Interesse Público

Lei 13.640/18: fim da controvérsia sobre os aplicativos de transporte de passageiros?

Autor

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

5 de abril de 2018, 12h50

Em 26 de março de 2018, foi sancionada, sem veto presidencial a qualquer dos dispositivos, a Lei 13.640/18, que altera a Lei 12.587/12 (Lei de Mobilidade Urbana) para conceituar e disciplinar o transporte remunerado privado individual de passageiros.

A recente lei em comento alterou o inciso X do artigo 4º da Lei 12.587/12, para conceituar o transporte remunerado privado individual de passageiros como aquele não aberto ao público, destinado à realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou plataformas de comunicação em rede.

A alteração tem sido comemorada por aplicativos como Uber e Cabify, que enxergam uma vitória na inserção do conceito acima referido, entendendo que estaria suprida a lacuna legal e assim afastada a alegação de irregularidade em seu funcionamento. Lado outro, os taxistas estariam a amargar um fracasso, já que não freado o avançar dos aplicativos.

De fato, a redação atual é um marco importante, mas nos parece longe de consagrar um êxito retumbante dos aplicativos e menos ainda de esgotar as discussões que a matéria ainda pode ensejar. Refiro-me não a controvérsias antigas, mas a possíveis novos debates que o atual cenário pode provocar.

Oportuno lembrar que entre os argumentos mais comuns apresentados pelos defensores dos aplicativos destaca-se a conveniência de se admitir alternativa ao serviço ofertado pelos taxistas. Assim, adotada essa linha de raciocínio, seus defensores afirmam ser positiva para a população a competição entre os serviços ofertados via táxi e via aplicativos. Utilizado o mesmo raciocínio, a “legalização” dos aplicativos não poderia aniquilar o serviço de táxi, porque reduziria o ambiente concorrencial, visto como salutar ao usuário. Portanto, não se estaria a cogitar da substituição de um “modelo” por outro, mas da inclusão de nova forma de prestação e adotando-se cuidados hábeis a preservar ambos os modelos.

A Lei 13.640/18 parece agasalhar essa lógica ao acrescentar o artigo 11-A, que conferiu competência aos municípios e ao Distrito Federal para regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros, observados os princípios e diretrizes que a lei já oferece destinados a conferir eficiência, a eficácia, a segurança e a efetividade na prestação do serviço.

De pronto, o legislador assinala que o serviço de que cuida o novo inciso X do artigo 4º não confere aos seus prestadores liberdade total de atuação, impondo-se, ao contrário, parâmetros mínimos que os municípios e Distrito Federal terão que observar. Os parâmetros ambicionam, conforme o legislador assinala, assegurar eficiência, eficácia, segurança e efetividade. Nem poderia ser diferente, sob pena de desprestigiar o contratante do serviço.

Para além disso, o legislador fixa obrigações e condições que oneraram o serviço de que cuida o inciso X, evitando que, ao contrário do serviço de táxi, sujeito à disciplina e fiscalização municipal, mais ou menos rigorosa, a depender do município em questão, a atuação via aplicativo se operasse sem amarras.

O parágrafo único do novo artigo 11-A determina que os municípios e o Distrito Federal, quando da regulamentação e fiscalização prevista no caput, cobrem os tributos municipais devidos pela prestação do serviço (inciso I), exijam a contratação do seguro de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP) e do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT) (inciso II) e, por fim, exijam também a inscrição do motorista como contribuinte individual do Instituto Nacional do Seguro Social, nos termos da Lei 8.213/91 (inciso III).

Na toada de acautelar o usuário, o artigo 11-B fixa ainda condições direcionadas ao motorista, a quem caberá cumprir as seguintes condições: possuir Carteira Nacional de Habilitação na categoria B ou superior que contenha a informação de que exerce atividade remunerada (inciso I), conduzir veículo que atenda aos requisitos de idade máxima e às características exigidas pela autoridade de trânsito e pelo poder público municipal e do Distrito Federal (inciso II), emitir e manter o Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV) (inciso III) e apresentar certidão negativa de antecedentes criminais (inciso IV). Por derradeiro, o parágrafo único do recente artigo 11-B dispõe que a exploração dos serviços remunerados de transporte privado individual de passageiros sem o cumprimento dos requisitos acima destacados implica caracterização de transporte ilegal de passageiros.

Conclui-se, pois, que a lei, mesmo contemplando a pretensão dos aplicativos, não autoriza a prestação desatrelada de cuidados que elegeu cruciais, antecipando-se ao legislador municipal e distrital.

Vale dizer, a regulamentação a ser desempenhada nas esferas municipal e distrital não poderá ignorar as exigências que o legislador impôs. Assim, motoristas devem demonstrar o cumprimento das condições legais, sem prejuízo das regras dirigidas aos entes políticos, igualmente cogentes, limitando-se, sob essa ótica, a capacidade de regulamentação.

Municípios e Distrito Federal recebem a missão de regulamentar a partir do que o legislador federal desenhou. Oferece-se um piso de condições, mas não um teto. Se assim fosse, o espaço para a regulamentação estaria esvaziado, restando nada ou quase nada a fazer aos municípios e ao Distrito Federal. O esvaziamento da competência em nada se ajustaria ao que a lei estabeleceu, além de amesquinhar fatores locais hábeis a influenciar a regulamentação.

Entendemos que, na oportunidade da regulamentação, os entes poderão acrescer novas exigências, a perseguir as balizas enunciadas no parágrafo único do artigo 11-A. Medidas que se voltem a garantir eficiência, segurança, efetividade e eficácia e que evitem o fratricídio que em nada protegeria o cidadão poderão constar da legislação municipal e distrital.

Entendemos que a Lei 13.640/18 não encerra em si o contorno sobre condições e obrigações a afetar motoristas e aplicativos. Ela os inaugura. Municípios e o Distrito Federal poderão adicionar novas condições, sob pena de ser mera ficção a competência que lhes foi assegurada.

Portanto, as controvérsias tendem a prosseguir e oscilarão a cada diploma normativo construído, reabrindo-se a guerra entre taxistas e aplicativos.

Regramentos mais rigorosos serão aplaudidos por taxistas e vaiados pelos aplicativos. Regramentos mais flexíveis, que traduzirem maior facilidade para os aplicativos, em detrimento de eventual maior disciplina local na abordagem dos táxis, também serão criticados.

Assim, em cada localidade e no Distrito Federal, as disputas continuarão.

Uma interessante discussão poderá sobrevir se determinado município introduzir exigências que constaram do primeiro texto aprovado pela Câmara dos Deputados, mas foram afastadas pelo Senado e hoje inexistem na lei sancionada.

O Senado afastou a necessidade de os carros terem placa vermelha bem como a obrigação de comprovar a propriedade do veículo. A Câmara dos Deputados manteve o texto com os decotes da casa revisora, mas, como já dito, preservou a competência para a regulamentação.

Poderá se argumentar que a atitude do legislador federal inviabiliza que a regulamentação local reinsira tais exigências. Mas o argumento contrário seria o de que o legislador federal optou por não considerar como imperiosas as condições que extirpou, sem que com isso se possa retirar a autonomia dos entes para as estabelecer.

O debate está longe do fim.

Autores

  • é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Tem pós-doutorado na Universidade George Washington (EUA).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!