Estado da Economia

Brasil continua com a política da acumulação primitiva de capitais

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  • é advogado professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor nos programas de pós-graduação em Direito do IDP e da Uninove.

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10 de julho de 2016, 9h59

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A ditadura militar adotou uma política econômica que permanece até hoje, mais de 50 anos depois, como fundamento da acumulação capitalista no Brasil: a manutenção do pais como uma estrutura fundada na acumulação primitiva permanente de capital.

A acumulação primitiva (“ursprüngliche Akkumulation”) de capital é o processo que marcou os primórdios do capitalismo, envolvendo fraudes, roubos e todo tipo de violência[1]. Trata-se de uma “acumulação por espoliação”, em que se aliam o poder do dinheiro e o poder do Estado, seja diretamente, por conivência ou por omissão. Abrem-se, assim, espaços para a acumulação privada desenfreada, geralmente com dinheiro público a juros subsidiados, como os financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no processo de privatização e na política dos chamados “campeões nacionais”.

Inspirando-se na concepção de Caio Prado Jr. sobre o “sentido da colonização”[2], Leda Paulani entende que o sentido da industrialização no pós-1964, fundado em empresas multinacionais, foi construir a base para o regime de acumulação sob dominação financeira que se consolidaria nos anos 1990. A internacionalização da produção industrial promovida pelos militares foi o substrato necessário para o desenvolvimento da financeirização e para a consolidação do Brasil como uma plataforma de valorização financeira internacional, processo consumado na década de 1990 e mantido em suas bases até hoje. A ditadura de 1964 deixou de construir uma economia industrial avançada e ajudou a estruturar um complexo de apropriação e promoção mercantil que utiliza permanentemente formas diversificadas de acumulação primitiva, instituindo, nas palavras de Carlos Brandão, uma máquina de produzir desigualdades potente e sofisticada.

A diferença entre a acumulação primitiva de capital do início do capitalismo para o atual está no discurso econômico dominante. Antes, era o discurso mercantilista, de defesa dos mercados pelo Estado. Atualmente, o discurso é o da supremacia dos mercados, da concorrência, da competitividade, da eficiência[3], cuja concretização se demonstra no privilégio patrimonialista de uma minoria privilegiada e bem posicionada junto ao Estado. A acumulação primitiva permanente no Brasil está baseada na apropriação privada do território e dos bens públicos pela minoria privilegiada, na retenção especulativa da propriedade e do dinheiro e na preponderância da esfera da circulação, e não da produção, no espaço nacional. Essa apropriação privada do território e dos recursos naturais mantém uma contínua “fuga para a frente”, com abundância de terra, força de trabalho, recursos naturais e financiamento público. A consequência deste modelo é a estrutura concentrada da propriedade e da renda, mantidas por um pacto político conservador que impede qualquer possibilidade de ruptura.

Como afirma Leda Paulani, o Brasil se tornou uma plataforma de valorização financeira, capaz de proporcionar aos rentistas nacionais e estrangeiros ganhos incalculáveis em moeda forte. O Poder Público, assim, extrai boa parte da renda real da população e a transfere para a esfera da valorização financeira, garantindo o rentismo fundado nos títulos da dívida pública[4].

Em relação ao setor agrário, a história não foi diferente. A narrativa liberal da modernização agrária, segundo Juarez Rocha Guimarães, caracteriza-se pela defesa implacável da propriedade, a organização da produção para a maximização de lucros e a inserção direta da agricultura brasileira no mercado mundial. Deste modo, esvazia-se o desenvolvimento agrário, cada vez mais mercantilizado, e voltado à geração de divisas com a exportação de commodities. Este foi o percurso seguido no pós-1964, que tornou o campo complementar à modernização urbana, dando origem ao agronegócio (agribusiness). A modernização das relações produtivas no campo, com a empresarialização e o agronegócio, no entanto, não alterou o sistema de concentração fundiária. Embora elogiado por representar um setor em que o país tem liderança no mercado internacional, a lógica do agronegócio é a mesma lógica de concentração, exploração e exclusão que caracteriza o modelo agrário brasileiro[5].

O que ocorreu no Brasil a partir de 1964, e de modo acelerado a partir dos anos 1990, foi uma cada vez maior especialização regressiva, com a perda do dinamismo industrial, cada vez com maiores acréscimos de conteúdo importado e redução de inovações tecnológicas, chegando, em alguns setores, à desindustrialização. O núcleo da economia voltou a ser a produção de produtos primários (commodities) para exportação, reforçando as características patrimonial-rentistas dos grupos econômicos nacionais. Sem uma estratégia industrial definida por parte do Estado, assistimos à reprimarização da economia brasileira.

O Brasil, em seu processo de formação econômica, sempre oscilou entre duas grandes tendências. Uma é a constituição de um sistema econômico nacional, autônomo, com os centros de decisão econômica internalizados e baseado na expansão do mercado interno, em um processo de desenvolvimento vinculado a reformas estruturais. A outra consiste no modelo dependente ou associado, com preponderância das empresas multinacionais e do sistema financeiro internacional, dependente financeira e tecnologicamente e vinculado às oscilações externas da economia mundial.

