Contas à Vista

O financiamento de campanhas eleitorais e o risco café society

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  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

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6 de setembro de 2016, 8h00

Spacca
Para você que está desempregado, ou que busca uma melhor colocação, há uma oportunidade ímpar à sua frente. Existem quase 64 mil vagas disponíveis para serem preenchidas nas diversas câmaras de vereadores e prefeituras ao longo de todo o território brasileiro. Inscreveram-se 491 mil candidatos. Se você perdeu a inscrição para 2016, não se preocupe; 2018 chega logo, com muito mais vagas.

Já que o Direito Constitucional no Brasil está um verdadeiro jogo de várzea, daqueles que o zagueiro dá chutão para todo lado, e o goleiro aproveita a folga para chupar umas laranjas, introduzo um tema relevante para todos os brasileiros, que serão instados a dar seu voto a algum candidato em outubro próximo, seja no primeiro turno, dia 2, seja no segundo turno (onde couber), dia 30. Trata-se de um importantíssimo capítulo do Direito Financeiro, que denomino de Direito Financeiro Eleitoral, área desse ramo do Direito que cuida do financiamento dos candidatos aos cargos políticos. Trata-se de regras que mudam a cada eleição, de tal modo que as atualmente vigentes, mesmo sem serem testadas, já estão sob a alça de mira para alteração na temível eleição presidencial de 2018 — quando fará 30 anos a nossa Constituição, já toda estropiada, seja pelas diversas emendas pelas quais passou, seja pelas diversas torturas interpretativas à qual é submetida todos os dias, pela direita, pela esquerda, pelo centrão, pelo TCU, pelo Congresso, pelo STF e por aí vai. A Constituição brasileira sucumbiu à política.

Logo, é necessário voltar os olhos para a política, e, sob o aspecto do financiamento eleitoral, estabelecer regras mais equânimes para a disputa. Quem sabe ainda consigamos recuperar o prestígio do Direito como um todo.

O Direito Financeiro Eleitoral hoje vigente vai regular as eleições municipais, nas quais é possível a realização de coligações partidárias tanto para o pleito majoritário de prefeitos, quanto para a disputa proporcional de vereador. Como esses candidatos podem receber recursos para financiar suas campanhas?

A minirreforma eleitoral promovida pela Lei 13.165, de 29 de setembro de 2015 (que modificou a Lei 9.504/97), prevê (artigos 5º e 6º) que haverá um teto de gastos nas campanhas eleitorais dos candidatos, definido com base nos gastos declarados na eleição anterior, ocorrida em 2012. A regra geral visa reduzir os gastos eleitorais ocorridos na última campanha.

Para os candidatos a prefeito, no primeiro turno, o teto de gastos será de 70% do maior gasto declarado na eleição de 2012, nos municípios em que houve apenas um turno; e de 50% do maior gasto de 2012, nos municípios em que houve dois turnos. Para o segundo turno, onde houver, o limite de gastos será de 30% do valor previsto acima.

Para os candidatos ao cargo de vereador, o limite de gastos nas campanhas eleitorais será de 70% do maior gasto contratado em 2012.

Nos municípios com até dez mil eleitores, o limite de gastos será de R$ 100 mil para prefeito e de R$ 10 mil para vereador, se a regra acima estipulada não previr montante maior.

Essa conta implica em dizer que cada candidato a prefeito da cidade de São Paulo, para convencer os quase 9 milhões de eleitores de que é o melhor, “só pode gastar” R$ 45 milhões no primeiro turno, e R$ 13 milhões no segundo turno. Para os candidatos a vereador, o teto é de R$ 3,2 milhões. O cálculo é do TSE[1].

Para capitais com menor tamanho, como Belém, cada candidato a prefeito “só poderá gastar” no primeiro turno a quantia de R$ 1,4 milhão, e no segundo turno, R$ 424 mil. Os vereadores poderão gastar até R$ 384 mil. O eleitorado dessa cidade é composto de pouco mais de um milhão de pessoas.

Estabelecida por lei a regra do teto de financiamento eleitoral para cada candidato, resta saber: de onde virá o dinheiro? Afinal, aquelas pessoas que conseguirem maior financiamento possuem maior chance de serem eleitas. Não se trata de uma equação que determine a vitória do candidato, mas é um grande reforço de campanha. Quando se estipula um teto de gastos para a campanha de vereador na cidade de São Paulo em R$ 3,2 milhões, estima-se que é muito possível que um gasto dessa natureza venha a ser alcançado. Afinal, trata-se de “apenas” 70% do maior gasto ocorrido na eleição para esse cargo em 2012, aplicada a correção monetária.

Na verdade, nos dias atuais, dinheiro não compra voto; dinheiro compra exposição do candidato aos eleitores. Quem mais se expuser, mais chances terá de aparecer ao eleitorado e divulgar suas ideias (ou sua versão dos fatos e ideias). Trata-se de uma lógica de propaganda e marketing.

