Fim da presunção de inocência pelo STF é nosso 7 a 1 jurídico
4 de março de 2016, 8h00
Presunção de inocência e presunção de não culpabilidade
Podemos afirmar que a Constituição ‘não recepcionou a presunção de inocência’ e que, portanto, está correta a decisão do STF? Não, é um duplo erro. Em primeiro lugar, afirmar que a Constituição recepcionou apenas a “presunção de não culpabilidade” é uma concepção reducionista, pois seria alinhar-se ao estágio “pré-presunção de inocência” não recepcionada pela Convenção Americana de Direitos Humanos e tampouco pela a base democrática da Constituição. A essa altura do estágio civilizatório, Constitucional e Democrático, a Presunção de Inocência ‘não precisa estar positivado em lugar nenhum: é pressuposto – para seguir Eros – neste momento histórico, da condição humana’[2]. Ademais, temos a expressa recepção no artigo 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.”
O Brasil recepcionou, sim, a presunção de inocência e, como ‘presunção, exige uma pré-ocupação nesse sentido durante o processo penal, um verdadeiro dever imposto ao julgador de preocupação com o imputado, uma preocupação de tratá-lo como inocente. É a presunção de inocência um ‘dever de tratamento’ no terreno das prisões cautelares e a autorização, pelo STF, de uma famigerada execução antecipada da pena é exatamente tratar como culpado, equiparar a situação fática e jurídica do condenado. Não sem razão o artigo 5º, LVII determina (dever de tratamento) que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Significa uma proibição de tratar o acusado de forma igual ou análoga a de culpado, antes do trânsito em julgado.
Quando alguém é considerado culpado? A natureza extraordinária dos recursos como (falso) argumento
Os defensores da decisão argumentam que o imputado é considerado “culpado” com a decisão de segundo grau, na medida em que somente cabem recurso especial e extraordinário, que não permitem “reexame de prova”. Duplo erro.
Primeiramente há que se compreender o que é ‘culpabilidade normativa’ e ‘culpabilidade fática’. Como explica Geraldo Prado[3], a presunção de inocência é cláusula pétrea e princípio reitor do processo penal brasileiro, estabelecendo uma relação com o conceito jurídico de culpabilidade adotado no Brasil. Não adotamos o modelo norte-americano de processo penal, assentado no paradigma de controle social do delito sobre o qual se estrutura um conceito operacional de culpabilidade fática; todo o oposto, nosso sistema estrutura-se sobre o conceito jurídico de culpabilidade, que repousa na presunção de inocência. Em apertada síntese, o conceito normativo de culpabilidade exige que somente se possa falar em (e tratar como) culpado, após o transcurso inteiro do processo penal e sua finalização com a imutabilidade da condenação. E, mais, somente se pode afirmar que está ‘comprovada legalmente a culpa’ como exige o artigo 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, com o trânsito em julgado da decisão condenatória.
E o caráter “extraordinário” dos recursos especial e extraordinário? Em nada afeta, porque o caráter ‘extraordinário’ desses recursos não altera ou influi no conceito de trânsito em julgado expressamente estabelecido como marco final do processo (culpabilidade normativa) e inicial para o ‘tratamento de culpado’. A essa altura, não preciso aqui explicar o que seja trânsito em julgado, coisa julgada formal e material, mas é comezinho e indiscutível que não se produz na pendência de (qualquer) recurso…
É preciso compreender que os conceitos no processo penal tem fonte e história e não cabe que sejam manejados irrefletidamente (Geraldo Prado) ou distorcidos de forma autoritária e a ‘golpes de decisão’. Não pode o STF imaginar — e aqui valho-me de Lenio Streck[4] — que pode reinventar conceitos processuais assentados em — literalmente — séculos de estudo e discussão, bem como em milhares e milhares de páginas de doutrina. O STF é o guardião da Constituição, não seu dono e tampouco o criador do Direito Processual Penal ou de suas categorias jurídicas. Há que se ter consciência disso, principalmente em tempos de decisionismo (sigo com Streck) e ampliação dos espaços impróprios da discricionariedade judicial. O STF não pode “criar” um novo conceito de trânsito em julgado, numa postura solipsista e aspirando ser o marco zero de interpretação. Esse é um exemplo claro e inequívoco do que é dizer-qualquer-coisa-sobre-qualquer-coisa, de forma autoritária e antidemocrática.
E a ausência de ‘efeito suspensivo’ nesses recursos?
