e não mais pelo advogado dativo.

Mesmo atualmente, quando o processo inicialmente é conduzido por defensor dativo, por inexistir defensor público na comarca, ou por de impossibilidade de atuação deste[10], eventual recurso interposto por aquele no Tribunal de Justiça, Turma Recursal ou tribunais superiores deve ser acompanhado pelo defensor público ali lotado, sendo este o defensor natural do assistido[11].

Formulando de outra maneira: a assistência jurídica integral e gratuita (artigo 134, CRFB) fornecida pelo estado de Santa Catarina passou a ser exercida obrigatoriamente (artigo 4º, parágrafo 5º, Londep) pela Defensoria Pública instalada e sob a responsabilidade do membro da instituição com atribuições previamente estabelecidas, o defensor público natural (artigo 4º-A, IV, Londep).

Ocorre que, atualmente, não obstante a Defensoria Pública de Santa Catarina possuir um núcleo específico para interpor recursos contra as decisões do TJ-SC para o STJ e para o STF, a instituição não mantém em Brasília um escritório de representação, de tal sorte que os processos sob a alçada da Defensoria Pública de Santa Catarina com trâmite naqueles tribunais são acompanhados pela Defensoria Pública da União.

De fato, as Defensorias Públicas estaduais sem representação em Brasília, via de regra, têm seus recursos acompanhados pelos membros da Defensoria Pública da União, procedimento corriqueiro e que se encontra pacificamente acolhido na jurisprudência do STF de há muito[12].

Exsurge, portanto, que a representação judicial da parte na ação penal originária do RE 593.818 deve ser feita, no âmbito dos tribunais superiores e nesta situação concreta, ou pela Defensoria Pública de Santa Catarina ou pela Defensoria Pública da União, que devem, uma ou outra, acompanhar o processamento do feito, promovendo a mais ampla defesa dos direitos fundamentais por meio da atuação que propicie a mais adequada e efetiva tutela dos direitos do acusado (artigo 4º, X, Londep), inclusive a sustentação oral no dia do julgamento.

Ademais, apenas como reforço argumentativo, é nítido que o caso atrai a aplicação da Súmula 523 do próprio STF, de que no processo penal a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu, prejuízo este que se demonstra nitidamente a partir do fato de que, no dia do julgamento, poderá haver a sustentação oral por um membro do Ministério Público estadual, como parte, e por um membro da Procuradoria da República, como custos juris, ambos concordantes com a tese desfavorável ao acusado, sem que haja, como forma de equilíbrio na persecução penal, uma manifestação em seu nome, ou em defesa da tese benéfica aos acusados em geral.

A necessidade de acompanhamento do caso no STF pelas Defensorias Públicas gira em torno de duas perspectivas diversas.

A primeira é a de que, não é demais repetir, o acusado tem direito à assistência jurídica integral e gratuita em todos os graus, o que nos remete à possibilidade de, para tanto: (i) a Defensoria Pública de Santa Catarina enviar um representante da instituição à Brasília para acompanhar o julgamento do RE a fim de efetivar a garantia de acesso à Justiça individual; ou (ii) solicitar à Defensoria Publica da União o acompanhamento do feito perante o STF, também como forma de efetivação da sobredita garantia. Tanto em uma hipótese quanto em outra, é completamente desnecessário requerimento para ingresso no feito ou solicitar ao relator que lhe oportunize a sustentação oral. Regimentalmente, basta comparecer no dia e na hora da sessão e inscrever-se para ter a palavra, realizando a defesa da tese do assistido. Contudo, por zelo, deve-se comunicar ao STF a regularização da representação do acusado.

A segunda é a de que se está diante do embate de teses de acusação e defesa e de que há a necessidade de se levar a visão da própria Defensoria Pública, instituição apta a contribuir com a inclusão democrática e a multiplicidade das formas de expressões dos indivíduos e grupos vulneráveis, democratizando o processo, ampliando e qualificando o diálogo jurídico. Esse entendimento tem suporte na legislação e é consonante com os princípios constitucionais, tendo por finalidade obter o republicano equilíbrio entre os interesses de guarda do ordenamento jurídico, que serve à sociedade, na aplicação justa da lei penal através da acusação e da eventual condenação — representados pelo Ministério Público Custos Juris, e os interesses de guarda dos indivíduos, que compõem a sociedade, na aplicação justa da lei penal através da defesa e da presunção de inocência, e que eventual condenação não se dê de forma errônea, desnecessária ou excessiva — aqui representados pela Defensoria Pública Custos Vulnerabilis.

