Responsabilidade ilimitada

Ao não exigir prova de dolo, Lei de Drogas facilita prisão de usuário como traficante

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18 de fevereiro de 2017, 6h04

*Esta é terceira reportagem da série produzida pela ConJur sobre a relação entre a guerra às drogas e a superlotação dos presídios. Para ler os outros textos, clique aqui.

No sistema penal brasileiro, uma pessoa só pode ser responsabilizada por um crime se tiver agido com dolo ou culpa. Porém, não é isso o que ocorre com tráfico de entorpecentes. Com base na quantidade de droga apreendida, policiais definem se o acusado vai ser classificado como usuário ou traficante, sem se preocuparem em verificar a conduta dele. Isso dá margem a arbitrariedades e dificulta ainda mais o trabalho da defesa.

Crime é um fato típico (previsto em lei), antijurídico (pois viola um direito) e culpável (passível de ser atribuído a alguém). Além disso, o delito se desdobra em elementos objetivos e subjetivos, ou seja, os atos e a conduta de quem os praticou.

Segundo o artigo 18 do Código Penal, “ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente” ou quando há modalidade culposa. Dessa forma, só ocorre delito “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo” (dolo, artigo 18, I, Código Penal) ou “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia” (culpa, artigo 18, II, Código Penal).

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Polícia decide se é uso ou tráfico pela quantia de droga apreendida, sem ver se pessoa estava praticando comércio.
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Contudo, os policiais não costumam levar em conta se houve dolo ou não quando alguém é pego com drogas (os delitos desse tipo não têm previsão de culpa). Embora o artigo 28, parágrafo 2º, da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) estabeleça que o juiz deverá pesar as circunstâncias geográficas, sociais e pessoais da abordagem policial para decidir se o caso é de uso ou tráfico, o que acaba por determinar essa classificação é a quantidade de droga apreendida. De acordo com este dispositivo, a quantia deveria ser apenas mais um elemento para se fazer tal definição. Mas, na prática, o enquadramento é feito principalmente com base na substância, e já pelos agentes que fizeram a autuação.

O modelo brasileiro seguiu o dos EUA, que estabelece responsabilidade penal objetiva em caso de tráfico de drogas, como aponta a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Luciana Boiteux em sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo.

A guinada ocorreu na Convenção para a Repressão do Tráfico Ilícito das Drogas Nocivas, que aconteceu em Genebra, em 1936. Na ocasião, os EUA queriam tornar o tipo penal do tráfico de drogas o mais abstrato possível, de forma a evitar que fosse necessário comprovar o dolo do agente, conforme relata o juiz da Vara de Execução Penal de Manaus, Luís Carlos Valois, em seu livro O Direito Penal da guerra às drogas (D’Plácido). Com isso, buscaram criar um delito de fácil apuração e condenação. Outra consequência dessa mudança de paradigma foi a ampliação das condutas que são consideradas tráfico de drogas. No Brasil, o artigo 33 da Lei de Drogas possui 18 verbos.

Amparada por esse amplo rol de condutas e sem ter que provar a intenção da pessoa, a acusação (policiais e integrantes do Ministério Público) ficou superfortalecida. Prova disso é que 74% das prisões em flagrante por entorpecentes têm apenas um tipo de testemunha: os policiais que participaram da operação.  

Em contrapartida, a defesa se enfraqueceu, e passou a ter que provar a inocência do acusado, numa inversão do princípio constitucional de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (artigo 5º, LVII, da Constituição). O resultado de tudo isso está claro no raio-x do sistema carcerário brasileiro feito pelo Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça. Conforme o último levantamento, de dezembro de 2014, há 174.216 presos por tráfico no país, e esse delito é o que mais leva gente para as penitenciárias: 28% dos 622.202 detentos do Brasil. Esse percentual é ainda maior quando a conta inclui apenas mulheres: 64% das presidiárias estão encarceradas pelo artigo 33 da Lei de Drogas.