Mais uma herança maldita da Teoria Geral do Processo que volta para nos assombrar. Além de o artigo 27, § 2º da Lei 8038 não ser aplicável ao processo penal, por desconsiderar suas categorias jurídicas próprias, há que se compreender que o problema (de prender-se antes do trânsito em julgado e sem caráter cautelar) não se reduz ao mero ‘efeito recursal’. É da liberdade de alguém que estamos tratando e, portanto, da esfera de compressão dos direitos e liberdades individuais, tutelados — entre outros princípios — pela presunção de inocência.
Também devemos considerar (e assumir) que essa execução antecipada da pena de prisão é absolutamente irreversível e irremediável em seus efeitos, ao contrário do que ocorre no processo civil. É impossível devolver ao imputado o ‘tempo’ que lhe foi tomado se ao final o STJ/STF anular ab initio o processo, reduzir sua pena, alterar o regime de cumprimento, enfim, acolher o recurso. Recordemos Carnelutti, quando dizia que uma diferença insuperável entre o processo civil e o processo penal era exatamente essa: enquanto o processo civil se ocupa do ‘ter’, o processo penal lida como o ‘ser’. Enfim, o conceito de trânsito em julgado não tem absolutamente nenhuma relação com o efeito recursal.
E a invocação do “direito comparado” para justificar?
Foram generalizações que desconsideraram as inúmeras diferenças entre os sistemas jurídicos, que começam na investigação preliminar (nos Estados Unidos o modelo é policial, mas eles possuem — no âmbito estadual — mais de 17 mil agências policiais… na França o modelo é de Juiz de Instrução e na Alemanha, desde 1974, é um modelo de promotor investigador)[5], passando pelo julgamento de primeiro grau (há uma distinção crucial: são países que adotam um julgamento colegiado já em primeiro grau, completamente distinto do nosso, cujo julgamento é monocrático (juiz singular), passando pelas diferenças no sistema recursal e desaguando na absoluta diferença do sistema carcerário (sobre isso, nem preciso argumentar…). Sem falar na diversidade de políticas criminais e processuais. Ademais, muitos desses países não admitem que se chegue, pela via recursal, além do segundo grau de jurisdição. O que se tem depois, são ações de impugnação, com caráter rescisório, desconstitutivas da coisa julgada que já se operou. É uma estrutura completamente diferente. Para além disso, há uma diferença crucial e não citada: nossa Constituição prevê – ao contrário das invocadas – a presunção de inocência ATÉ o trânsito em julgado. Essa é uma especificidade que impede o paralelismo, uma distinção insuperável.
O argumento do ‘baixo número’ de Recursos Especiais e Extraordinários defensivos admitidos?
É partir de uma premissa absolutamente equivocada, pois a legitimação dos recursos extraordinários não é 'quantitativa', não depende do número de recursos providos. Como a presunção de inocência não depende do número de sentenças absolutórias. É um argumento falacioso como foi, no passado, a crítica de Manzini[6] à presunção de inocência, onde o processualista fascista disse que era irracional e paradoxal a defesa do princípio na medida em que o ‘normal das coisas’ era presumir-se o fundamento da imputação como verdadeiro. E vai além, ao afirmar que se a maior parte dos imputados resultava culpado ao final do processo, não havia nada que justificasse a presunção de inocência. É mais ou menos o mesmo que dizer: já que a maior parte dos recursos especial e extraordinário interpostos pela defesa não são acolhidos, vamos presumir que são infundados e desnecessários, podendo prender primeiro e decidir depois. Sem falar que as pesquisas quantitativas publicadas mostram que o número é significativo, principalmente se considerarmos as imensas limitações de acesso aos tribunais superiores impostas por uma imensa quantidade de súmulas proibitivas, mais a necessidade de pré-questionamento e, finalmente, a necessidade de demonstração de repercussão geral. Enfim, é um argumento insustentável.
Mas e o artigo 283? Por que o STF não o enfrentou? Por que não declarou sua inconstitucionalidade?
Diz o artigo 283 do CPP: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.” Incrivelmente não li no julgado qualquer menção ao artigo 283 e, principalmente, uma declaração fundamentada de sua inconstitucionalidade, pois ele é completamente incompatível com a decisão proferida pelo STF. Grave omissão ou propositada omissão? E como simplesmente ‘não aplicar’ o artigo 283 sem declarar previamente sua inconstitucionalidade? Nesse ponto, para não alongar, há que se ler o artigo de Lenio Streck que vai integralmente adotado como fundamento… (estou aprendendo a fazer o mesmo que os tribunais…).
