Corrupção nas contratações públicas: não é possível escolher quem recebe primeiro
15 de junho de 2017, 8h00

O Estado paga mais caro por suas obras, bens e serviços, e a corrupção é uma das causas. Entretanto, outra causa dessa situação é a contumaz inadimplência e o descaso estatal no cumprimento de suas obrigações contratuais. O contratado pelo Estado já conta com a real expectativa de que executará sua prestação, mas não receberá os valores devidos nos prazos ajustados. Em simples palavras, o particular já imagina que terá que se esforçar muito para que o Estado cumpra suas obrigações contratuais. Essa mora incorrigível tem um custo, que obviamente compõe o custo formado pelo particular na apresentação de sua proposta. É constrangedor admitir que o Estado, como regra, não possui credibilidade como cumpridor de contratos — essa falta de credibilidade é precificada pelo mercado.
Uma das questões essenciais que compõem esse cenário é a obediência da ordem cronológica de pagamentos. Não há dificuldade em se imaginar que os pagamentos devem ser feitos em ordem cronológica, de acordo com a execução dos contratos respectivos, por imperativo lógico e isonômico. O artigo 5º da Lei 8.666/93 contém regra nesse sentido:
Art. 5º Todos os valores, preços e custos utilizados nas licitações terão como expressão monetária a moeda corrente nacional, ressalvado o disposto no art. 42 desta Lei, devendo cada unidade da Administração, no pagamento das obrigações relativas ao fornecimento de bens, locações, realização de obras e prestação de serviços, obedecer, para cada fonte diferenciada de recursos, a estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, salvo quando presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia justificativa da autoridade competente, devidamente publicada.
A obediência à ordem cronológica impede a administração pública de escolher, aleatoriamente, a sequência de pagamentos. Não se coaduna com privilégios na ordem de recebimento, pois preza pelo respeito ao pactuado nos contratos. Trata-se de regra de garantia para o contratado e para o cidadão, voltada à vedação de caprichos, perseguições e favores pessoais, remunerados ou não. Pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade é crime (artigo 92 da Lei 8.666/93), sujeito à pena de detenção, de dois a quatro anos, e multa. Não é incomum a total subversão desta ordem, submetendo contratados (geralmente, claro, as pequenas empresas e empresários) ao constrangedor — e ilegal, imoral — périplo por repartições para ver seu direito respeitado.
Ao dever da administração de realizar o pagamento seguindo a ordem cronológica das exigibilidades, por fonte de recursos, corresponde direito subjetivo do contratado de exigir a satisfação do seu crédito, quando violada a respectiva ordem. A questão foi objeto de atenção recente por parte da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), que instituiu diretrizes para o controle da obediência ao disposto no artigo 5º da Lei 8.666/93. Ao reconhecer a importância de que os tribunais de Contas fiscalizem rigidamente a regra, cuja desobediência oferece oportunidade corruptiva, a Atricon recomendou aos tribunais de Contas a promoção de ações junto aos jurisdicionados, visando à edição de lei local e/ou decreto que regulamente o cumprimento da regra comentada contemplando, no mínimo:
“a. a ocasião em que o credor deverá ser inserido na respectiva sequência, considerando (i) a demonstração, para o ingresso na fila, do adimplemento da parcela contratual mediante a apresentação de fatura ou documento equivalente pelo contratado, a ser confirmada na liquidação da despesa e (ii) o cumprimento das demais condições legais e contratuais exigíveis, como a regularidade fiscal, trabalhista e com a seguridade social, dentre outras, também a serem confirmadas na liquidação da despesa;
b. as hipóteses de suspensão da inscrição do crédito na ordem cronológica de pagamento, em razão da ausência de demonstração do cumprimento das condições legais e contratuais pelo contratado;
c. a fixação de prazo máximo para a realização da liquidação e para o efetivo pagamento, a contar do ingresso na linha de preferência, ou para a rejeição dos serviços prestados ou bens fornecidos, por desatendimento das exigências legais ou contratuais; e
d. as situações que poderão vir a constituir, ainda que não de forma taxativa, relevantes razões de interesse público, a permitir excepcionar a regra da ordem cronológica, a propósito do que estabelece a parte final do artigo 5º, caput, da Lei nº 8.666/93” (Resolução Atricon 8/2014).