Assim, sob essas duas perspectivas e tomadas as devidas providências, com vistas à efetivação da assistência jurídica integral e gratuita do acusado e da paridade de armas, bem assim diante da representação adequada das Defensorias Públicas como forma de garantia da participação plural das expressões sociais no contraditório substancial, impõem-se ao relator intimar o órgão natural de defesa para comparecer ao julgamento e fazer a sustentação oral, se assim este entender adequado; e deferir a participação custos vulnerabilis ou amicus curiae das Defensorias Públicas que requeiram a admissão ao feito.

Por fim, é importante deixar registrado que, mais que uma faculdade de a Defensoria Pública de Santa Catarina ou de a Defensoria Pública da União exercerem, uma ou outra, o contraditório e ampla defesa em nome do acusado, este é um dever que se plasma no Princípio do Defensor Público Natural, que, longe de ser mais um privilégio corporativo, é a densificação da garantia fundamental de acesso à Justiça inscrito como cláusula pétrea na Constituição Federal a favor do defensorado.


[1] RIBEIRO, Gustavo de Almeida. Admissão da Defensoria em julgado no Supremo garante a paridade de armas. In https://www.conjur.com.br/2018-mar-31/gustavo-ribeiro-defensoria-publica-paridade-armas. Acesso em 6/4/2018.
[2] ROCHA, Jorge Bheron. FILHO, Edilson Santana Gonçalves. STF admite legitimidade da Defensoria para intervir como custos vulnerabilis. In https://www.conjur.com.br/2018-abr-04/legitimidade-defensoria-intervir-custos-vulnerabilis. Acesso em 6/4/2018.
[3] Sobre a diferença entre a atuação custos vulnerabilis e aquela efetivado como amicus curiae, ver ROCHA, Jorge Bheron. A Defensoria como custos vulnerabilis e a advocacia privada. In https://www.conjur.com.br/2017-mai-23/tribuna-defensoria-defensoria-custos-vulnerabilis-advocacia-privada. Acesso em 12/10/2017.
[4] ROCHA, Jorge Bheron. Breves Notas Sobre Defensoria Pública e Acesso à Justiça no Novo Código de Processo Civil. In Diálogo ambiental, constitucional e internacional, volume 10 / Bleine Queiroz Caúla et ali (org.); Jorge Miranda (coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. P. 291/302.
[5] Mutatis mutandi já decidido, em relação ao membro do Ministério Público, pelo STF no HC 67.759, rel. min. Celso de Mello.
[6] ROCHA, Jorge Bheron. Legitimação da Defensoria Pública para ajuizamento de ação civil pública tendo por objeto direitos transindividuais. Florianópolis: Empório Modara Editora, 2018, p.44. ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Forense, 2014. P. 513.
[7] Implicitamente na reforma trazida pela Lei 11.449/07 ao CPP, que tornou obrigatório, no caso de o acusado não nomear advogado, o envio de cópia integral do auto de prisão em flagrante à Defensoria Pública, e não à outra instituição, como escritórios populares, núcleos de prática jurídica ou OAB, de forma que o órgão natural para o patrocínio da defesa daqueles que não constituírem causídico privado, e, por conseguinte, se encontrarem em situação de extrema vulnerabilidade frente ao Estado-persecutor, é a Defensoria Pública. Da mesma forma o artigo 289-A, parágrafo 4º e o artigo 456, parágrafo 2º. O Princípio do Defensor Público Natural tomou forma ampla, para além das hipóteses previstas no CPP, com a introdução dos parágrafo 5º ao artigo 4º e do inciso IV ao artigo 4º-A da Londep.
[8] RHC 61.848/PA, min. Felix Fischer.
[9] RHC 106.394/MG, min. Rosa Weber.
[10] Nos casos de conflito de teses (http://www.conjur.com.br/2017-jul-11/tribuna-defensoria-atuacao-defensoria-complementaridade-advocacia-privada) ou em que for suspeito ou impedido (Anotações aos art. 186 do Novo CPC. In APP CPC Anotado. ReadlightSoftware https://goo.gl/QmwmGn)
[11] Ou pelo menos atuar como custos vulnerabilis, posição esta defendida em A atuação da Defensoria Pública em complementaridade à advocacia privada. In https://www.conjur.com.br/2017-jul-11/tribuna-defensoria-atuacao-defensoria-complementaridade-advocacia-privada.
[12] AIQO 237.400, min. Ilmar Galvão.

Autores

  • é defensor público do estado do Ceará, professor de Direito e Processo Penal, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e doutorando em Direito Constitucional.

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