Ambiente Jurídico

A atuação do Ministério Público no processo coletivo ambiental

Autor

  • Álvaro Luiz Valery Mirra

    é juiz de Direito em São Paulo doutor em Direito Processual pela USP especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França) coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

21 de outubro de 2017, 7h00

Spacca
O Ministério Público, nos termos do artigo 127, caput, da Constituição Federal, é instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, a quem incumbe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Trata-se, como sabido, de órgão estatal independente que defende em juízo os interesses da sociedade na proteção do meio ambiente. Nesse sentido, o parquet atua no âmbito judicial como órgão da sociedade e verdadeiro defensor do povo, representando em juízo todos os indivíduos da sociedade, titulares do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado[1].

Importante anotar que, na condição de instituição social secundária[2], o Ministério Público exerce representação funcional, modalidade de representação política diversa da representação eleitoral, atribuída pela CF e pela legislação infraconstitucional, o que faz com que o parquet se apresente como ente intermediário entre os indivíduos e os representantes eleitos, com atuação direcionada, para o que aqui importa, à defesa dos interesses da sociedade em matéria ambiental. Assim, embora não eleitos, os membros do Ministério Público têm legitimidade, sob o ponto de vista político, para representar os interesses do corpo social na defesa do meio ambiente, dentro do quadro de uma representação ampliada, consagrada pela CF, que combina a representação político-eleitoral com a representação funcional, ambas complementares[3].

No âmbito do processo coletivo ambiental, o Ministério Público, dentre todos os entes intermediários habilitados a agir em juízo, é, sem dúvida nenhuma, aquele que tem posição mais destacada. De fato, no sistema jurídico brasileiro, a regra é a da legitimação do Ministério Público para a propositura das ações coletivas ambientais, a ele sendo reconhecida, na quase totalidade dos instrumentos processuais, o poder de provocar o exercício da jurisdição na defesa do meio ambiente[4]. Além disso, nos casos em que não exerce a ação, o Ministério Público intervém, necessariamente, como fiscal da ordem jurídica (custos legis).

Aliás, para o MP há mais que poder de agir e de intervir em defesa do meio ambiente. Na verdade, está-se diante de autêntico dever-poder de agir e de intervir em juízo para a tutela da qualidade ambiental, vigorando, para o parquet, o princípio da obrigatoriedade da ação e da intervenção na matéria[5].

Por outro lado, seja como autor da demanda, seja como interveniente na condição de custos legis, o Ministério Público é sempre parte no processo, dotado de poderes e faculdades processuais e sujeito a ônus e deveres ao longo de todo o procedimento. Dessa forma, quer figure como parte principal (autor), quer se apresente como parte secundária (fiscal da ordem jurídica), incumbe ao MP, entre outras atividades processuais, formular pedidos, apresentar alegações, produzir provas, promover a execução do julgado favorável, controlar a atuação processual do legitimado que ajuizou a demanda e assumir a titularidade desta na hipótese de má ou imperfeita condução do feito pelo autor originário[6].

Aspecto relevante a ser ressaltado é o de que toda a atividade processual desenvolvida pelo Ministério Público nas ações coletivas ambientais deve se orientar, invariavelmente, no sentido da adequada proteção jurisdicional do meio ambiente. Não há que se falar, consequentemente, na imparcialidade do membro do MP, ainda quando atue como custos legis. A atividade do parquet nas ações coletivas ambientais, mesmo na função de fiscal da ordem jurídica, está permanentemente vinculada à defesa do meio ambiente, de sorte que a sua intervenção, longe de ser desinteressada, destina-se a auxiliar o autor da demanda e, ao mesmo tempo, a controlar a atuação processual do demandante[7].

Como diz Hugo Nigro Mazzilli:

É preciso deixar claro que, ao contrário do juiz, que é tecnicamente desinteressado da solução da lide, o Ministério Público sempre tem um interesse a zelar dentro da relação processual. Ora esse interesse é indisponível e está ligado a uma pessoa ou a uma relação jurídica, ora diz respeito à defesa da coletividade como um todo e então terá caráter social. Em todos esses casos, porém, o papel do Ministério Público não se confundirá com o juiz: atua mal o membro do Ministério Público que procura comportar-se como um minijuiz, ou que, invocando a velha concepção de mero fiscal da lei, só contempla o que está ocorrendo dentro do processo e, ao final, dá um parecer como mero e desnecessário assessor jurídico do juiz. Na verdade, o papel do Ministério Público — seja enquanto órgão agente ou interveniente — será o de concorrer de maneira eficiente para a defesa do interesse público cuja existência justificou seu ingresso nos autos[8].

