Tribuna da Defensoria

Questões sobre a atuação da Defensoria Pública nas ações possessórias

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18 de abril de 2017, 8h10

Após o decurso de pouco mais de um ano de vigência do novel Código Processual Cível, verificou-se que o mesmo não só pôs fim a uma série de inadequações doutrinárias encampadas pelo antigo diploma processual como também inovou e atualizou os procedimentos, tanto os especiais quanto o comum, visando, a um só tempo, prestar uma mais efetiva tutela jurisdicional, com a devida rapidez tão e sempre sonhada pelos jurisdicionados, como também garantir, por meio de nuances procedimentais, o adequado tratamento do hipossuficiente.

E é justamente nesse vasto campo de inovações que constatamos a reforma no que toca às ações possessórias. Frisa-se, ab initio, que nem todas as novidades trazidas por tal seção são louváveis, uma vez que não só deram azo a novas discussões acerca da natureza jurídica de certas previsões como se mantiveram indiferentes frente a certas omissões que já se verificavam desde 1973.

Como exemplo do que ficou por mudar, podemos mencionar a manutenção da diferenciação dos interditos possessórios (manutenção, reintegração, interdito proibitório). A fungibilidade, decorrente da mutabilidade acentuada e dinâmica do quadro fático desses pleitos, é, há muito, um reconhecimento legislativo da inutilidade desse pseudotecnicismo. O neoprocessualismo, estágio contemporâneo que tanto prestigia a instrumentalidade, se afeiçoa com a primazia do mérito (a retomada da posse tranquila), com a efetividade, com o aproveitamento dos atos processuais — valores todos prestigiados pela fungibilidade, mas muito mais de acordo com uma única previsão de ação possessória.

Nosso foco, porém, será, nesta breve reflexão, a participação da Defensoria Pública em tal modalidade de litígios, dotados de fortíssima roupagem social (e política). São duas menções, transcritas para que o leitor nos possa acompanhar com maior fluência:

  • a do artigo 554, parágrafo 1º (“No caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública”);
  • e a do artigo 565, parágrafo 2º (“Art. 565.  No litígio coletivo pela posse de imóvel, quando o esbulho ou a turbação afirmado na petição inicial houver ocorrido há mais de ano e dia, o juiz, antes de apreciar o pedido de concessão da medida liminar, deverá designar audiência de mediação, a realizar-se em até 30 (trinta) dias, que observará o disposto nos §§ 2º e 4º. § 2º O Ministério Público será intimado para comparecer à audiência, e a Defensoria Pública será intimada sempre que houver parte beneficiária de gratuidade da justiça”).

É possível perceber que ambas se referem a imbróglios plurais sobre a posse, não estando voltados à clássica relação jurídica individualista autor-réu. O artigo 554, parágrafo 1º, fala em grande número de pessoas no polo passivo, enquanto o artigo 565 inova ao versar sobre um assim chamado litígio coletivo pela posse, em cuja audiência de mediação a Defensoria deverá marcar presença, se existir parte beneficiária da gratuidade de Justiça.

Posta a lei, vamos às indagações que dela decorrem espontaneamente.

Primeira questão: os dois artigos tratam da mesma hipótese? O litígio coletivo pela posse, que o CPC não conceitua, é aquele com um grande número de pessoas no polo passivo?

Adroaldo Furtado Fabrício, comentando o segundo dispositivo, concluiu que sim[1]. De fato, é o parâmetro que imediatamente surge na mente do intérprete, solucionando a pergunta dentro do próprio microssistema (palavra da moda) das ações possessórias.

Não podemos, contudo, ignorar a possibilidade de uma pluralidade (também) no polo oposto, isto é, de autores. A hipótese é, por óbvio, mais remota, porém vislumbrável: imagine-se uma composse exercida por uma coletividade de pessoas que vem a ser ofendida por uma atuação ilícita do poder público, ao desrespeitar o devido processo legal desapropriatório, por exemplo. Da mesma maneira, se a ofensa for perpetrada por uma coletividade (haveria litisconsórcio nos dois polos).

Seria cabível o ajuizamento de ação coletiva, em existindo associação de moradores ou interesse de um colegitimado, mas igualmente o seria o manejo de tutela possessória com litisconsórcio ativo, ainda que numeroso (a pluralidade de pessoas dificulta, mas nem sempre impede a organização pré-processual).

Concluímos, assim, que litígio possessivo sobre posse é aquele em que uma coletividade (pluralidade de pessoas) está presente em um dos polos do processo — e não apenas no polo passivo. Aplicável, então, a previsão conciliatória do artigo 565 quando os autores forem múltiplos, ante a literalidade do comando, reforçada pela regra de extensão do seu parágrafo 5º, capaz de levar a audiência de mediação para a ação de usucapião coletiva[2] (onde o elevado número diz respeito aos requerentes, não ao réu).

Segunda pergunta: qual é a natureza jurídica desses litígios: ação coletiva (passiva) ou litisconsórcios multitudinários?

