A crítica do cinema italiano à corrupção sob a ótica da realidade brasileira
21 de maio de 2017, 8h00

L'ora legale passa-se em Pietrammare, uma imaginária pequena cidade da Sicília, a ilha situada ao sul da Itália, conhecida por sua beleza, cultura e também pela existência da mais antiga organização criminosa, a Cosa Nostra ou Máfia.
A narrativa se desenvolve a partir da eleição de Natoli para prefeito, um candidato bem conceituado e que prometia agir corretamente e a favor do bem comum, pondo fim a anos de gestão de Patanè, um prefeito corrupto e oportunista. Tão logo tomou posse, o novo prefeito impõe regras severas de comportamento. Proíbe construções irregulares, determina a aplicação de multas aos que estacionam em local proibido, impõe aos guardas florestais que se dirijam à área rural para cumprir suas funções e nega seguidos pedidos de favores ilegais feitos por velhos amigos e parentes.
A nova situação toma de surpresa os moradores, que jamais imaginaram que as promessas de campanha fossem cumpridas. Afinal, todos os candidatos as faziam e nenhum as cumpria. Ademais, as novas exigências atingiram diretamente aqueles que se beneficiavam de práticas ilegais, disto resultando uma enorme revolta contra o novo prefeito Natoli. Pressionado por todos os lados, inclusive pela família, ele renuncia e o antigo prefeito Patanè volta ao poder.
Ficarra e Picone, com maestria, mesclam o riso com uma indiscreta lágrima nos olhos, técnica desenvolvida com maestria pelos italianos, valendo lembrar, como exemplo, a obra de Luigi Pirandello, “O falecido Mattia Pascal”. Transmitem ao público, em meio a situações jocosas, a triste realidade, ou seja, a maioria dos habitantes desejava que tudo permanecesse como sempre foi, porque disto, de alguma forma, se beneficiavam.
Em meio às seguidas crises do Brasil, que em meio à disputa política exibe os mais deploráveis comportamentos, somos levados a perguntar se este imenso país não é uma Pietrammare de proporções gigantescas. Ou, de forma mais clara, se as coisas estão assim porque a maioria das pessoas assim as quer. Óbvio que se a resposta for sim, estaremos confessando a nossa própria falência moral.
Ao atribuir responsabilidade do que se passa exclusivamente aos políticos, estamos esquecendo que as inúmeras práticas condenáveis que a mídia nos tem transmitido, seguidamente, nos últimos dois anos, não somente a eles beneficiava. Não. Na verdade, enormes esquemas de corrupção atendem o interesse de diversas pessoas em distintos setores. E estes, queiram ou não, tenham ou não consciência, são tão responsáveis quanto os que se dedicam pessoalmente à atividade criminosa.
Alguns exemplos. Familiares que veem o patrimônio crescer e os gastos assumirem proporções incompatíveis com o quanto se recebe. Funcionários de empresas, que se envolvem nas práticas delituosas. Advogado que não se limita a defender um empresário corruptor (ato normal de sua profissão), mas que passe a instruí-lo sob a forma de praticar impunemente a atividade ilícita. Todos, enfim, que movimentam as teias da corrupção.
Não envolver-se em tais práticas não é um ato elogiável, mas sim mero cumprimento de uma obrigação legal ou moral. Mas lutar contra elas, ir além, aí sim, é uma opção de vida, única forma das coisas mudarem. Mas, com certeza, não é algo fácil.
A resistência pode ir desde uma ação simples, como recusar-se a participar de uma festa promovida por um enriquecido corrupto, até a negar-se uma esposa a participar da compra de uma moradia melhor, sabendo que a transação é feita com dinheiro ilegal. Também, um servidor público apontar a existência de corrupção na sua área de trabalho. Esta última medida não requer apenas coragem, mas também inteligência, porque pode tornar-se sério risco de vida.
Na verdade, a comparação entre o filme italiano e a situação do Brasil atualmente, impõe-nos optar por uma de duas hipóteses: a) reconhecemos que, tal qual os habitantes de Pietrammare, somos um povo indigno, porque somos corruptos ou esperamos uma oportunidade para poder sê-lo; b) somos um povo em que a maioria deseja um país melhor, uma sociedade mais justa, em que a corrupção seja reduzida ao mínimo possível.
Sem a ingenuidade das crianças e de alguns adultos que se recusam a ver a realidade, acredito que a segunda hipótese é a certa. A maioria da população anseia por uma vida correta, se preocupa com o Brasil e deseja, sinceramente, o bem comum.
Porém isto não acontecerá apenas por força da Operação Lava Jato ou de outras tantas que sobrevierem. É certo que elas são importantes, essenciais. Por isso, a prisão de ricos empresários, políticos, governador de estado ou de membro do Ministério Público Federal, como ocorreu com o procurador da República Ângelo Goulart Villela esta semana, são fatos novos em nosso país e devem ser comemorados. Mas mudança real só virá com a mudança de hábitos de toda a sociedade.
Esta fase difícil, de transição, deve ser vista como uma travessia sofrida e necessária de terras inóspitas, que permitirá, depois, que se alcance o oásis, ou seja, a estabilidade política e econômica que a maioria dos brasileiros deseja.
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