Não é diversa, no ponto, a análise de Marcelo Pedroso Goulart ao tratar da independência funcional do membro do Ministério Público, à luz do objetivo institucional da instituição:

A independência funcional, antes de ser uma garantia do membro do Ministério Público, é uma garantia da sociedade, pois instituída para dar ao povo a segurança de contar com um agente político que, no exercício das funções de defesa dos interesses sociais, possa atuar com independência, imune às pressões do poder.

A independência funcional garante a imunidade do membro do Ministério Público às pressões externas e intrainstitucionais, mas não o libera para agir com base em juízos estritamente subjetivos e pautas pessoais. A imunidade decorrente desse princípio garante independência sim, mas para atuar de acordo com o objetivo estratégico. No exercício das suas atribuições, o membro do Ministério Público vincula-se à estratégia institucional e aos compromissos assumidos, via Constituição, com a sociedade brasileira[9].

A orientação aqui exposta resulta da concepção já mencionada de que o Ministério Público, como ente intermediário intitulado à defesa da qualidade ambiental, é legítimo representante da sociedade na proteção do meio ambiente, inclusive na esfera jurisdicional. Se assim é, ou seja, se o MP representa em juízo todos os membros da coletividade, titulares do direito ao meio ambiente, não se pode tê-lo como sujeito imparcial e descomprometido com os interesses destes últimos na preservação da qualidade ambiental. A própria representação funcional exercida pelo parquet em tema de meio ambiente impõe a atuação comprometida de seus membros com a defesa intransigente desse bem de uso comum do povo, objeto de um direito humano fundamental de titularidade coletiva[10].

Esse é, portanto, em linhas gerais, o perfil da atuação do Ministério Público nos processos coletivos ambientais, especialmente no que concerne à ação popular, à ação civil pública e ao mandado de segurança coletivo.

Há, contudo, uma exceção, relacionada às ações integrantes do sistema de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade de leis e atos normativos[11].

Efetivamente, a Constituição de 1988 manteve a tradição do Direito brasileiro no tocante à legitimação do Ministério Público para o controle concentrado e abstrato de constitucionalidade de leis e atos normativos. De acordo com o artigo 103, VI, da CF, tem legitimidade para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade, em caráter concorrente com inúmeras outras autoridades, órgãos e entidades, o procurador-geral da República.

Saliente-se que, conforme resulta do texto constitucional, a titularidade do poder de provocar o exercício da jurisdição constitucional, no caso, não foi concedida ao Ministério Público como um todo, abrangente dos seus variados ramos e órgãos. Diversamente, em termos mais restritos, a legitimação para a ADI e a ADC foi atribuída, tão só, ao chefe do Ministério Público da União. Assim, apenas encontra-se habilitado a propor ações direta de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade um dos órgãos do Ministério Público.

Por outro lado, o procurador-geral da República, nos casos em que não for o autor da ADI ou da ADC, deve intervir no feito na condição de custos legis, a fim de manifestar-se sobre a procedência ou improcedência do pedido, antes da prolação da decisão pelo Supremo Tribunal Federal.

Ressalte-se que o procurador-geral da República, no controle jurisdicional concentrado de constitucionalidade de leis e atos normativos, atua de maneira imparcial, com total autonomia e independência, opinando, ao final, pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei ou ato normativo segundo sua livre convicção[12]. Mesmo nas hipóteses em que é o autor da ADI ou da ADC, o procurador-geral da República, conforme entendimento consagrado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal[13] e no próprio Regimento Interno dessa corte[14], não está obrigado a sustentar a procedência do pedido, podendo manifestar-se de maneira contrária ao entendimento exposto inicialmente.

Nesses termos, ao contrário do que se passa nos processos coletivos ambientais em geral, em que, como visto, o órgão do Ministério Público age ou intervém como representante dos interesses da sociedade na defesa do meio ambiente, integralmente comprometido com o cumprimento da função institucional que lhe cabe, por força de mandamento constitucional, de buscar em juízo a tutela jurisdicional do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, na ação direta de inconstitucionalidade e na ação declaratória de constitucionalidade relacionadas à temática ambiental, o procurador-geral da República, ao agir ou intervir, representa o interesse público na preservação da ordem constitucional, sem levar em conta a matéria debatida.