Pela vez primeira, o código tratou dos litígios possessórios coletivos. Ou seriam multitudinários? A questão, longe de significar um purismo conceitual, foi inaugurada, entre nós, por José Aurélio de Araújo[3], que, em linhas exemplares sobre o tema, indagou se a participação da Defensoria, mencionada no artigo 554, parágrafo 1º, seria exemplo de ação coletiva passiva.

A resposta, com a qual estamos de acordo, é negativa para a ação coletiva passiva: o legislador teria que ter dito mais para inaugurar instrumento processual tão rebuscado — seria fundamental prever os efeitos da coisa julgada, por exemplo. O objeto tampouco será transindividual: a composse é exercida em conjunto, por vezes até de maneira individualizável. Além do mais, a mera intimação não goza de caráter citatório (repare que não se falou em citação ou notificação, mas precisamente intimação).

Terceira pergunta: a que título, então atuará a Defensoria Pública?

Parcela da doutrina[4] concluiu, apressadamente, que nada haveria de novo para a atuação defensorial. Essa posição se motiva pelas ressalvas literais feitas pelo código (“se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica” e “sempre que houver parte beneficiária da gratuidade judiciária”).

São de se destacar, ainda, as conclusões de Maurílio Casas Maia, que, em profunda e vasta análise sobre o presente tema, diferenciou a atuação do defensor do artigo 565, parágrafo 2º, em diversos cenários[5]. Em breve síntese, entendeu o autor que a participação do agente político se daria independentemente da presença do advogado privado representando a coletividade hipossuficiente.

Desse modo, ao comparecer à audiência de mediação referida, caso o defensor público verifique a adequada representação e presença do advogado constituído poderá: a) se manter inerte quando não detectar traços de desequilíbrio processual ou de séria vulnerabilidade; ou b) assumir o papel de assistente simples da parte beneficiária da gratuidade judiciária, a fim de reequilibrar o embate processual ali existente.

Por fim, seria ainda possível uma atuação “eventual” da Defensoria Pública no caso de abandono do patrocínio pelo advogado. Nessa hipótese, tanto pela impossibilidade financeira na constituição de um novo quanto pela mera vontade da coletividade vulnerável, teríamos a nomeação do defensor público para atuar como representante postulatório da parte. A nós causa espécie a aparente subordinação do defensor à conduta aleatória do patrono privado.

No entanto, concordamos com José Augusto Garcia de Sousa[6], voz presente no delineio do CPC/2015 ainda em seu trâmite legislativo. Seguramente, alguma nova função o legislador quis trazer, caso contrário seria despicienda a menção do artigo 554, parágrafo 1º, ao lado da citação pessoal dos ocupantes encontrados pelo oficial de Justiça e da chamada editalícia daqueles não identificados individualmente nessa ocasião.

Franklin Roger e Diogo Esteves enxergaram legitimidade extraordinária, capaz de resguardar o contraditório e a ampla defesa, e de dispensar a atuação de curador especial para os sujeitos citados fictamente (artigo 72, II). Bastaria, então, a atuação da DP para suprir a lacuna deixada. Para os autores, inclusive, tratar-se-ia de uma legítima hipótese de manifestação por negativa geral (artigo 341, parágrafo único).

Em tempos de contraditório participativo, fundamento democrático do processo, soa mais prudente manter a atuação da curadoria em favor dos possuidores citados por edital. Até podemos concordar que não haja necessidade de um curador para cada possuidor — até porque pode ser impossível, em concreto, identificar o número de réus ausentes —, bastando a atuação de um defensor-curador por grupo, ou por subgrupo, em havendo segmentos internos à multidão, porém a atuação da Defensoria na forma do parágrafo 1º do artigo 554 não parece coincidir com a do artigo 4º, XVI da LC 80/94.

Verdadeiramente, o anseio do legislador, ciente da complexidade sócio-política inerente à matéria, parece ter sido robustecer a legitimidade da decisão judicial (elemento político das possessórias). A Defensoria possui vocação para dialogar com os vulneráveis, mesmo quando não os representa.

Em outras palavras: embora a lei aparentemente condicione a intimação da DP à presença de hipossuficientes econômicos, quer-se mais que isso. Caso contrário, o dispositivo não diria mais que o óbvio (como pretende aquela primeira corrente doutrinária, mencionada supra).

Trata-se, pois, de atuação da Defensoria em auxílio do juízo (o que não significa a ele subordinado), mais próxima das figuras participativas como a do amicus curiae, cujo ingresso na cena processual foi franqueado indistintamente pelo artigo 138. Similarmente, a atuação do defensor público, oriunda tanto do artigo 554, parágrafo 1º, como do artigo 565, parágrafo 2º, não abarca a elaboração de pedido, porque a DP não será parte, e sim orbitará, em atividade (re)mediadora, em torno do litígio instaurado. Não se trata de representação postulatória, mas de dialogar e propor saídas — ao juízo e às partes.

Da mesma forma, na audiência de mediação[7] do artigo 565, o defensor público atuará sempre que puder contribuir para a pacificação social, respeitadas as exigências constitucionais (este o conceito moderno de jurisdição). Também, aqui, foi infeliz a lei: a relação entre presença da Defensoria e gratuidade judiciária é das mais anacrônicas, devendo ter sido referida a hipossuficiência como critério de atuação, ou, ainda melhor, se ter deixado um silêncio.

