Diário de Classe

CPC de 2015 faz uso quase metafórico de conceitos teóricos do Direito

Autor

4 de novembro de 2017, 7h10

Spacca
Nesta coluna, pretendo propor uma reflexão. Não tenho com ela nenhuma intenção conclusiva, mas, simplesmente, problematizante. Com efeito, desde a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, temos uma situação interessante que, de alguma forma, deverá atingir as práticas cotidianas do Direito brasileiro: o uso legislativo de conceitos, trabalhados ou construídos, pela teoria do Direito. Nesse sentido, podemos citar a menção à ponderação no parágrafo 2º do artigo 489; à integridade, no caput do artigo 926; e, por fim, as menções ao termo ordenamento jurídico, que aparecem, v.g., no parágrafo único do artigo 18 e no caput do artigo 140.

Em todos esses casos, poderíamos perguntar: o que define o erro e o acerto de uma decisão que concretize tais dispositivos normativos? Um julgador ou um tribunal poderia ser considerado desobediente com relação aos ditames da legislação processual se deixasse de observar, em sua decisão, os desenvolvimentos teóricos a respeito da ponderação? Caberia recurso de uma decisão que fizesse uso aleatório do conceito de ordenamento jurídico? Ou, em sentido contrário, a legislação procura fazer uma aproximação meramente metafórica desses conceitos, buscando incorporar uma espécie de “uso linguístico comum” – e não científico – , sem que os desdobramentos teóricos que cada um possui possa refletir algo concreto em termos de dogmática e aplicação do Direito?

Todas essas perguntas são intrigantes e colocam, na alça de mira da discussão, o tema da relação entre a teoria do direito e as praticas cotidianas dos juristas. Fiquemos, aqui, apenas com o caso do ordenamento jurídico. Ao contrário daquilo que uma intuição preliminar pode levar à compreensão, ordenamento jurídico não é um dado “natural” de uma determinada realidade normativa.

Pelo contrário, trata-se de um termo bastante entulhado de significados, produzidos por uma reprodução vulgar e acrítica, que levam a um uso quase aleatório, tanto nas salas de aula quanto no contexto forense (já li, em textos de um autor de livros de Introdução ao Estudo do Direito, muito utilizado em nossas faculdades, que o ordenamento jurídico seria composto por um conjunto disforme de normas jurídicas, no mais das vezes incoerentes e inconsistentes entre si, e que a tarefa do jurista seria ajustá-lo aos padrões lógicos da ciência do direito. Todavia, caberia a pergunta: se incoerências e inconsistências há, essa “coisa” pode ser chamada de ordenamento? É possível nomear como ordenado algo que, na verdade, apresenta-se como uma desordem normativa?).

Sem embargo, ordenamento jurídico representa um conceito teórico para se operar com o direito. Mais do que isso: representa um conceito operacional de uma determinada tradição da teoria do direito, que está situada em um arco de influência que poderíamos chamar de Kelsen-Bobbio. O contexto de sentido diz respeito à tentativa de hierarquizar o conjunto de normas jurídicas produzidas em uma determinada realidade normativa, na perspectiva de pensá-las em diferentes patamares e com diferentes finalidades de atuação. O primeiro grande tema de uma teoria do ordenamento jurídico é, portanto, a hierarquia entre normas.

Na modernidade, principalmente no contexto do movimento constitucionalista, foi colocado em questão o problema da supremacia da Constituição e da necessidade de o direito infraconstitucional a ela estar adequado. Esse tipo de pensamento teve uma longa gestação, mas terminou por ser firmado e cristalizado no ambiente do constitucionalismo estadunidense que, por uma decisão de um juiz da Suprema Corte (John Marshall), instituiu o chamado controle de constitucionalidade dos atos normativos, afirmando, assim, o ponto que faltava para tornar explícita a supremacia da Constituição com relação ao restante da produção normativa daquela ordem jurídica.

Esses movimentos, todavia, nunca chegaram a tratar da questão da hierarquia normativa com a finalidade de produzir uma teoria – até certo ponto autônoma – do ordenamento jurídico. Essa intenção terá, na obra de Hans Kelsen, o seu ponto de partida.

Com efeito, Kelsen formulou a tese de que o ordenamento jurídico possui uma estrutura suprainfraordenada. Essa estruturação do ordenamento é, por várias vezes, remetida à clássica metáfora da “pirâmide normativa”. Embora não seja errado mencionar essa estrutura suprainfraordenada a partir dessa metáfora, não se pode dizer que ela tenha sido descrita por Kelsen em sua Teoria Pura do Direito. Mais especificamente, ela aparece em um texto produzido pelo autor para explicar à comunidade acadêmica a novidade de sua teoria.

Na verdade, a grande inovação de Kelsen é propor que essa relação normativa – que envolve uma norma superior sendo aplicada por uma norma inferior – dá-se não numa perspectiva de conteúdo (como nas formulações jusnaturalistas e nas do constitucionalismo moderno), mas, sim, numa perspectiva de validade.