Daí por que se revela de grande importância, nos processos das ADIs e ADCs, a possibilidade de intervenção dos demais órgãos e ramos do Ministério Público que tenham entre as suas atribuições institucionais a defesa do meio ambiente, na função de amici curiae, a fim de levarem ao conhecimento da corte constitucional as implicações ambientais da prevalência ou não da norma considerada e as teses jurídicas capazes de influir sobre o julgamento final. A abertura trazida pelo parágrafo 2º do artigo 7º da Lei 9.868/1999, concernente à manifestação nos processos das ADIs e ADCs de “órgãos e entidades”, sem qualquer restrição, autoriza, por certo, a participação do Ministério Público como um todo, na qualidade de amicus curiae[15], valendo lembrar que a representatividade do parquet, como porta-voz dos titulares do direito de todos ao meio ambiente, a ser aferida pelo relator do feito, decorre da própria Constituição Federal.

Do mesmo modo, nada obsta a que, nas audiências públicas designadas pelo presidente do Supremo Tribunal Federal ou pelos relatores dos processos das ADIs e ADCs, para esclarecimento de matéria ou circunstância de fato relativa à norma ambiental impugnada ou defendida, sejam tomados os depoimentos de membros do Ministério Público atuantes nas Promotorias de Justiça ou Procuradorias da República de Meio Ambiente, na condição de pessoas com experiência e autoridade no tema discutido[16].


[1] GOULART, Marcelo Pedroso. Elementos para uma teoria geral do Ministério Público. Belo Horizonte: Arraes Editora, 2013, p. 82-83; MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, processo civil e defesa do meio ambiente. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, p. 314.
[2] A expressão é de Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Direito da participação política – legislativa, administrativa, judicial: fundamentos e técnicas constitucionais da democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 18-19.
[3] Sobre a noção atualizada de representação funcional, como representação política diversa da representação eleitoral, aplicada, inclusive, ao Ministério Público, ver VIANNA, Luiz Werneck; BURGOS, Marcelo. Revolução processual do Direito e democracia progressiva. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os Três Poderes no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ; FAPERJ, 2002, p. 385 e 394 e seguintes; MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 88-85 e 135-137. Em termos gerais, ROSANVALLON, Pierre. La démocratie inachevée: histoire de la souveraineté du peuple em France. Paris: Gallimard, 2000, p. 431. Para GOULART, Marcelo Pedroso, o MP exerce a representação funcional dos interesses estratégicos da sociedade (op. cit., p. 128). São, ainda, entes intermediários que exercem representação funcional dos interesses da sociedade na tutela do meio ambiente, entre outros, a Defensoria Pública e a associações civis.
[4] A exceção fica por conta da ação popular, cuja legitimidade para agir em juízo é atribuída, em princípio, apenas ao indivíduo (cidadão).
[5] Sobre a questão da obrigatoriedade do exercício da ação pelo Ministério Público e sua devida interpretação, ver MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 29ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 93-99; MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015, p. 1497-1498.
[6] Sobre o Ministério Público como parte no processo civil, mesmo quando intervém como custos legis, e as noções de parte principal e parte secundária, ver DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2001, v. 2, p. 425-427. Ainda: MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., p. 85-86; MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores (Lei 7.347/85 e legislação complementar). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004, p. 162.
[7] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit, p. 316.
[8] MAZZILI, Hugo Nigro, op. cit., p. 93.
[9] GOULART, Marcelo Pedroso, op. cit., p. 136.
[10] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 316-317.
[11] Sobre o tema, ver MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 326-329.
[12] DINAMARCO, Cândido Rangel, op. cit., p. 430; BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 162.
[13] STF – ADI 97-7/RO – Questão de Ordem – j. 22/11/1989 – DJ 30/3/1990 — pronunciamento do Ministro Moreira Alves.
[14] Art. 169, § 1º, do RISTF.
[15] A jurisprudência do STF, de fato, tem admitido a intervenção de órgãos dos Ministérios Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal, na função de amici curiae, nas ações de controle normativo abstrato de constitucionalidade: STF – ADI 3.277-1/PB – j. 2/4/2007 – rel. min. Sepúlveda Pertence (intervenção do MPE); STF – ADI 2.990-8/DF – j. 18/4/2007 – rel. p/ acórdão min. Eros Grau (intervenção do MP-DF).
[16] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit, p. 328-329.

Autores

  • é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito Processual pela USP, especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França), coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

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