Anomalia penal
Condenar alguém por um crime sem demonstrar que ele agiu com dolo ou culpa contraria um dos pilares do Direito Penal brasileiro, que exige a prova de que a conduta da pessoa contribuiu para a ocorrência do delito. Isso porque não existe responsabilidade penal objetiva com relação a pessoas físicas no país.

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Para Maíra Fernandes, a condenação sem verificar o dolo do agente não é coerente com o sistema penal brasileiro
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Na visão da ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro Maíra Fernandes, a punição por tráfico sem prova da conduta é uma “anomalia” responsável pelo sistema prisional estar “completamente superlotado”.

“Se não houvesse essa anomalia, se os juízes realmente considerassem a necessidade de comprovação da conduta, de provas concretas e tudo o mais, provavelmente não prenderiam como prendem, ou não manteriam preso como mantêm”, avalia a advogada.

A situação piora porque as cinco condutas que configuram o uso de entorpecentes (adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo) no artigo 28 da Lei de Drogas são repetidas no artigo 33, de tráfico, aponta o professor da UFRJ Salo de Carvalho. A diferença entre os dois crimes deveria ser feita pela verificação do dolo. No entanto, o artigo 33 não tem nenhuma indicação de que o delito só ocorre se houver fins comerciais. E essa ausência dá margem a arbitrariedades, diz o professor.

“Já tem na estrutura normativa essa tipicidade extremamente volátil, porosa. Ao levar essas ambiguidades, essas lacunas normativas para dentro da realidade cotidiana, transformam isso numa carta em branco para a autoridade policial, que tem a arbitrariedade de definir se a pessoa vai ser enquadrada como usuária ou traficante”, opina.

Por sua vez, o presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, o criminalista Técio Lins e Silva, entende que prisões e condenações arbitrárias continuarão ocorrendo se não houver uma mudança cultural sobre a forma como as drogas são encaradas pela sociedade.

Norma compatível
A necessidade de qualificar a conduta seria desnecessária para alguns atos do artigo 33 da Lei de Drogas, como produzir, fabricar e exportar entorpecentes, diz o advogado criminalista Bruno Rodrigues. Esses atos, explica, são impossíveis de serem praticados sem dolo. Rodrigues ressalta que se o acusado for usuário, ele pode apresentar um incidente de dependência química para provar que não é traficante.

O procurador de Justiça de São Paulo Márcio Sérgio Christino, por sua vez, afirma que o dolo é provado pelas circunstâncias, não só pela quantidade de droga que o acusado portava. E o réu só é considerado culpado após passar por avaliações dos policiais, do delegado, do Ministério Público e do juiz, o que garante a regularidade da ação criminal, destaca.

Tabela polêmica
Certos países, como Espanha e Portugal, estabelecem quantidades de drogas que são consideradas como para uso próprio. Acima disso, a acusação será por tráfico. Mas especialistas ouvidos pela ConJur discordam se essa medida ajudaria a evitar arbitrariedades.

De um lado, Márcio Sérgio Christino e Bruno Rodrigues entendem que a fixação de critérios objetivos não seria benéfica. Para o procurador de Justiça, essa regra facilitaria a vida de traficantes, que passariam a ser enquadrados como usuários se carregassem pequenas quantidades de droga — tática que, segundo ele, os comerciantes já empregam para fugir de penas altas.

Aos olhos de Rodrigues, a alteração fragilizaria a defesa dos usuários. A razão disso está no fato de que cada organismo reage de forma diferente aos entorpecentes. Logo, quem usa grandes quantidades de droga poderia ser injustamente enquadrado como traficante.

Por outro lado, Salo de Carvalho acredita que a delimitação das quantidades de uso aumentaria a segurança jurídica do sistema. Assim, abaixo de um determinado patamar, a pessoa seria presumida usuária. Se tal teto fosse ultrapassado, polícia e MP poderiam acusar de tráfico desde que provassem que o sujeito agiu com dolo — como idealmente já deveria ocorrer em todos os casos.

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