Tribuna da Defensoria

Adolescentes apreendidos devem ser submetidos à audiência de custódia

Autor

  • Caio Paiva

    é defensor público federal especialista em ciências criminais professor e coordenador do Curso CEI. É autor do livro “Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro” e coautor de “Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos”. Sua página no Facebook: www.facebook.com/professorcaiopaiva.

4 de outubro de 2016, 11h58

A audiência de custódia, que (finalmente) já dispensa apresentações no Brasil, estando prevista em diversos tratados internacionais de direitos humanos e regulamentada internamente por meio da Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), também deve ser garantida na apreensão de adolescentes infratores ou em conflito com a lei. Acerca da matéria, dispõe o artigo 37.b da Convenção sobre os Direitos da Criança, internalizada no Brasil pelo Decreto 99.710/1990, que os Estados zelarão para que “nenhuma criança seja privada de sua liberdade de forma ilegal ou arbitrária. A detenção, a reclusão ou a prisão de uma criança será efetuada em conformidade com a lei apenas como último recurso, e durante o mais breve período de tempo que for apropriado”. Interpretando essa normativa internacional, já decidiu o Comitê da ONU sobre Direitos da Criança que “todo menor detido e privado de liberdade deverá ser colocado à disposição de uma autoridade competente em um prazo de 24 horas para que se examine a legalidade de sua privação ou a continuidade desta”[1]. No mesmo sentido, já decidiu a Corte Interamericana:

“Esta Corte constatou que desde o momento da detenção de Eduardo Landaeta às 17:00 horas do dia 29 de dezembro de 1996, até o segundo traslado onde perdeu sua vida, sendo às 18:00 horas do dia 31 de dezembro, esteve detido aproximadamente durante 38 horas sem haver sido apresentado ante um juiz ou autoridade competente de menores de idade, o que, a critério da Corte, excede o padrão de colocação à disposição da autoridade competente ‘sem demora’ aplicável aos menores de idade”[2].

Assim, os artigos 171 e 175 do ECA devem passar por um controle de convencionalidade, extraindo-se deles uma interpretação que possibilite a máxima efetividade dos direitos humanos. O artigo 171 restringe a apresentação do adolescente aos casos de prisão por ordem judicial[3], quando, na verdade, deve se aplicar também — e principalmente — nos casos de prisão em flagrante. E o artigo 175, por sua vez, ao prever que o adolescente preso em flagrante deverá ser encaminhado ao Ministério Público, viola os artigos 7.5 e 8.1 da CADH, na medida em que o MP não pode ser considerado uma “autoridade judicial”[4]. Divirjo aqui de Pablo Rodrigo Alflen, que, após questionar se a autoridade policial deve conduzir o adolescente apreendido ao juiz, para a audiência de custódia, e não ao MP, responde o seguinte:

“Vê-se que o dispositivo [art. 7.5 da CADH] refere que a apresentação poderá ser realizada à autoridade diversa da judicial, desde que autorizada por lei  a exercer funções judiciais. Portanto, a resposta à primeira questão é negativa, uma vez que o Ministério Público, a nosso juízo, passa a exercer as funções referidas no dispositivo citado, conforme regulado pela própria Lei nº 8.069/1990 (a exemplo do art. 180, II: ‘conceder a remissão’), em atenção, ainda, art. 129, IX, da Constituição Federal (‘exercer outras funções que lhe forem conferidas…’)”[5].

O entendimento de Alflen me parece equivocado por três motivos: i) primeiro, porque o estudioso autor chega à conclusão de que o MP seria uma autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais unicamente porque pode conceder a remissão, argumento também utilizado pelos delegados de polícia, que invocam, porém, a atribuição para conceder fiança. O ato de conceder a remissão não faz do MP uma autoridade judicial, tanto é que o ECA exige a homologação da remissão pelo juiz para que produza efeitos (art. 181, caput[6]); ii) segundo, porque a autoridade que preside a audiência de custódia deve ter poder para relaxar uma apreensão ilegal do adolescente ou para não manter a internação nos casos em que esta se revelar desnecessária, poder este que o MP não tem, mesmo quando propõe a remissão ou se manifesta pelo arquivamento, expedientes que, repita-se, são submetidos à homologação judicial[7]; e iii) terceiro, porque ao MP incumbe a pretensão acusatória na apuração de ato infracional, não gozando, portanto, do atributo da imparcialidade para conduzir uma audiência de custódia do adolescente apreendido.

Assim, e tendo em conta, ainda, o princípio da vedação do tratamento mais gravoso ao adolescente do que o conferido para o adulto[8], o adolescente apreendido em flagrante ou por cumprimento de mandado deve ser submetido à realização de audiência de custódia presidida por juiz, e não por membro do Ministério Público, ocasião em que a restrição da sua liberdade será imediatamente apreciada, ouvidos o adolescente, o MP e a defesa técnica.

Lamenta-se que a Resolução 213 do CNJ tenha sido omissa em relação à apresentação sem demora de adolescentes apreendidos ao juiz, obrigatoriedade esta que decorre diretamente da CADH e deve ser observada independentemente de regulamentação no Direito interno.

