Opinião

O Estado Democrático de Direito foi assaltado, e a constituição, violentada

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17 de março de 2016, 17h22

Alguns sonhadores acreditam que vivemos em um Estado Democrático de Direito no qual os direitos fundamentais são sagrados, e a Constituição da República é guardada pelo Supremo Tribunal Federal. Na verdade, porém, vivemos em um Estado policial que atropela todas as garantias mínimas e necessárias próprias do Estado que se pretende verdadeiramente democrático. Estamos de fato em um Estado penal, um Estado em que prevalece o autoritarismo. Estado em que os fins justificam os meios. Estado em que a justiça é substituída pelo justiçamento. Estado em que juízes se transformam em justiceiros. Estado em que a vontade do tirano prevalece sobre as garantias do devido processo legal.

No primeiro semestre de 2008, o então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, no voto que confirmou a liminar que deu liberdade a Pedro Passos Junior, investigado na operação navalha, afirmou que a Polícia Federal usa “terrorismo estatal como método”. A afirmação foi feita no relatório do voto citado. O ministro também foi alvo de grampo ilegal feito pela PF.

À época, o perito especialista em fonética forense Ricardo Molina encontrou irregularidades em todas as centenas de grampos telefônicos feitos pela Polícia Federal e que foram por ele analisados. Segundo Molina, em muitos casos, há gravações interrompidas, palavras cortadas e seleção de trechos de conversas a critério dos investigadores, o que torna a interpretação das gravações subjetivas.

Lamentavelmente, muitas dessas gravações são divulgadas pela imprensa sem qualquer crivo. Mais drástico ainda é o fato de que, em razão desses grampos, pessoas são presas e expostas à degradação pública sem o sagrado direito de defesa.

A sociedade que muitas vezes aplaude as citadas medidas, tão espetaculares quanto abusivas, precisa entender que em um Estado de Direito os fins jamais podem justificar os meios, sobretudo se estes meios afrontam direitos fundamentais, que, no dizer do ministro Gilmar Mendes, são aqueles que “asseguram a esfera de liberdade individual contra interferências ilegítimas do poder público, provenham elas do Executivo, do Legislativo ou, mesmo, do Judiciário”.

Oito anos se passaram. Hoje, o país acorda atordoado, abismado e inebriado pelas divulgações de interceptações telefônicas determinadas pelo juiz federal que conduz a operação apelidada de “lava jato”.

No dia em que o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva é nomeado ministro-chefe da Casa Civil pela presidente da República, Dilma Rousseff, o juiz federal Sergio Moro determina a quebra do segredo de Justiça, e a Rede Globo divulga áudios de conversas interceptadas, inclusive entre Lula e Dilma.

Certo é que um juiz federal, qualquer que seja ele, NÃO pode decidir sobre interceptação de conversa telefônica que envolve a Presidência da República. Somente, tão somente, o STF pode, de acordo com nossa lei maior — a Constituição da República —, autorizar e determinar interceptação contra o chefe do Poder Executivo. De igual modo, compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originalmente, “nas infrações penais comuns, o presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios ministros e o procurador-geral da República” (artigo 102, I, “b’ da CR) e compete, ainda, julgar “nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os ministros de Estado…” (artigo 102, I, “c” da CR).

Ainda que inicialmente não tenha sido “grampeada” a presidente da República, e sim o ex-presidente Lula, com quem Dilma estava dialogando, ainda assim tal interceptação afronta os limites constitucionais. Jamais poderia ser divulgado diálogo de qualquer pessoa interceptada com a presidente da República.

O juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba violentou a Constituição da República e atentou contra o Estado Democrático de Direito. Portanto, deverá ser responsabilizado pelas suas condutas extremamente ameaçadoras e que levaram o país, na noite do dia 16 de março de 2016, a um estado de beligerância.

