Opinião

Compliance deve respeitar contraditório e ampla defesa

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4 de novembro de 2017, 8h00

Com o boom de Compliance, vieram – de rebarba – as investigações privadas internas. Todavia, tais procedimentos, muitas vezes, são realizados informalmente e sem seguir os princípios probatórios do Direito pátrio (que possuem cunho de Direito Material e Processual). Nada de novo, copiou-se, em grande parte, a modelagem americana do instituto. A “tropicalização” foi deixada de lado.

A tradição anglo-saxã (Common Law) possui uma particularidade diferente de todas as demais, e, principalmente, das que estão lastreadas no Civil Law. Qual é o nome dessa diferença? Simples: Discovery. No Common Law, o Discovery consiste – grosso modo – na necessidade de apresentar todas as provas para a outra parte.

Além disso, voltando os olhos para a processualística americana, existe uma fase pre-trial, na qual as partes – em tese – colaboram para a produção do material probatório que será submetido a um júri (no trial: ou julgamento). Nada disso, contudo, tem a menor relação com a sistemática processual brasileira, seja no âmbito cível ou criminal.

Discutimos, por exemplo, a distribuição do ônus da prova e a validade de sua produção. Temos provas lícitas – admitidas em juízo – e as ilícitas, que, segundo o artigo 50, inciso LVI, da Constituição Federal, “são inadmissíveis, no processo”. Apenas por essa razão, sem examinar outros pormenores do Ordenamento Jurídico pátrio, pode-se afirmar que qualquer investigação de Compliance, levada a efeito em nosso país, demanda uma avaliação relativa à sua forma e ao material probatório que foi coletado, bem como ao formato e conteúdo de um relatório de não conformidade.

A conclusão mais óbvia que se tira dessas ponderações é de uma obviedade alucinante: nas investigações de Compliance cumpre – em respeito à Lei – analisar o material probatório com cuidado e cautela, “separando o joio do trigo” e atentando para que os direitos e garantias constitucionais não sejam violados. Cabe, outrossim, verificar se as provas são lícitas e se, por qualquer razão, não poderão ser admitidas em juízo.

Artigo publicado por Rodrigo Oliveira de Camargo, na página LEC (Legal, Ethics & Compliance), aduz o seguinte:

“Ao determinar que corporações estabeleçam práticas de Compliance dentro do ambiente empresarial, o Estado parece compartilhar com entes privados as responsabilidades pela investigação que porventura ocorram em meio ao ambiente corporativo e que envolvam atos de corrupção. O poder público passa a determinar que entidades privadas e seus funcionários o auxiliem nessa tarefa, criando mecanismos que incentivem a colaboração de entes privados para o combate e investigação de atos ilícitos”.

Ou seja, o Estado transferiu ao particular o ônus investigativo, incitando que as empresas ajam como algozes de si próprias. Mas, nenhum dever pode ser transferido sem que se respeitem as garantias mínimas constantes da Constituição Federal e demais Leis infraconstitucionais. Exatamente por essa razão, o articulista acima citado é claríssimo ao dispor o seguinte:

“Auditorias nem sempre seguem estrita observância à forma, principalmente se vista como garantia individual, sendo esta prática potencialmente produtora de violações de direitos fundamentais. A Lei 12.846/2013 nada dispõe sobre a existência de um procedimento para a condução de investigações no âmbito empresarial, deixando livres as corporações para que investiguem da forma como melhor entender. O ideal é que, desde o seu nascimento, observem direitos e garantias constitucionais de qualquer cidadão que se encontre na condição de investigado, como o direito de ser acompanhado por defesa em todos os atos da investigação, a observância do direito de não produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere) e, fundamentalmente, o exercício do direito ao silêncio.”

Para arrematar, veja-se a conclusão do artigo em referência:

“O Compliance não se apresenta somente como meio de prevenção a partir do estabelecimento de controles internos e medidas que possam prevenir a persecução penal da corporação. É, também, meio de investigação e que provavelmente venha a expandir seus efeitos ao processo penal, razão pela qual devem ser redobradas pela empresa as cautelas na condução de sua investigação interna, de forma a também privilegiar a outorga dos direitos fundamentais àquele que está sendo acusado.”

Não há, portanto, lugar para alvoroço e amadorismo. Aliás, essa é a receita para uma investigação inútil que apenas expõe desnecessariamente as empresas, não contribui para a melhora dos procedimentos, e, muitas vezes, se tonam viciadas e absolutamente imprestáveis.

O princípio nemo tenetur se detegere – mencionado do artigo em referência –, consistente no direito de não produzir provas contra si, é corolário lógico do artigo 5o, LVII e LXII da Constituição Federal, sendo, portanto, reconhecido pelo Ordenamento Jurídico brasileiro. Além disso, como signatário da Convenção de Direitos Humanos de 1969, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, o Brasil reconhece o preceito categórico do artigo 80 (“2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:”), 1, g), que constitui no “direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada”.

Esse direito, data maxima venia, não pode ser violado, inclusive em uma investigação privada, que, ao cabo, tem por objetivo produzir material com o intuito de tentar – frise-se, tentar – reduzir uma pena administrativa, baseado na Legislação Anticorrupção (Lei 12.846/2013); quando, na realidade – no mor das vezes –, o objetivo deveria ser de Damage Control, apurando uma prática non-compliance para aprimorar as condutas da empresa. Entender de outra forma seria, com o devido respeito, permitir que – por via transversa –, o Estado use procedimentos investigatórios e de apuração para burlar as normas Constitucionais, Procedimentais e Probatórias. Privatizou-se a investigação e a persecução, mas, sabe-se lá porque, ninguém reclamou…

Sendo assim, ao tomar para si uma função investigatória, os Departamentos de Compliance são obrigados a respeitar os direitos constitucionais dos indivíduos. De outro modo, chegaríamos a situação teratológica de se permitir toda uma miríade de abusos, no âmbito privado, que se transformariam em processos dignos dos Tribunais da Santa Inquisição, para, ao final, entregar ao Estado – “de bandeja” – provas que foram obtidas mediante colaboração espontânea dos colaboradores, calcada na boa-fé e na confiança, sem a menor noção de como, de que forma e para que fins suas falas seriam usadas.

Como se vê, cuidado, atenção às normas jurídicas – principalmente com relação às provas – e respeito aos cidadãos devem nortear a conduta jurídica, moral e ética de qualquer investigação realizada pelos Departamentos de Compliance. Por fim, fica a dica: na dúvida e para garantir a integridade, procurem os seus colegas do Jurídico ou advogados externos. Eles, certamente, sabem diferenciar fatos lastreados em provas de ilações e especulações. Como última reflexão, vale mencionar que as empresas de auditoria vêm oferecendo – em conjunto com os escritórios – serviços de análise forense de matérias. Termino, então, com uma pergunta: aonde fica o sigilo nesse caso?

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