A constituição de um sistema econômico nacional autônomo, nacionalmente integrado e fundado na expansão do mercado interno por meio da industrialização não é uma via de desenvolvimento consolidada no Brasil. Interesses econômicos e políticos, internos e externos, extremamente poderosos, ainda sonham e lutam por transformar o país em uma grande plataforma de exportação de produtos primários, agrícolas e minerais, buscando de ciclo em ciclo uma melhor inserção no mercado internacional.

A crise do Estado brasileiro, segundo José Luís Fiori, não se deve à sua fraqueza, mas à sua força, pois, tendo consolidado a industrialização pesada, não apresenta complementariedades com os blocos econômicos regionais ou com as economias desenvolvidas, não admitindo saídas baseadas exclusivamente no dinamismo das exportações. O Brasil, dados o tamanho, volume e complexidade de sua economia, necessita de uma profunda reestruturação produtiva e tecnológica. A saída, portanto, implica em um Estado nacional forte, não autoritário, capaz de definir e comandar a estratégia de superação do impasse atual, retomando o processo de desenvolvimento e promovendo a integração social e política de toda a população[6]. Isto implica na possibilidade de alteração da política privatizante seguida nos anos 1990 e ressurgida das cinzas em 2016.

O desenvolvimento só ocorrerá com inclusão das massas urbanas e rurais, com a homogeneização social, que, como esclarece Celso Furtado, não é a uniformização dos padrões de vida, mas a satisfação adequada das necessidades de alimentação, vestuário, moradia, acesso à educação, ao lazer e à cultura para todos os cidadãos. Afinal, segundo Friedrich Müller, a exclusão deslegitima a democracia[7].

A boa ou má utilização dos recursos petrolíferos descobertos na camada do pré-sal será decisiva neste embate e, se formos levar em consideração os violentos e incessantes ataques contra a Petrobras e o modelo de exploração dos recursos petrolíferos que assegure o controle estatal, o Brasil parece estar caminhando não para o rumo da superação do subdesenvolvimento e da soberania energética, mas para repetir, mais uma vez, a entrega dos seus recursos e de suas riquezas à voracidade dos interesses antinacionais e contrários ao desenvolvimento do país.

O Brasil parece querer repetir, com o processo de desindustrialização e reprimarização da nossa economia, complementado com a destruição acelerada dos meios de que o Estado dispõe para promover o desenvolvimento, como a Petrobras, em pleno século XXI, mais uma vez a "procissão dos milagres", descrita por Sergio Buarque de Holanda: "Tivemos também os nossos eldorados. Os das minas, certamente, mas ainda o do açúcar, o do tabaco, de tantos outros gêneros agrícolas, que se tiram da terra fértil, enquanto fértil, como o ouro se extrai, até esgotar-se, do cascalho, sem retribuição de benefícios. A procissão dos milagres há de continuar assim através de todo o período colonial, e não interromperá a Independência, sequer, ou a República" [8].

 


[1] Karl MARX, Das Kapital: Kritik der politischen Ökonomie, 38ª ed, Berlin, Dietz Verlag, 2007, vol. 1 (Der Produktionsprozeb des Kapitals), capítulo 24, pp. 741-791.

[2] Cf. Caio PRADO Jr, Formação do Brasil Contemporâneo – Colônia, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p. 29.

[3] Vide, por todos, Rolf STÜRNER, Markt und Wettbewerb über alles? Gesellschaft und Recht im Fokus neoliberaler Marktideologie, München, Verlag C. H. Beck, 2007.

[4] Leda PAULANI, Brasil Delivery: Servidão Financeira e Estado de Emergência Econômico, São Paulo, Boitempo Editorial, 2008, pp. 87-95 e Carlos BRANDÃO, “Acumulação Primitiva Permanente e Desenvolvimento Capitalista no Brasil Contemporâneo” in Alfredo Wagner Berno de ALMEIDA et al., Capitalismo Globalizado e Recursos Territoriais: Fronteiras da Acumulação no Brasil Contemporâneo, Rio de Janeiro, Lamparina, 2010, pp. 39-41 e 43-59.

[5] Juarez Rocha GUIMARÃES, "Do Sentimento à Imaginação Republicana: Em Busca de uma Narrativa para a Reforma Agrária do Século XXI" in Heloísa Maria Murgel STARLING; Henrique Estrada RODRIGUES & Marcela TELLES (orgs.), Utopias Agrárias, Belo Horizonte, EdUFMG, 2008, pp. 276-279.

[6] José Luís FIORI, Em Busca do Dissenso Perdido: Ensaios Críticos sobre a Festejada Crise do Estado, Rio de Janeiro, Insight, 1995, pp. 116-118 e pp. 157-159.

[7] Celso FURTADO, Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, 5ª ed, Rio de Janeiro, Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2009, pp. 233-234 e Friedrich MÜLLER, Wer ist das Volk? Die Grundfrage der Demokratie, Berlin, Duncker & Humblot, 1997, p. 56.

[8] Sergio Buarque de HOLANDA, Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil, 5ª ed, São Paulo, Brasiliense, 1992, p. 334.

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