Interesse Público

Lei das Estatais e seu período de transição: estudo de caso em MG

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27 de outubro de 2016, 10h11

Spacca
A Lei 13.303/2016 estabeleceu o Estatuto Jurídico das Empresas Estatais, regulamentando o artigo 173, parágrafo 1º da Constituição da República, com a redação dada pela Emenda Constitucional 19/98. Os temas fundamentais tratados pela nova legislação, previstos, respectivamente, no Capítulo II do Título I e no Título II da lei, foram: a) regime jurídico societário — com imposição de regras mais rígidas sobre direção e funcionamento das empresas estatais e subsidiárias; b) regime jurídico das licitações e contratos (em substituição à disciplina da Lei 8.666/93).

Todavia, a principal controvérsia acerca do novo Estatuto das Empresas Estatais reside no prazo para sua aplicação plena. Isto porque, a despeito da vigência imediata (artigo 97), incumbiu-se o legislador de prescrever que as empresas estatais, constituídas anteriormente a 30 de junho de 2016 (data da entrada em vigor), têm o prazo de 24 meses para promoverem as adaptações necessárias para que apliquem a nova lei.

Nesse contexto, o Poder Executivo de Minas Gerais constituiu grupo de estudos multidisciplinar a fim de discutir e oferecer subsídios à instrução e orientação dos processos decisórios no âmbito do Governo Estadual quanto às novas regras aplicáveis às estatais mineiras. Após diversas reuniões, o Grupo de Estudos emitiu relatório fundamentalmente sobre o tema da aplicabilidade das novas regras às empresas estatais mineiras em face do período de adaptação estabelecido pelo artigo 91 da Lei Federal 13.303/2016.

Pela riqueza de detalhes, convém trazer à tona os termos deste relatório, a fim de contribuir para os debates existentes no seio da comunidade jurídico-acadêmica nacional. Peço vênia para reproduzir os principais trechos do aludido relatório:[1]

“A Lei Federal nº 13.303/16, prevê, no art. 97, a sua vigência imediata, ou seja, a partir da sua publicação no Diário Oficial da União:

Art. 97.  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Por outro lado, o art. 91 da mesma Lei nº 13.303/16 previu a existência de uma espécie de período de transição/adaptação, para incidência da nova lei em relação às empresas estatais existentes e em funcionamento segundo as regras anteriores, nos seguintes termos:

Art. 91. A empresa pública e a sociedade de economia mista constituídas anteriormente à vigência desta Lei deverão, no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, promover as adaptações necessárias à adequação ao disposto nesta Lei.
(…)
§ 3º Permanecem regidos pela legislação anterior procedimentos licitatórios e contratos iniciados ou celebrados até o final do prazo previsto no caput.

Cabe observar inicialmente que a norma do caput do art. 91 é genérica e não menciona quais as matérias ou pontos da nova lei estão sujeitos a esta regra de transição, apresentando, apenas, no seu § 3º, uma especificação para indicar expressamente que as licitações e contratos estão abarcados no período de transição/adequação às novas disposições legais, donde se conclui que praticamente a integralidade do novo cenário normativo da Lei nº 13.303/16 se encontra inserido no período de transição, já que o outro grande tema, além do de licitações e contratos (arts. 28 a 84), versado na lei, é o ponto da governança (arts. 5º a 27), e que demanda até mesmo maiores adequações das empresas estatais para aplicação das novas regras do que quanto ao tema licitações e contratos.

Sabe-se que o ponto do período de transição versus vigência imediata da lei foi objeto de atenção durante toda a tramitação do projeto de lei, até desaguar na estruturação final dada à Lei Federal nº 13.303/16, tal como constante dos citados arts. 97 e 91, ou seja, vigência imediata com período de adequação fixado no limite de 24 meses para as empresas estatais criadas antes da vigência da nova lei. Desta forma, a interpretação meramente literal destes dispositivos não permitirá o devido equacionamento de todos os problemas interpretativos e práticos que o tema vai suscitar.