Sim, bastava ter silenciado, falando apenas em “intimação da Defensoria Pública”. É difícil compreender por que o código, quando menciona a intimação do MP, não fica esclarecendo as razões de seu atuar, não repetindo o artigo 178, mas, quando fala na Defensoria, resolve sempre condicionar a atuação, quando a dogmática já há tanto evoluiu. O resultado salta aos olhos: uma série de relações equivocadas e um balde de regramentos natimortos.

Quarta pergunta: o defensor chamado pelo artigo 554, parágrafo 1º, é o mesmo daquele provocado pelo artigo 565, parágrafo 2º?

Seguindo a lógica externada, apenas podemos entender que, como regra, sim. Afinal de contas, as funções da Defensoria clássicas, conhecidas desde o CPC/1973 (patrocínio dos interesses dos hipossuficientes econômicos citados pessoalmente que não constituam advogado e curadoria especial dos citados por edital) são mantidas. O que se agrega é a função pacificadora do conflito social, para a qual é chamado o defensor pelos dois comandos.

Em ótica diversa, Maurilio Maia entendeu que, geralmente, haverá colisão de interesses entre o defensor do artigo 554, parágrafo 1º, e o do artigo 565, parágrafo 2º, o que afastaria a possibilidade de atuação de somente um defensor. Entretanto, não deixa de consignar que, caso haja efetiva assistência jurídica pela advocacia privada e inexista colisão de interesses, será possível que o mesmo membro da Defensoria Pública desempenhe as duas funções[8].

Conclusões
O Código de Processo Civil resolveu inovar nas possessórias. Nem por isso andou bem: ignorou modificações recomendáveis e delineou criações incongruentes (veja-se o caput do artigo 565, que consegue colocar as palavras “liminar” e “ação e força velha” na mesma frase, instaurando um autêntico caos jurídico). Consequência imediata: interrogações e mais interrogações, algumas acompanhadas de exclamações.

A inclusão do tratamento dos litígios multitudinários sobre a posse foi uma decisão motivada pelas repetidas intercorrências práticas em nosso país. Sua tradução jurídica é que não ficou clara. Neste breve ensaio (a ser alongado), procuramos concatenar posicionamentos institucionais existentes, certos de que o debate mal principiou.

Para nós, em suma, o atuar defensorial oriundo do artigo 554, parágrafo 1º, e do artigo 565, parágrafo 2º, não se confunde com a representação postulatória dos réus citados pessoalmente nem com a curadoria especial, destinada àqueles ausentes no momento em que o oficial de Justiça vai ao imóvel objeto da lide. Existe uma terceira participação da Defensoria Pública no juízo possessório: a função pacificadora do conflito, instigada pela necessidade de diálogo com os envolvidos — o que fica evidente pela menção à intimação para a mediação (que merece ser ampliada para todos os conflitos possessórios).

Tem-se, com efeito, ferramenta adicional às do artigo 554, parágrafo 3º, para o efetivo envolvimento dos interessados na discussão processual: o defensor público, uma vez mais agente de transformação social.


[1] Comentário ao artigo 565. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et. al. (orgs.). Breves comentários ao código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. Versão eletrônica.
[2] É a dicção do enunciado 328 do FPPC: “328. Os arts. 554 e 565 do CPC aplicam-se à ação de usucapião coletiva (art. 10 da Lei 10.258/2001) e ao processo em que exercido o direito a que se referem os §§ 4º e 5º do art. 1.228, Código Civil, especialmente quanto à necessidade de ampla publicidade da ação e da participação do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos órgãos estatais responsáveis pela reforma agrária e política urbana”.
[3] ARAÚJO, José Aurélio de. O litígio coletivo da posse dos artigos 554 e 565 do novo CPC e a natureza da atuação da Defensoria Pública. In: SOUSA, José Augusto Garcia de (org.). Defensoria Pública. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 527-548.
[4] FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Op. cit.
[5] MAIA, Maurílio Casa. A Intervenção De Terceiro da Defensoria Pública nas Ações Possessórias Multitudinárias do NCPC: Colisão de Interesses (art. 4º-A, V, LC n. 80/1994) e posições processuais dinâmicas. In: DIDIER, Fredie (Coord.). Novo CPC – Doutrina Selecionada. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 1276-1279.
[6] SOUSA, José Augusto Garcia de. A Defensoria Pública e o Código de Processo Civil de 2015. In: ______ (org.). Op. cit. p. 496.
[7] O que seria, de todo, condenável é a banalização do encontro mediador, e sua provocação como instrumento protelatório, como já alertado por nós (http://www.conjur.com.br/2016-set-27/tribuna-defensoria-mediacao-prevista-cpc-nao-tornar-mecanismo-procrastinacao) e por Marcelo Mazzola (http://www.conjur.com.br/2017-mar-28/mazzola-audiencia-mediacao-usada-subterfugio-abusos), sempre neste portal.
[8] MAIA, Maurílio Casa. Op. cit., p. 1274-1275.

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