Por fim, importante ressaltar que a matéria atualmente está sendo debatida no PL 5.876/2013, de autoria da deputada federal Luiza Erundina, que inicialmente tinha como objetivo tão somente acrescentar um parágrafo ao art. 179 do ECA para estabelecer que “a oitiva do adolescente será necessariamente realizada com a presença do advogado constituído ou defensor nomeado previamente pelo Juiz de Infância e da Juventude, ou pelo juiz que exerça essa função, na forma da Lei de Organização Judiciária local”. No entanto, na tramitação deste projeto na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, a deputada Maria do Rosário, relatora, encampando Nota Técnica enviada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), embora tenha louvado a iniciativa da deputada Erundina, concluiu que ela não elimina a inconstitucionalidade do artigo 179 do ECA, razão pela qual apresentou o seguinte substitutivo:

“Artigo 1º – O artigo 175, da Lei 8.069/90, de 13 de julho de 1990, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 175. Em caso de não liberação, imediatamente ou, quando justificadamente não for possível no prazo máximo de vinte e quatro horas depois de apreendido, o adolescente deverá ser conduzido para a realização da audiência de custódia, na qual se farão presentes o juiz competente, o Ministério Público e o advogado ou defensor público do adolescente.

§ 1º A apreensão do adolescente deve ser notificada imediatamente aos seus pais ou responsáveis.

§ 2º O auto de apreensão deve ser entregue ao juiz no momento de apresentação do adolescente, para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade policial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação.

§ 3º Sendo impossível a apresentação imediata, a autoridade policial encaminhará o adolescente à entidade de atendimento, que fará a apresentação ao Juiz competente para a audiência de custódia.

§ 4º Nas localidades onde não houver entidade de atendimento, a apresentação far-se-á pela autoridade policial. À falta de repartição policial especializada, o adolescente aguardará a apresentação em dependência separada da destinada a maiores, não podendo, em qualquer hipótese, exceder o prazo referido no caput.

Artigo 2º – O artigo 176, da Lei 8.069/90, (…), passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 176. Na audiência de custódia, o juiz ouvirá o Ministério Público, o adolescente e seu advogado ou defensor público e decidirá sobre a liberação do adolescente, a manutenção da internação provisória, ou, ainda, a homologação da proposta de remissão, determinando, se for o caso, cumprimento de medida determinada.

§ 1º A oitiva do adolescente em audiência de custódia terá como foco verificar a legalidade e necessidade da internação; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao adolescente.

§ 2º Discordando o juiz da proposta de remissão ofertada pelo Ministério Público, procederá na forma do art. 181.

Espera-se que o projeto seja aprovado na forma do substitutivo apresentado, garantindo-se aos adolescentes o mesmo tratamento processual reservado aos adultos no que diz respeito à audiência de custódia.

* Este texto foi extraído e adaptado do meu livro Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro, cuja segunda edição será lançada nos próximos dias.


[1] Comitê de Direitos da Criança. Observação Geral nº 10, § 83.
[2] Caso Hermanos Landaeta Mejías e outros vs. Venezuela. Exceções preliminares, fundo, reparações e custas. Sentença de 27 de agosto de 2014, § 178.
[3] Importante ressaltar que este dispositivo nem sempre é respeitado na prática, contando, aliás, com o apoio da doutrina para ver esvaziada a sua potencialidade. Neste sentido, o entendimento de Nucci, para quem “Se é para ser internado, uma vez apreendido, não há o que fazer na presença do juiz; deve ser imediatamente encaminhado à unidade apropriada. Poder-se-ia dizer – e esse é o real significado desta norma – que, feita a apreensão, comunica-se, de pronto, o juízo, para que se tenha conhecimento da internação. (…) Enfim, quando for apreendido por ordem do juiz, deve seguir para a unidade respectiva, comunicando-se o juízo em, no máximo, 24 horas (…)” (NUCCI, Guilherme de Souza Nucci. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: em busca da Constituição Federal das Crianças e dos Adolescentes. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 554).
[4] Sobre a questão “a quem o preso deve ser apresentado?”, remeto o leitor ao meu livro Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro. 2ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 59 e seguintes.
[5] ALFLEN, Pablo Rodrigo. Art. 1º. In: ANDRADE, Mauro Fonseca; ALFEN, Pablo Rodrigo (org.). Audiência de Custódia: Comentários à Resolução 213 do Conselho Nacional de Justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 27.
[6] Dispõe o art. 181, caput, do ECA: “Promovido o arquivamento dos autos ou concedida a remissão pelo representante do Ministério Público, mediante termo fundamentado, que conterá o resumo dos fatos, os autos serão conclusos à autoridade judiciária para homologação”.
[7] A única hipótese de liberação imediata do adolescente, segundo dispõe o ECA, é praticada pela autoridade policial, e não pelo MP: “Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o adolescente será prontamente liberado pela autoridade policial, sob termo de compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao representante do Ministério Público, no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato, exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública” (art. 174).
[8] O princípio da vedação do tratamento mais gravoso ao adolescente do que o conferido para o adulto pode ser extraído do item 54 das Diretrizes das Nações Unidas para Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riad): “Com o objetivo de impedir que se prossiga à estigmatização, à vitimização e à incriminação dos jovens, deverá ser promulgada uma legislação pela qual seja garantido que todo ato que não seja considerado um delito, nem seja punido quando cometido por um adulto, também não deverá ser considerado um delito, nem ser objeto de punição quando for cometido por um jovem”. Embora o dispositivo veicule uma proibição de tratamento mais gravoso ao adolescente relacionado à criminalização de condutas, me parece possível a sua adoção também no que diz respeito às normas processuais.

Autores

  • Brave

    é defensor público federal, especialista em ciências criminais, professor e coordenador do Curso CEI. É autor do livro “Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro” e coautor de “Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos”.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!