Impossibilidade de concurso material entre corrupção passiva e lavagem de dinheiro
22 de março de 2017, 7h22
A nova "lista de Janot" trouxe à tona a discussão acerca do concurso material entre os delitos de lavagem de dinheiro e corrupção passiva, principalmente quando este último é antecedente à lavagem de capitais.
O delito de lavagem de dinheiro, previsto na Lei 9.613/98[1], é considerado crime comum, passível de prática por qualquer pessoa, sem a exigência de alguma qualidade jurídica especial, já que o preceito inicia com uma expressão anônima[2] (“ocultar ou dissimular a natureza…”), sem que o legislador tenha feito qualquer exigência expressa relativa ao sujeito ativo do delito[3]. O delito de corrupção passiva exige uma solicitação, um pedido. Uma vez feito o pedido, não há motivo pelo qual o suposto recebimento seja criminalizado[4], ou seja, por já integrar o tipo penal objetivo, o recebimento de valores já compõe a tipicidade. Se o objetivo era o desvio para fins eleitorais, os meios que foram utilizados para tal desvio não podem constituir delito autônomo de lavagem de dinheiro.
O cerne da questão, portanto, reside na admissão ou não do concurso material entre o ato de corrupção passiva e de lavagem de dinheiro, sendo este último imputado em razão de utilização de pessoa jurídica, física ou partido político interpostos para fins de desvio de verbas públicas.
O recebimento por modo clandestino e capaz de ocultar o destinatário da propina, além de esperado, integra a própria materialidade da corrupção passiva, não constituindo, portanto, ação distinta e autônoma da lavagem de dinheiro[5]. Para caracterizar esse crime autônomo, seria necessário identificar atos posteriores, destinados a recolocar na economia formal a vantagem indevidamente recebida[6].
No tocante ao bem jurídico protegido pela lei de lavagem de dinheiro, em que pese nosso entendimento no sentido de que o bem jurídico protegido no delito de lavagem de dinheiro seja a ordem socioeconômica nacional[7], a doutrina nacional não é uníssona nesse ponto, pendendo para a administração da Justiça como bem jurídico tutelado pela legislação antilavagem[8]. Assim, constata-se a impossibilidade de concurso material entre os delitos de lavagem de dinheiro e corrupção passiva, eis que ambos protegem o mesmo bem, qual seja, a administração pública em sentido amplo, conforme previsão expressa no Título XI do Código Penal brasileiro.
Por isso, pode-se concluir que no caso vertido tem aplicação o princípio da consunção[9]. São hipóteses em que o sujeito ativo do delito de lavagem também tenha atuado no delito prévio, porque se cumpre a exigência de que os delitos anteriores já abarquem o desvalor da conduta posterior[10], ou que o autor não lesione um novo bem jurídico, é dizer, que o bem jurídico lesionado pelo fato prévio e pelo posterior coincidam[11].
Voltando-se à questão específica do presente ponto, a resposta é negativa, ou seja, a nosso ver, não há possibilidade de concurso material entre o delito de corrupção passiva e de lavagem de dinheiro na hipótese em que o mesmo agente tenha praticado ambos os delitos. Reconhecer a possibilidade de concurso material seria admitir uma dupla punição para o mesmo bem jurídico lesionado, por todas as razões já expostas.
[1] BRASIL. Lei 9.613, de 3.mar.1998. Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências.
[2] JESCHECK, Tratado de Derecho Penal, p. 240.
[3] TERRA DE OLIVEIRA, Lei de Lavagem de Capitais, p. 324.
[4] STF, Inq. 2245/MG, Pleno, Joaquim Barbosa, DJ 9/11/2007.
[5] Nesse sentido, o saudoso ministro Teori Zavascki: É essencial que tais ações constituam, não um fim em si próprias, mas um meio pelo qual possa o agente lograr êxito em ocultar ou dissimular o aproveitamento dos referidos bens. […] Estas ações devem necessariamente demonstrar a intenção de o agente esconder a origem ilícita do dinheiro, bens, etc. A simples movimentação de valores ou bens, com o intuito de utilizá-los, desfrutar-lhes ou mesmo acomodá-los, mas sem intenção de escondê-los, não configura o delito" (APn 472/ES, rel. ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, CORTE ESPECIAL, julgado em 1º/6/2011, DJe 8/9/2011).
[6] Ainda sobre o tema, no julgamento do mensalão (APN 470), o ministro Ricardo Lewandowski asseverou: Um réu só pode ser condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro se verificada a ocorrência de atos delituosos distintos. Isto é, se o réu, após ter recebido dinheiro proveniente de corrupção, vier a praticar novos atos delituosos, distintos dos anteriores, com a finalidade de branqueamento de capitais, com o escopo de ‘limpar’ o dinheiro ’sujo’.
[7] Neste sentido: CALLEGARI, André Luís; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2014; CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 83.
[8] MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro: Lavagem de ativos provenientes de crime – Anotações às disposições criminais da Lei n. 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2004, p 57; MENDRONI, Marcelo Batlouni, Crime de Lavagem de Dinheiro -2. Ed. – São Paulo : Atlas, 2013, p.75; DE CARLI, Carla Veríssimo, Lavagem de dinheiro: ideiologia da criminalização e análise do discurso – Porto Alegre: Verbo Jurídico, 212, p.112.
[9] De acordo com o exposto, para que ocorra um fato posterior impune, o fato posterior praticado pelo sujeito não pode lesionar um bem jurídico distinto ao vulnerado pelo delito anterior, é dizer, a conduta do sujeito ativo deve lesionar um mesmo bem jurídico. Para que isso ocorra os tipos penais antecedentes previstos na Lei de Lavagem de Dinheiro devem incluir já o desvalor da própria lavagem. Na hipótese sob análise é exatamente isso que ocorre, pois há a identidade do bem jurídico protegido entre o delitos prévio e o posterior delito de lavagem de dinheiro, admitindo-se que o bem jurídico protegido pelos dois delitos (corrupção passiva e lavagem) é a administração pública (em particular a administração da justiça).
[10] FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 376.
[11] CARPIO DELGADO, El delito de blanqueo de bienes, p. 236.
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