No Brasil, é adotado o sistema misto de financiamento de campanhas: público e privado.

O sistema público é composto do Fundo Partidário (cujo nome oficial é Fundo Especial de Assistência Financeira aos partidos políticos), que tem receitas orçadas em R$ 819 milhões para 2016, apenas para os partidos políticos, sem contar o que é desembolsado para custear o horário eleitoral “gratuito”, pelo qual nós também pagamos. Esse valor é transferido mensalmente aos partidos políticos.

O Fundo Partidário é composto basicamente de dotações orçamentárias, e nos últimos anos tem sido aumentado de forma exponencial. Todos os 35 partidos políticos registrados no TSE recebem, de forma igual, 5% do valor do fundo. Os outros 95% são repartidos de acordo com o número de votos recebidos na eleição para deputado federal. Dessa forma, em agosto de 2016, o PT recebeu quase R$ 8 milhões, o PSBD recebeu pouco mais de R$ 6,7 milhões, e o PMDB quase R$ 6,6 milhões. Até mesmo o ínfimo Partido da Mulher Brasileira (PMB), recebeu R$ 87 mil[2].

O uso dessa “grana” é deliberado por cada partido, de acordo com sua estrutura partidária, podendo ser usado para a manutenção das sedes e serviços do partido; na propaganda doutrinária e política; no alistamento e campanhas eleitorais; na criação e manutenção de instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política, entre outras possibilidades.

Pode ocorrer que um partido decida “economizar” nos gastos para as campanhas municipais deste ano, visando gastar mais nas eleições gerais de 2018. Trata-se de uma estratégia de cada agremiação, considerando que é a eleição para deputados federais que determina o rateio de 95% do Fundo Partidário. Logo, pode ocorrer que a estratégia partidária seja colocar mais dinheiro nas eleições parlamentares de 2018, em vez de gastar dinheiro nas eleições municipais de 2016. Existem partidos que preferem comprar helicópteros, mansões e jatinhos, como divulgado acerca do Partido Republicano da Ordem Social (Pros), que recebeu do Fundo Partidário R$ 24 milhões em 2015[3].

Todavia, pode ocorrer que algumas cadeiras municipais sejam muito cobiçadas, o que leva os partidos a gastar mais em certas localidades — sempre respeitando o teto. Por exemplo, pode ser importantíssimo para a coligação partidária formada por PRB, PSC, PTN e PEN obter a Prefeitura de São Paulo, o que pode lhes levar a gastar todo o dinheiro do fundo na campanha de Celso Russomano.

O fato é que as estruturas partidárias decidem como, quando e onde gastar, o que pode deixar os candidatos à mercê dos “donos dos partidos”, no meio da campanha, e levar os candidatos a buscar dinheiro em outras fontes, o que é permitido pelo atual Direito Financeiro Eleitoral.

O financiamento privado pode ser de diversas naturezas.

Este ano, por força de decisão do STF (ADI 4.650), bem como por força de veto presidencial a artigos da Lei 13.165/15, é vedado o financiamento por meio de empresas. Não é necessário dizer que se trata de um reflexo da “lava jato”, que vem demonstrando a forma como os partidos políticos se financiavam — corrupção que ocorria desde sempre, conforme relatos doutrinários[4].

A Lei 9.504/97, com alterações, permite que as pessoas físicas possam fazer doações em dinheiro ou estimáveis em dinheiro para as campanhas eleitorais, desde que limitadas a 10% dos rendimentos brutos auferidos pelo doador no ano anterior à eleição (artigo 23, parágrafo 1º). Nesse sentido, quem ganhou mais dinheiro em 2015 poderá fazer maior doação eleitoral em 2016, observada sua declaração de Imposto de Renda Pessoa Física.

A mesma lei permite que os candidatos usem recursos próprios em sua campanha até o limite de gastos estabelecido pelo TSE (parágrafo 1º A). Trata-se da hipótese de autofinanciamento.

O que está por detrás dessas regras? Uma tentativa de moralização do financiamento eleitoral, afastando as doações empresariais, que se supõe sejam todas repletas de “segundas intenções”, bem como uma busca por campanhas eleitorais “mais baratas”.

Mesmo respeitando o nobre ideal que moveu a criação dessa fórmula financeira, verifica-se que ela apresenta alguns “furos, independente da possibilidade de fraudes, pois essas, se ocorrerem, devem ser coibidas na forma da lei. Trato de outra espécie de “furos”.

A fórmula financeira adotada fará com que, quem tenha mais dinheiro possa se tornar um “grande doador”. Assim, quem obteve mais renda em 2015 poderá gastar mais, financiando os candidatos de sua preferência em 2016. E os candidatos “ricos” poderão financiar suas próprias campanhas. Basta ver que um dos candidatos à prefeitura paulistana declarou à Receita Federal um rol de bens no valor de R$ 180 milhões (dos quais R$ 30 milhões em obras de arte). Em tese, esse candidato poderia autofinanciar a própria campanha eleitoral. Trata-se de João Dória, cuja coligação reúne 13 partidos: PSDB, PSB, Democratas, PPS, PV, PP, PHS, PMB, PRP, PTdoB, PTN, PTC e PSL. Eis o problema, pois isso poderá nos levar à maior oligarquização da eleição, isto é, quem tem mais dinheiro poderá dar as cartas do jogo eleitoral.