Nesse sentido, a leitura que se pode fazer dos dois dispositivos citados é que, não obstante a indicação de vigência imediata da lei (art. 97), esta se dá em sua plenitude, num primeiro momento, para condicionar as novas empresas estatais, criadas ou instituídas já na vigência da Lei Federal nº 13.303/16 (art. 13), pois estas é que, ao serem criadas sob a égide da lei nova, devem ser estruturadas, desde sua lei autorizativa até os atos que venham a instituir a pessoa jurídica de direito privado, em total adequação às novas normas, e por isso, a empresa, ao ser criada e instalada, já deve, de partida, aplicar integralmente a Lei nº 13.303/16.

Art. 13.  A lei que autorizar a criação da empresa pública e da sociedade de economia mista deverá dispor sobre as diretrizes e restrições a serem consideradas na elaboração do estatuto da companhia, em especial sobre: (…)

Noutros termos, a empresa estatal, ao ter sua criação autorizada sob a égide da lei nova, deve respeitar integralmente o novo cenário legislativo, tanto no que diz respeito à governança quanto às regras de licitação e contratos.

O mesmo, todavia, não pode ocorrer em relação às empresas estatais existentes, com base em autorizações legislativas anteriores à lei nova, e já criadas e em funcionamento sob a sistemática anterior, pois estas empresas é que irão precisar do prazo previsto no art. 91 da própria Lei nº 13.303/16 para se adaptarem às novas regras legais, perspectiva que envolve tanto o cenário da governança, com adequação dos estatutos, contratos sociais e normas internas da empresa, como o da sua forma de atuação externa por meio das contratações, precedidas ou não de licitação, o que vai envolver a edição ou revisão do regulamento interno de licitações e contratos, como a reestruturação de setores da empresa para apreender as novas regras e se organizar de acordo com elas, para suas contratações.

Assim, para estas empresas existentes e em funcionamento, com base em toda a estruturação legal e interna em operação, quando do advento da nova lei, é que o legislador editou a regra de transição/adaptação prevendo o prazo limite de 24 meses no art. 91, não obstante, repita-se, a vigência imediata da nova lei. Tanto que o caput do art. 91 da Lei nº 13.303/16 estabelece que justamente a empresa pública e a sociedade de economia mista constituídas anteriormente à vigência desta Lei é que deverão se adequar no prazo limite de 24 meses para aplicação das novas regras.

Assentado este primeiro e importante ponto, cabe, então, na seara das empresas estatais existentes quando do advento da nova lei e que, portanto, irão se enquadrar no período de transição previsto no art. 91 da Lei nº 13.303/16, avançar duas outras importantes indagações a respeito da interpretação e melhor compreensão deste chamado período de transição/adequação:

i) o período de adaptação teria de ser de 24 meses, para aplicação integral da lei, envolvendo seus dois temas centrais, governança e licitações e contratos, de modo que somente após ultrapassados os 24 meses é que se poderia cogitar da aplicação da lei nova para as estatais existentes quando do advento da nova lei;

ii) ou se poderia estabelecer um cenário de flexibilidade, em que o tempo para aplicação dos dois temas não precisaria respeitar todo o período de 24 meses, em que este seria o limite para adequação, sendo que as adaptações necessárias dependeriam das condições de cada estatal, que poderia gastar mais ou menos tempo para se adaptar dentro de tal limite legal;

iii) e, na esteira do ponto indicado no item “ii” supra, se poderia vislumbrar, ainda, a possibilidade do “descasamento” do período de transição para seguir tempos diversos em relação aos dois temas, em que as regras de licitação e contrato poderiam, por exemplo, observar tempo menor para implementação, por se tratar de perspectiva mais operacional, e as de governança, que demandariam reestruturação de atos internos, como estatutos, seguir com maior tempo de transição/adequação, sempre respeitado o limite legal de 24 meses.

