Diário de Classe

Quem venceu no TSE? A teoria do avestruz ou do cofrinho?

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10 de junho de 2017, 8h00

Spacca
O recente julgamento levado a cabo pelo Tribunal Superior Eleitoral na ação que ficou para posteridade como a de “cassação da chapa Dilma-Temer” é um bom exemplo para demonstrar a dificuldade enfrentada por aqueles que pretendem desenvolver uma atitude científica perante o Direito em terrae brasilis. E nem estou aqui a considerar sobre qual tipo de paradigma ou teoria seria a melhor. O buraco é bem mais embaixo. Falando de forma simplória (pegando carona na moda “julgamento didático”, que parece ter sido encampada pelo TSE nesse julgamento): o jogo está difícil para qualquer um, independentemente do time que se está a defender. Quem está feliz a essa altura, talvez, sejam aqueles que perfilam uma teoria pragmática do Direito (mas aí, seria de se perguntar, essa seria uma teoria jurídica?), que no fundo podem dizer: “Estão vendo, é isso mesmo, sempre dizemos a vocês que o Direito nada mais é do que política judiciária…”.

Harold Berman é autor de uma afirmação polêmica: dizia ele que a ciência jurídica dos romanistas de Bolonha teria sido a primeira “ciência moderna”[1]. É interessante aqui projetarmos alguns efeitos — poder-se-ia dizer, retóricos — dessa afirmação. Em primeiro lugar, faz ela muito sentido se imaginarmos que o Direito Privado, na idade média, era tomado por aquilo que convencionalmente se chama de “direito regional” ou “direito das comunidades germânicas”. A redescoberta dos livros de Justiniano (que posteriormente receberão o nome de Corpus Juris Civilis) pelos romanistas de Bolonha, ainda no século XII, causou intensa reverberação naqueles que os estudavam. Como pode o Direito de uma civilização perdida há mais de cinco séculos ser tão mais técnico e sofisticado do que aquele que era observado nessas comunidades medievais? Não é difícil aqui construir a ideia de que, no imaginário da época, os juristas de Bolonha deviam enfrentar situações semelhantes àquelas vivenciadas pelos astrônomos, físicos e matemáticos da moderna ciência. Contam as fofocas biográficas da época que Galileu, por exemplo, não era muito bem quisto em círculos sociais de convívio. Era tido como intransigente e rabugento por não aceitar a explicação oficial daquele tempo para fenômenos astrofísicos ou, ainda, por não aceitar e colocar em discussão explicações postas em curso pelo vulgo e pela igreja, que desprezava as evidencias que a observação causa-efeito lhes mostrava.

Um jurista treinado em Bolonha (e na tradição que dali se segue) nos séculos XII e XIII, provavelmente, enfrentava algum tipo de situação social semelhante. Imagine-se: questionar os pressupostos do Direito comum, profundamente arraigado àquelas comunidades germânicas, com relação a questões, por exemplo, de posse e propriedade com base nesses novos e sofisticados instrumentos que eram (re)descobertos por meio dos estudos científicos do Corpus Juris. Imagine-se mais!, como resolver a questão da juridicidade do uso da violência para reaver posse que houvera sofrido esbulho também pela força? O Direito comum, nas diversas variantes, acabava por autorizar o uso da violência como forma de reaver a posse perdida. Eis que tais juristas começaram a construir, ainda nessa época, aquilo que hoje é, de certo modo, uma trivialidade: para reaver a posse esbulhada, o Direito entrega ao ofendido não a possibilidade de buscar retomar sua posse por meio da violência, mas, sim, uma ação que é, de certo modo, um meio não violento de resolução do conflito. Por certo, não é só o Direito Romano que sopra influência nessa tradição. Há também aí uma boa pitada de cristianismo… Mas isso já seria assunto para outro texto. Alguém ainda poderia redarguir que os juristas de Bolonha sofriam menos que os cientistas modernos, perseguidos que foram pela Santa Inquisição, uma vez que, por serem letrados, gozavam de alguma proximidade e proteção da igreja. Sem embargo, isso não tira a autoridade do ponto que quero ressaltar: quem se debruça cientificamente sobre o Direito, tentando aumentar o rigor com relação àquilo que pode ser considerado o melhor argumento ou a melhor interpretação para o Direito de uma comunidade, não deixa de passar por essa mesma situação; por esse teste — quase estoico — de ter que se passar pelo rabugento e intransigente “cientista” que quer promover um certo “cuidado epistêmico” com relação à produção de sua área de conhecimento.

Pois eis que o julgamento da “chapa Dilma-Temer” pelo TSE nos atira em meio a esse ambiente cultural. Dá para dizer, com certo tom de rabugice, que fomos atirados em direto para dentro de uma certa idade média jurídica, mas no plano de um “direito regional”, e não daquele estudado pelos juristas de Bolonha.