O problema é que não se pode esperar até o trânsito em julgado, isso gera sensação de impunidade e até a prescrição…
Na obra “Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável”, que publiquei em coautoria com Gustavo Badaró, mostramos o tensionamento entre o ‘tempo do direito’ e o ‘tempo social’, especialmente em uma sociedade regida pela velocidade (dromologia) como a nossa. Há que se respeitar o tempo do direito, pois ele nunca conseguirá (ou mesmo deveria) atuar na dinâmica do imediato e corresponder as nossas ambições de uma justiça imediata e hiperacelerada (e a prisão cautelar tem um efeito sedante e gera essa ilusão). Isso não quer dizer, tampouco, que o processo deva demorar demais ou ser infindável. Há que se encontrar o difícil equilíbrio entre a (de)mora jurisdicional e o atropelo de direitos e garantias fundamentais. Devemos buscar a diminuição dos ‘tempos mortos’ (Chiavario) e melhorar a dinâmica procedimental. O STJ, especialmente, precisa ser aumentado para dar conta da demanda de um país de dimensões continentais como o nosso. É preciso reconhecer que duas (02) turmas criminais é absolutamente insuficiente para a demanda existente. E, se essa demanda é alta, as causas são complexas e precisam ser estudadas, bem como assumido que temos muita patologia decisória nos tribunais inferiores. Essa é uma discussão válida e complexa, que está sendo reduzida e pseudo-solucionada com a possibilidade de execução antecipada da pena. É um efeito sedante apenas. A persistir nessa linha, continuaremos com uma demora imensa e crescente, agravada pelo fato de que muita gente vai tê-la de suportar preso….em um sistema carcerário medieval como o nosso.
Alguém fez um estudo de impacto carcerário dessa decisão? Como o STF reconhece o “Estado de Coisas Inconstitucional” do sistema carcerário e admite a execução antecipada da pena?
Eis um ponto que realmente me chamou a atenção. Será que tem o STF a dimensão do impacto que tal decisão terá no aumento da população carcerária brasileira? E ainda, como o STF reconhece: a) violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais;b) inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura; c) a existência de uma situação que exige a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades para resolver o problema (ADPF 347 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 9/9/2015 (Info 798)).
Reconhece tudo isso e profere uma decisão completamente descomprometida com a situação apontada, agravando-a substancialmente?
O STF deve ouvir a sociedade e a decisão é uma resposta aos anseios sociais e a sensação de impunidade
Aqui a discussão precisaria ir muito mais longe, mas convido o leitor a refletir sobre o seguinte: a que expectativas deve corresponder um julgamento? Expectativas sociais? Políticas? Econômicas? Jurídicas? Como se dá a gestão de expectativas no processo penal? Eis um tema complexo e importante. Introdutoriamente entendamos que a legitimação da atuação do juiz/tribunal não decorre da aceitação popular ou da maioria da população. Não é um modelo político, de eleição. Todo o oposto. O papel do juiz no processo penal é o de ser o guardião da máxima eficácia dos direitos e garantias da Constituição, ainda que para isso ele tenha que decidir contra a maioria. É uma legitimação que se sustenta ainda que seja contramajoritária. Nesse sentido, é bastante claro e preciso o texto de Fernando Facury Scaff que com rara habilidade consegue fazer uma síntese para onde remetemos o leitor. Mas uma advertência final, para uma mínima compreensão dos perigos que encerra o argumento do STF: se uma decisão penal precisa corresponder às expectativas sociais criadas, que se institua a pena de morte, a tortura para obter a confissão, a prova ilícita para qualquer das partes, o julgamento imediato e sem dilação probatória, a prisão cautelar como regra, a prisão em flagrante prendendo por sí só e já autorizando a condenação sem processo, etc. Perigoso, não?
[1] A teoria dos jogos aplicada ao processo penal. 2ª edição. Empório do Direito, 2015.
[2] BUENO DE CARVALHO, Amilton. ‘Lei, para que(m)?’. In: Escritos de Direito e Processo Penal em Homenagem ao Professor Paulo Claudio Tovo. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001, p.51.
[3] PRADO, Geraldo. “O trânsito em julgado da decisão penal condenatória”. In: Boletim do IBCCrim, n. 277, dezembro de 2015.
[4] Inúmeros são os livros e artigos de Lenio Streck explicando os perigos do decisionismo e do juiz solipsista, bem como desse tipo de ‘livre’ interpretação e (re)criação de conceitos jurídicos. Mas, nesse tema, arrisco-me a referir as obras ‘O que é isso? Decido conforme a minha consciência’, ‘Verdade e Consenso’ e ‘Hermeneutica e(m) Crise’.
[5] Sobre o tema consulte-se nossa obra “Investigação Preliminar no Processo Penal”, publicada em coautoria com Ricardo Jacobsen Gloeckner pela Editora Saraiva.
[6] Entre outros na obra ‘Tratado de Derecho Procesal Penal’, tomo I, EJEA, 1951, p. 252.
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