Diante do cenário, a interpretação que se vislumbra como mais adequada seria aquela indicada nos itens “ii” e “iii” supra, ou seja, o período de transição de 24 meses previsto no art. 91 da Lei nº 13.303/16 seria o período de tempo máximo, ou limite, que o legislador entendeu viável para que a empresa estatal promova sua adequação, e durante tal período restaria afastada a aplicação das regras novas.

Assim, a partir da interpretação do prazo do art. 91, como prazo ou limite temporal máximo e, por isso, de acordo com a realidade de cada empresa estatal, poder-se-ia cogitar do encurtamento do período de transição prescrito pelo legislador para fins de aplicação imediata das regras da vigente Lei nº 13.303/16.

Em síntese, no âmbito da interpretação conjunta dos arts. 97 e 91 da Lei nº 13.303/16, as empresas estatais têm o prazo limite de 24 meses para adequação às novas regras, mediante os procedimentos necessários à revisão de suas normas internas sobre organização societária, os procedimentos e assentamentos de praxe, assim como para a edição do regulamento interno de licitações e contratos. Até que tais movimentos, distintos entre si, se perfaçam, as empresas continuam a aplicar as regras antigas.

Assim, como as alterações relativas aos dois principais temas previstos na lei, governança e licitação/contratos, são entre si distintas (dependentes de trâmites, prazos, atos jurídicos distintos) existe a perspectiva de que cada um deles possa iniciar sua aplicação independente, desde que dentro do interregno de 24 meses, contados da data da entrada em vigor da Lei nº 13.303/16.

A própria Lei nº 13.303/16 evidencia tanto a separação destes dois grandes temas (governança e licitação/contrato) em blocos distintos, como também os trata em separado ou “descasado”, tal como ocorre, por exemplo, no âmbito das estatais com faturamento inferior a R$ 90.000.000,00, em que se admite o afastamento das regras de governança, mas não as de licitação e contrato (art. 1º, §1º).

Diante dos estudos e debates ora relatados, no sentido de que não se vê restrição legal para aplicação dos regimes de governança e de licitação e contratos sendo este, ao que tudo indica, o sentido do art. 91, quando fixa o prazo máximo ou limite de 24 meses para adaptação integral, inclusive diante da vigência imediata da nova lei estabelecida no art. 97, pode ser importante para o Estado de Minas Gerais, por meio do órgão ou órgãos responsáveis pela orientação das empresas estatais, no exercício do poder de controle do próprio Estado, construir uma interpretação uniforme para as empresas, a fim de possibilitar facilidades na gestão, controle e fiscalização pelo Estado.

O Estado poderia, dentro do limite temporal máximo de 24 meses previsto no art. 91 da Lei nº 13.303/16, trabalhar com marcos normativos bem precisos e distintos, para marcar a aplicação do novo regime legal para suas estatais, a indicar com maior precisão o início de aplicação das novas regras para seus dois blocos distintos, e que poderia também variar de estatal para estatal, de acordo com a realidade interna de cada uma delas:

i) edição do regulamento das licitações e contratos compatíveis com a nova lei, previsto no art. 40, como marco para que a estatal passe a observar as novas regras da Lei nº 13.303/16 na matéria;

ii) edição do novo estatuto ou contrato social, seguido dos demais e eventuais atos normativos internos, para adequação às novas regras de governança da Lei nº 13.303/16, que passariam, então, a regular, em bloco, a atuação da estatal;

iii) e antes da edição destes marcos “temporais” precisos, para aplicação da nova lei, por cada uma das estatais mineiras, estas continuariam a seguir as regras anteriores à Lei nº 13.303/16, sempre na esteira do período máximo de adaptação previsto no art. 91;

iv) as licitações e contratos continuariam pautadas pelo regime legal anterior até a edição do novo regulamento nos moldes do art. 40 da Lei nº 13.303/16; e a governança interna da estatal continuaria a respeitar o quadro normativo anterior, para a gestão da empresa, até a alteração dos estatutos/contratos sociais, seguidos da edição de outros atos normativos internos eventualmente necessários para a adequação.”

