Fogueira da censura

Ao usar Lei de Anistia para condenar jornal, STJ tenta apagar a história do país

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7 de outubro de 2016, 17h00

Que o Brasil não tem memória, já se sabe. O país corre agora o risco de perder o seu passado. Pelo menos foi o que decidiu a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que na última quarta-feira (5/10), ao condenar o jornal Diário de Pernambuco a pagar indenização de R$ 50 mil ao ex-preso político e ex-deputado federal Ricardo Zarattini Filho. Entendeu o tribunal que a Lei de Anistia de 1979, que beneficiou Zarattini, deu-lhe o direito ao esquecimento de seu passado como militante de oposição à ditadura militar.

Mesmo que em seu voto vencedor o ministro Paulo de Tarso Sanseverino tenha feito ressalvas, levando em conta eventual negligência na apuração dos fatos por parte do jornal, o que assusta é a tese por ele defendida, que coloca fatos e a história do país sob a proteção da Lei de Anistia feita especialmente para salvaguardar a dignidade de pessoas. “Não se mostra admissível qualquer tipo de gravame contra integrantes daquele cenário histórico por força de suas convicções e atos praticados naquele tempo de conflitos”, disse Sanseverino.

A questão levada à 3ª Turma em Recurso Especial apresentado pelo jornal dizia respeito à responsabilidade civil da empresa jornalística pela entrevista concedida por Wandenkolk Wanderley na qual afirmou que Ricardo Zarattini participou do atentado a bomba no Aeroporto dos Guararapes, de Recife, em 1966.

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Conhecido anti-comunista, Wanderley fez acusações em entrevista ao jornal.
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A entrevista foi publicada em 1993 e Wanderley, ex-delegado de polícia e político pernambucano com atuação nos anos 1960 e 1970, conhecido por suas posições anti-comunistas, morreu em 2002. O atentado do qual ele falava, no qual morreram duas pessoas, tinha como alvo o então ministro da Guerra e futuro presidente da República na ditadura militar, Arthur da Costa e Silva, que nada sofreu.

Acusado de participar do atentado, o engenheiro, ex-militante de oposição à ditadura militar, ex-preso-político e deputado federal nos anos 2000, Zarattini foi inocentado de qualquer participação no atentado, de acordo com documentos apresentados pela Comissão Estadual da Verdade em 2013. Mas tudo isso é história e, de acordo com a decisão da 3ª Turma, talvez seja melhor esquecê-la.

A tese que resultou na aplicação da Lei de Anistia ao caso, foi levantada originalmente pelo juiz de primeiro grau: “A Lei de Anistia ensejou o esquecimentos dos embates envolvendo os denominados terroristas e as forças de repressão, sendo perdoados tanto os ditos subversivos como seus algozes”, escreveu o juiz E acrescentou: “Todos voltamos a ser integrantes do mesmo povo, vinculados pela solidariedade que deve orientar as relações político sociais, sendo inadmissível que venha a prosperar qualquer tipo de gravame contra integrantes daquele cenário histórico por força de suas convicções e atos praticados naqueles tempos de discórdia. Urge o esquecimento dos ódios”.

O Tribunal de Justiça de Pernambuco reformou a sentença de primeiro grau, por entender que “a matéria jornalística que ensejou a ação de indenização não se notabilizou pela exploração inescrupulosa, nem tampouco mercenária sobre o fato, mas sobretudo, buscou emprestar ares históricos aos fatos que envolveram a pessoa do entrevistado, observando sobretudo a liberdade de expressão do cidadão”.

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Zarattini foi apontado como autor de atentado, mas, para 3ª Turma do STJ, anistia impede referências ao período.
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O relator do Recurso Especial apresentado por Zarattini ao STJ foi o ministro Villas Bôas Cueva. Ao abrir divergência, Sanseverino reconheceu que a negligência do jornal em apresentar os fatos seria suficiente para justificar o seu dever de indenizar o recorrente: “Verifica-se que a empresa jornalística, ao publicar a entrevista deveria ter feito as ressalvas necessárias no sentido de preservar a integridade moral do recorrente ou, ao menos, conceder-lhe espaço para que pudesse exercitar o direito de resposta às imputações firmadas pelo entrevistado”.

Mas o ministro foi além e encampou a tese do juiz de primeiro grau quanto à aplicação da Lei de Anistia: “Não se pode esquecer de que os fatos narrados na matéria jornalística, ocorridos durante a ditadura militar, foram anistiados pelo Estado brasileiro em razão de uma decisão política inspirada na ideia de pacificação social”.

Mesmo correndo o risco de ter de jogar na fogueira da censura todos os livros de História que tratam do período compreendido pela Lei 6.683/1979, o ministro vinculou o caso ao “denominado direito do esquecimento”, ou seja, “o direito de restringir o conhecimento público de informações passadas cuja divulgação presente pode dar causa a prejuízos ou constrangimentos”.

O advogado Alexandre Fidalgo, especialista na área de imprensa, é direto: "O entendimento está totalmente equivocado". A Lei da Anistia, afirma, age sobre as consequências do fato. Ou seja, caso Zarattini tenha de fato participado do atentado,  não poderá responder na Justiça por nada que tenha ocorrido em consequência disso. "Mas isso não afeta o direito da sociedade de debater e refletir sobre o que aconteceu"afirma.

Na votação da 3ª Turma ficaram vencidos o relator Villas Bôas Cueva e João Otávio de Noronha. Acompanharam a divergência iniciada por Paulo de Tarso Sanseverino, os ministros Marco Aurélio Bellizze e Marco Buzzi, convocado da 4ª Turma para desempatar.

A decisão acrescenta estranheza aos tempos estranhos atuais em que, com facilidade, se tomam liberdades contra a liberdade dos indivíduos. Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal reafirmou sua interpretação da Constituição que permite a prisão de condenados em segunda instância, antes mesmo do trânsito em julgado de sentença condenatória.

Em tempos de operação "lava jato" e de Ministério Público em franca campanha por aprovar "10 Medidas contra a Corrupção” — como se fosse constituído por legisladores bem intencionados —, decisões como a do STJ e do STF servem para aumentar a sensação de que, em matéria penal, o país caminha para trás. Neste quadro, o direito de informação ou a presunção de inocência, bem como outros direitos individuais podem ser relativizados em nome de um falseado conceito de dignidade humana, da segurança da sociedade ou de moralidade pública. Sem falar no tal direito ao esquecimento, que ameaça colocar no lixo a própria história do Brasil.

Clique aqui para ler o voto vencedor.

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