Certo que o juiz federal não agiu sozinho, a Polícia Federal e a mídia foram determinantes na instauração do caos no Brasil. Embora os diálogos envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a presidente da República, Dilma Rousseff, nada, absolutamente nada, contenham de antirrepublicano ou de ilegal, a desordem foi instaurada, notadamente, pelo combustível jogado pela irresponsabilidade da mídia e sua completa falta de compromisso com os valores da democracia e do Estado republicano.

No campo penal, em nome de uma fúria punitiva e de um fantasmagórico combate à impunidade, o poder midiático tem afrontado os valores e princípios mais caros ao Estado Democrático de Direito. Sob o manto de uma ilimitada liberdade de informação e de expressão, a mídia ultrapassa todos os limites da ética e do respeito à dignidade da pessoa humana. Investigado, indiciado ou acusado é tratado como se condenado fosse, sem direito ao contraditório e a ampla defesa.

Os tentáculos do poder acusatório da mídia são capazes de acachapar todo e qualquer princípio de direito. Nesse diapasão, a presunção de inocência esculpida na Constituição da República no título que trata dos direitos e garantias fundamentais é completamente abandonada, passando a ser letra morta em nossa lei maior. Como bem proclamou Nilo Batista, “a imprensa tem o formidável poder de apagar da Constituição o princípio de inocência, ou, o que é pior, de invertê-lo”.

Interceptações telefônicas e de meios de comunicação, por si só, já constituem medidas extremadas e invasivas que afrontam direitos fundamentais: a privacidade e a intimidade da pessoa.

Ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição da República de 1988 prevê em seu artigo 5º, inciso XII que: “É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal” (grifamos). A Lei 9.296 de 24 de julho de 1996 veio regulamentar o inciso XII, parte final, do citado artigo.

A garantia da inviolabilidade das comunicações telefônicas (norma constitucional) poderá, excepcionalmente, ser afastada por ordem fundamentada do juiz competente dentro dos limites legais. Assim, não será admitida, de acordo com a Lei 9.296/96, a interceptação de comunicação telefônica quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses: I) não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal; II) a prova puder ser feita por outros meios disponíveis; III) o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção.

Verifica-se, portanto, que a interceptação das comunicações telefônicas é uma exceção, posto que somente em casos extremos e, mesmo assim, quando não houver outro meio de prova disponível, menos danoso e menos ofensivo as garantias individuais, é que poderá ser a mesma empregada.

Embora constitua crime “realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei” — pena de reclusão de 2 a 4 anos — (artigo 10 da Lei 9.296/96), não são raras as vezes que as conversas interceptadas, sabem-se lá como, viram manchetes na imprensa escrita, falada e televisionada comprometendo a intimidade de pessoas que nem sequer estão sendo investigadas.

Como bem asseverou o ministro Celso de Mello (decano do Supremo Tribunal Federal), “o dever de proteção das liberdades fundamentais dos réus, de qualquer réu, representa encargo constitucional de que este Supremo Tribunal Federal não pode demitir‐se, mesmo que o clamor popular se manifeste contrariamente, sob pena de frustração de conquistas históricas que culminaram, após séculos de lutas e reivindicações do próprio povo, na consagração de que o processo penal traduz instrumento garantidor deque a reação do Estado à prática criminosa jamais poderá constituir reação instintiva, arbitrária, injusta ou irracional”.

Em livro sobre as interceptações telefônicas e os direitos fundamentais, o professor Lenio Luiz Streck conclui acertadamente que, “sem os devidos cuidados, o Estado investigador colonizará a nossa já tênue e devassada privacidade. Será um panóptico institucionalizado! Por isso, a necessária cautela. Afinal, estamos no Brasil, onde, na guerra contra o crime, quem (sempre) perde (mais) é a cidadania”.

O que ocorreu no Brasil foi um verdadeiro assalto ao Estado de Direito. A Constituição da República foi estuprada. A Presidência da República, devassada. A democracia, violentada. Resta saber quem será responsabilizado pelos crimes praticados contra a legalidade democrática e contra o Estado Democrático de Direito.

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