Em síntese, os membros e convidados do Grupo de Estudos opinaram a propósito da aplicabilidade das disposições da Lei 13.303/16 às empresas estatais, no sentido de que:

a) a Lei nº 13.303/2016 entrou em vigor na data de sua publicação (30 de junho de 2016), possibilitando, entretanto, nos termos do artigo 91, caput e parágrafo 3º, que as empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias (já existentes) adotem período de transição de até 24 meses (contados da publicação da lei), para promover adaptações necessárias à plena aplicabilidade do novo Estatuto (alterações estatutárias, regimentais, regulamentares, informáticas);

b) há dois blocos (ou regimes) distintos e principais na Lei 13.303/2016 – (i) regime societário e de governança corporativa (Capítulo II do Título I) e (ii) licitações e contratos (Título II) – que podem ser aplicados concomitante ou segregadamente dentro do interregno legal descrito no item “a” (24 meses). As normas relativas à governança corporativa (regime societário) deverão ser aplicadas após a atualização do estatuto da companhia ou contrato social da empresa (e demais normativos internos), observados os procedimentos de praxe e respeitado o prazo de até 24 meses previsto no art. 91, caput. Já as normas relativas à licitação e contratos (novo regime das licitações e contratos) deverão ser aplicadas após a atualização ou edição do regulamento a que se refere o art. 40, I da Lei nº 13.303/16, também após os procedimentos de praxe, observado o prazo limite de até 24 meses (art. 91, §3º);

c) Enquanto não adotadas as providências descritas no item “b”, as empresas estatais existentes ao tempo da nova lei, continuarão a aplicar os regimes societário e de licitação e contratos vigentes ao tempo da edição da Lei 13.303/16 (nesse sentido a ratio do Decreto Estadual 424/16), até que adaptação respectiva se perfaça pela edição/alteração dos atos jurídicos mencionados (estatutos, regimentos, regulamentos) ou até que se verifique o transcurso do prazo de 24 meses.[2]


[1] Registre-se que, no interregno compreendido entre a data da instituição do Grupo de Estudos e a entrega do relatório preliminar (12.09.2016), o Governo do Estado de Minas Gerais editou o Decreto Estadual nº 424, de 11 de agosto de 2016, mediante o qual estabeleceu prazo para a conclusão dos trabalhos do Grupo, e determinou, até ulterior deliberação, que as empresas estatais mineiras permanecessem a aplicar a legislação em vigor antes da entrada em vigor da Lei nº 13.303/16, observado o prazo de 24 meses previsto no art. 91 da nº Lei 13.303/16.
[2] Participaram do Grupo de Estudos os seguintes profissionais: Alessandra Guimarães Rocha (COPASA), Amanda Souza Lima Rodrigues (CODEMIG), Ana Paula Muggler (AGE), André Abreu Reis (SEPLAG), Andresa Linhares de Oliveira Nunes (SEF), Antônio Valladares Bahia Neto (MGI), Beatriz Pierri (CEMIG), Caio Barros Cordeiro (SECCRI), Carolina Feitosa Dolabela Chagas (PRODEMGE), Érico Andrade (AGE), Fernanda Andrade (CODEMIG), Francisco Eduardo Moreira (SEGOV), Helter Verçosa Morato (MGS), Luciane de Souza Saldanha (BDMG), Osvaldo Raimundo Rodrigues (COPASA), Marcelo de Pádua Moura (CEMIG), Rafael Amorim de Amorim (CGE), Rafael de Mendonça Pereira Cunha (SECCRI), Virginia Kirchmeyer Vieira (SECCRI). Participaram, ainda, como convidados, Isabelle Fagundes de Sá (PROMINAS) e Prof. Luciano de Araujo Ferraz (TAESA).

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