No mesmo ato, foi considerada como obrigatória a implementação, por parte da administração pública, de sistema informatizado que possibilite a divulgação em tempo real, na rede mundial de computadores, das diversas ordens cronológicas e das respectivas listas de credores, com ampla acessibilidade a qualquer cidadão, em atenção ao prescrito na Lei 12.527/11 (Lei da Transparência).
A gravidade da questão não escapou da atenção de Joel Niebuhr, que propõe medida impactante: o sequestro dos valores preteridos diretamente das contas públicas. Para o autor, um dos maiores conhecedores do assunto no país:
“O sequestro é tão violento quanto o descumprimento da ordem cronológica — ou deveria ser considerado. Prescrever o sequestro não significa incitá-lo. Não quero o sequestro, quero o cumprimento da ordem cronológica. O sequestro é apenas a sanção, que precisa ser forte, porque a Administração Pública dá de ombros para a norma legal há mais de 20 anos. A Administração Pública somente irá cumprir a norma legal se houver uma sanção forte e exequível, não vejo outra, afora o sequestro. O Poder Público respeita a ordem dos precatórios porque os gestores sabem que, se não o fizerem, no dia seguinte o beneficiado com o precatório preterido sequestra-lhe os valores, simples assim”[1].
O autor propõe ainda o estabelecimento de prazos rígidos para que a administração pública tome providências em relação ao processamento das despesas e aos pedidos do contratado, como para a liquidação, para os pagamentos, para conceder reajuste e para analisar pedidos de aditivos. Como informa:
“Não é raro que a Administração, para não pagar o contratado, recuse-se a liquidar a despesa. Ou seja, o contratado executa o contrato, entrega à Administração Pública, porém ela se recusa a fazer as medições, a reconhecer o que foi executado. Sucede que ela precisa liquidar a despesa para o contratado emitir a nota de faturamento e, com isso, entrar na fila da ordem cronológica. A Administração Pública se recusa a liquidar a despesa porque daí parece ao controle que não há problemas de inadimplemento. Isso deve ser coibido e o mesmo vale para o pagamento e para todos os pedidos formulados pelos contratados”[2].
A questão deve ser objeto de acurada atenção por parte do controle externo. O foco da fiscalização do controle externo, entretanto, não deve ser a satisfação do direito individual de cada credor, mas sim a obediência à regra constante do artigo 5º da Lei 8.666/93. Cabe ao sistema de controle, em primeira análise, constatar o descumprimento da regra e sancionar o gestor.
Por outro lado, para que se imponha à administração o dever de efetuar pagamento a credor determinado, por força da desobediência à ordem cronológica, não basta constatar a existência de pagamentos de obrigações contraídas posteriormente. Como visto, a regra é clara ao assentar a necessária obediência, para cada fonte diferenciada de recursos, da estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, excetuados os casos em que presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia justificativa da autoridade competente. Inferir violação em singelo caso isolado, relativo a singular contratação de uma única empresa, poderia importar em desprezo ao exame dos pagamentos oriundos da mesma “fonte de recursos” mencionada no dispositivo antes citado. Por essa razão, é ideal que a aferição dessas irregularidades sejam feitas no exame das contas de gestão, ou em sede de inspeção/tomada de contas voltadas ao conjunto de todos os pagamentos oriundos daquela mesma fonte de recursos.
De qualquer maneira, a competência dos tribunais de Contas para fazer valer o respeito à regra comentada é inconteste. Mais do que isso, trata-se de importante resguardo da obediência aos princípios da impessoalidade e moralidade, impedindo a consagração de privilégios incompatíveis com o regime republicano. No que toca à prevenção e combate à corrupção, chaga brasileira, trata-se de bloquear mais uma possibilidade de aplicação do adágio “criar dificuldade, para vender facilidade”.
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