Quem acompanhou a leitura até este ponto pode estar pensando que sou contra os ricos participarem das eleições. Não. Definitivamente, não é esse o foco. Penso que os candidatos ricos não só podem como devem participar — mas com igualdade de armas. Esse é o ponto.

Para ser efetivamente democrática a disputa, essas diferenças de riqueza devem ser neutralizadas — isto é, juridicamente neutralizadas —, a fim de permitir que as pessoas concorram em igualdade de condições. A melhor fórmula para isso é estabelecer um teto fixo para as doações. Desse modo, cada pessoa física, independentemente de sua riqueza, poderá doar um valor fixo, suponhamos, apenas como exemplo, de R$ 10 mil. Seja pobre, remediado, rico ou bilionário, o teto de doações seria de R$ 10 mil. Quem quisesse poderia doar R$ 1 ou R$ 10 ou R$ 10 mil. Porém, ninguém poderia doar acima de R$ 10 mil, independentemente de sua renda. O mesmo valeria para a hipótese do autofinanciamento.

Isso diminuiria as diferenças financeiras entre os candidatos, e também entre os eleitores, igualando as armas na disputa eleitoral. Desapareceria a figura do “grande doador eleitoral”, que, de certa forma, substitui as empresas no financiamento. Afinal, não é tão difícil aumentar a distribuição de lucros na pessoa jurídica e acrescer o rendimento bruto do sócio (pessoa física) referente ao ano anterior, por meio de uma declaração retificadora de imposto sobre a renda. Sendo distribuição de lucros, não haverá incidência de imposto sobre a renda, mas aumenta o montante do rendimento bruto dos sócios. Com isso, o teto individual sobe, e o grande eleitor se torna ainda maior.

Por outro lado, quem ganha pouco nada tem para doar. Na verdade, até falta grana para fechar o mês. Assim, quem ganha menos pode doar menos. Logo, a regra atual é regressiva e incorre em grave erro dentro de uma perspectiva democrática.

O risco é que a política se transforme em um clube de ricos, estilo café society, para usar a imagem do excelente filme de Woody Allen, no qual relata as relações de um casal entre New York (onde fica o tal clube) e Hollywood. O efeito café society, portanto, seria criar um ambiente eleitoral onde só quem tivesse dinheiro poderia entrar no clube. Seguramente, circulam pelo clube os garçons, cozinheiros, músicos e até cantoras, mas quem está se divertindo é a turma da grana.

Claro que esse efeito café society só ocorrerá se esse modelo de financiamento permanecer por longo tempo, o que não me parece democraticamente saudável. Ocorre que a norma que rege o financiamento das eleições municipais de 2016 é perene e regerá as eleições de 2018 — se não for alterada.

Em síntese, existem muito boas intenções nessa mudança de paradigma de financiamento eleitoral para 2016: a tentativa de neutralizar a influência econômica das empresas nas eleições; a criação de um teto de gastos com a campanha; e a busca pela redução da corrupção, dentre várias outras. Até mesmo a existência de um teto de doação individual é uma boa ideia, que deve ser aperfeiçoada, transformando-se de um montante ad valorem (isto é, percentual sobre sua renda) para um montante fixo, em limite razoável.

É óbvio que outros aspectos devem ser melhor analisados, além dos referentes do Direito Financeiro Eleitoral, mas isso é prosa para outra ocasião: coligações em eleição proporcional, voto distrital, voto em lista, distribuição de tempo no horário eleitoral e muitas outras coisas.

Penso que na mais recente reforma do financiamento eleitoral houve preocupação apenas com a questão da corrupção, tendo sido deixado em segundo plano o aspecto da isonomia na disputa eleitoral. O modelo de financiamento adotado para 2016 contém o risco do efeito café society, que, de certa forma, pode ser o ovo da serpente em nosso sistema[5]. É importante para todos afastar esse risco de nosso sistema eleitoral.


[1] http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2016/divulgacao-de-candidaturas-e-contas-eleitorais
[2] http://www.tse.jus.br/servicos-judiciais/diario-da-justica-eletronico-1
[3] Pros usou o dinheiro público para comprar helicóptero, jato e mansão, reportagem do jornal Valor Econômico, de 19/8/16.
[4] A doutrina sobre o tema é vasta, sendo suficiente elencar a obra de Pedro Henrique Pedreira Campos, Estranhas Catedrais – As empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2014.
[5] Referência ao filme de Ingmar Bergman; afinal, falar de Woody Allen leva a também falar de Bergman.

Autores

  • é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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