Alguns ministros, não sabemos bem o porquê, parecem ter sido contaminados pelo vírus juris simplificandi e passaram a conduzir seus votos por meio de metáforas ou analogias altamente simplórias e, no limite, constrangedoras. O relator, Herman Benjamin, para explicar a fungibilidade do dinheiro, recorreu à metáfora da criança que propõe um jogo para os pais visando ver qual deles lhe doa mais moedas. Nos termos do argumento do ministro, se a pequenina ou o pequenino não colocar, desde logo, o numerário correspondente a cada doador em um cofrinho diferente, jamais poderá conhecer aquele que lhe conferiu maior número de moedas…! De se perguntar: para quem se dirigia o ministro quando lançou mão dessa estorieta para explicar a fungibilidade do dinheiro? De minha parte, presumo que não foi para os seus pares que o ministro procurava explicar assim o conceito jurídico de fungibilidade, uma vez que, na mais alta corte da Justiça Eleitoral do país, presumimos que existam magistrados que sabem o que significa fungibilidade… Talvez o auditório do presente julgamento fosse um pouco maior que o Plenário do TSE. E, talvez, ao lançar mão de tal recurso, o ministro estivesse procurando aumentar o nível do que ele chamou, por diversas vezes em seu voto, de “transparência”. Mas será necessário chegar a tal ponto? E o ministro Fux também deu uma aula de boas e oportunas metáforas quando quis afirmar, com certo tom solene, que o tribunal não poderia produzir um julgamento que desconsiderasse a “realidade política” que perpassa o caso. Desse modo, proclamou: “Nós somos uma corte. Avestruz é que enfia a cabeça no chão”.

O ministro Fux, aliás, rebelou-se também contra a técnica processual propriamente dita. Fazendo coro à velha moda instrumentalista, disse que as “questões de fundo” não podem prevalecer sobre as questões de mérito, sendo necessário que o acórdão a ser produzido pelo tribunal seja “o máximo possível coincidente com a realidade”.

Ah… a realidade. Essa também apareceu em outros momentos marcantes. O ministro relator, Herman Benjamin, voltou a esgrimir o vetusto “princípio” (sic) da verdade real (posso imaginar Lenio Streck, neste momento, acusando dor aguda em virtude de sua LER), como forma argumentativa justificadora do juiz-produtor-de-prova e, igualmente, da necessidade de se considerar todo o material oriundo das delações premiadas obtidas na operação "lava jato", máxime as delações da Odebrecht, no seio da ação eleitoral de “cassação da chapa Dilma-Temer”. Ora, como se sabe, a expressão “verdade real” não sobrevive a um exame lógico-analítico primário. É uma expressão vazia. Poder-se-ia afirmar, numa certa tradição carnapiana, que se trata de um enunciado metafísico. A hermenêutica vai um pouco além, mas, mesmo assim, chega a resultado comum: a verdade real é uma expressão que promove um jogo retórico e estilístico, mas não se coaduna com a melhor tradição democrática. Aliás, verdade real e verdade formal são expressões utilizadas para tentar esclarecer o teor da prova no âmbito do processo civil e criminal. Na verdade, estão a indicar o grau de certeza com que se contentaria a análise da prova no âmbito civil e criminal. Não é propriamente com a verdade que se está preocupado aqui. Na melhor forma cartesiana, a ideia é que o processo é um método que pode levar à certeza do que ali se propõem a conhecer (já analisamos essa questão em texto disponível na revista Novos Estudos Jurídicos, da Univale). Ora, numa perspectiva democrática, de processo participativo, de contraditório dinâmico, não cabe esse tipo de argumento que ainda se relaciona com a ideia de que o destinatário da prova é o juiz (e não o processo); e que este ente — o juiz — deve fazer, internamente, um juízo de certeza sobre o caso antes de proferir seu julgamento.

De se frisar: não estou aqui a avaliar se a ação deve ser julgada procedente ou improcedente (no momento em que escrevi este texto, ainda não conhecia o resultado do julgamento). Mas é de se anotar que, com esse tipo de argumento, qualquer que seja o resultado, ficará, do ponto de vista jurídico, profundamente afetado. Somos mesmo um país que pratica um tipo de Direito que ainda não se libertou completamente de comportamentos medievais. Além de tudo o que foi dito acima, temos ainda que este processo acaba por desnudar que não conseguimos diferenciar Direito de política. Tudo nele é estranho. A começar pelo fato de ter durado tanto tempo. Daí que faz sentido a tese de que um processo que fique permanentemente em aberto nunca deixará de possibilitar nova instrução probatória. O que seria kafkiano, para dizer o mínimo. Por outro lado, o argumento de que cassando o presidente a situação política e econômica do país ficará ainda pior também não pode ser um motivo para a improcedência da ação. Do contrário, estaríamos no plano de um consequencialismo qualquer.

De todo modo, é certo que esse julgamento, independentemente de seu resultado, entrará para a história. Seja porque julgou a lisura da candidatura do presidente no exercício do mandato (três anos depois…!); seja porque assistimos a este triste espetáculo de medievalização do Direito. Ou ainda, de imersão da técnica jurídica em um neodireito germânico. Do julgamento de Jesus Cristo, passando pela “teoria do cofrinho” até chegar à metáfora da corte-avestruz. Quem irá vencer? Não sabemos. Mas há um perdedor indiscutível: a ciência jurídica.


[1] Berman, Harold. Law and Revolution. Cambridge: Harvard University Press, 1983, pp. 120 e segs.

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