A perspectiva kelseniana é a seguinte: a norma superior oferece um fundamento de validade para a norma inferior. Daí que essa estrutura possui uma natureza suprainfraordenada: da norma superior o órgão aplicador deduz a validade da norma inferior. No exemplo figurado pelo próprio Kelsen, a partir da metáfora da pirâmide: a Constituição oferece o fundamento de validade das leis produzidas pelo poder legislativo. As leis produzidas pelo poder legislativo oferecem o fundamento de validade para as decisões proferidas pelos juízes e da execução dos negócios da administração via decreto; por outro lado, também os negócios jurídicos retiram seu fundamento de validade da legislação e podem servir de fundamento de validade de uma decisão judicial que, eventualmente, tenha que julgar um conflito proveniente de um contrato aplicando alguma de suas regras.

A validade da norma inferior, portanto, está condicionada à sua adequação à norma superior. Mas essa adequação não é pensada numa perspectiva de conteúdo, mas, sim, numa perspectiva formal de procedimento: a norma inferior é válida na medida em que obedece ao procedimento estabelecido na norma superior.

Todavia, a novidade do pensamento kelseniano não se resume à teorização acerca da estrutura suprainfraordenada do ordenamento jurídico. Na verdade, além de oferecer uma explicação sobre o modo como o ordenamento jurídico se movimenta e modifica (daí essa parte de sua teoria ser nomeada de dinâmica jurídica), Kelsen apresenta uma hipótese que explicaria de que modo todo o ordenamento jurídico remete a um único ponto. Trata-se de uma hipótese que explica a questão da unidade do ordenamento jurídico.

Essa hipótese é a chamada norma hipotética fundamental. Como explica Losano, “o direito é unitário porque todo o ordenamento deriva de uma única norma fundamental. Tal norma fundamental não é uma norma estatuída (ou posta) pelo legislador, mas imaginada por quem examina o ordenamento” [o jurista estudioso do Direito – acrescentamos].[1]

Durante toda sua vida, o tema da norma hipotética fundamental foi, certamente, o maior “espinho teórico” de Kelsen (verdadeiro “calcanhar de Aquiles” de sua teoria). Por diversas vezes, ele alterou sua definição de modo que podemos registrar, aqui, ao menos duas delas: a) em um primeiro momento, Kelsen afirma ser a norma hipotética fundamental o resultado de uma operação lógica conhecida por tautologia: ela é porque é; fundamento porque é fundamento. Anos depois, em sua obra póstuma chamada Teoria Geral das Normas, Kelsen se apropria da filosofia do como se (Alsob Philosophie) de Hans Vaihinger para afirmar que a norma hipotética fundamental seria uma ficção necessariamente útil, sem a qual não seria possível pensar em um fundamento unitário para todo o ordenamento jurídico.

Por fim, calha registrar que mesmo autores que refinaram a teoria sobre o ordenamento jurídico continuaram seguindo as intuições fundamentais de Kelsen. Norberto Bobbio – que produziu um trabalho notável sobre o tema – confessava expressamente que, em linhas gerais, continuava seguindo a teoria kelseniana. Nas palavras do autor:

Essa teoria serve para dar uma explicação da unidade de um ordenamento jurídico complexo. O núcleo dessa teoria é que as normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano. Existem normas superiores e normas inferiores. As normas inferiores derivam das superiores. Partindo das normas inferiores e passando por aquelas que estão acima, chega-se por último a uma norma superior, e sobra a qual repousa todo o ordenamento. Todo ordenamento tem uma norma fundamental. É essa norma fundamental que dá unidade a todas as outras normas; ou seja, faz as normas esparsas e de proveniência variada um conjunto unitário, que pode chamar a justo título de “ordenamento”[2]

Note-se, portanto, que a própria ideia de ordenamento depende da norma fundamental para poder existir. Daí que, para uma teoria do ordenamento jurídico, a questão da norma hipotética fundamental não é cosmética. Pelo contrário, trata-se de um ponto fundamental que, em sendo de frágil definição, coloca em xeque toda a teoria.

Parece-me evidente que, quando a legislação se apropria de um conceito como este, traz para dentro das discussões práticas do Direito toda essa carga de sentido. A pergunta que fica, portanto, é a seguinte: seremos, na concretização de tais dispositivos, fieis à tradição de conformação do conceito, ou, pelo contrário, vamos aceitar esse uso quase metafórico que parece prevalecer no cotidiano dos juristas? A resposta, evidentemente, está em aberto. Veremos.

 


[1]Losano, Mario. Sistema e Estrutura no Direito. Vol. II. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 54.

[2]Bobbio, Norberto. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes,2007, Parte II, cap. II, n. 9, p. 199.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!