Embargos Culturais

A desesperança da senilidade e a constitucionalização do amparo ao idoso

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

10 de janeiro de 2016, 7h00

Spacca
Velhice é o nome de um atemorizante poema de Vinicius de Moraes (1913-1980) que nos incita a viver com energia, antes que passem os anos, e que nos amarguremos, definitivamente, pelo resto dos tempos, que a cada de um de nós ainda tem. A inquietação com a senilidade é uma forma disfarçada de nos preocuparmos com nós mesmos, em nossos tempos, como vivemos, e com aqueles que amamos, e com quem a vida compartilhamos.

Vinicius anunciava que viria o dia no qual seria um velho experiente, quando olharia as coisas através de uma filosofia sensata, e quando leria os clássicos com a afeição que a mocidade a ninguém permite[1]. Clássicos são aqueles livros que, quando lemos, dizemos que estamos relendo. Ninguém lê Os Lusíadas, A Ilíada, O Paraíso Perdido ou Dom Casmurro. Uma regra de etiqueta de vaidade intelectual dispõe que se diga estar “relendo” Camões, Homero, Mílton e Machado de Assis. É assim, clássicos nunca são lidos, são sempre relidos. Talvez platonicamente já nascemos com essa carga de leituras.

Nunca podemos dizer que estamos lendo A Teoria Pura do Direito. A nobreza obriga que falemos que estamos relendo o jurista europeu que terminou seus dias na Califórnia. A propósito da longevidade, Hans Kelsen viveu 92 anos. Pressupõe-se que todo professor de filosofia do direito já nasceu com as primeiras 10 páginas (que para muitos apressados bastam) do Kelsen na cabeça.

Na temida velhice, Vinicius presumia que Deus estaria definitivamente em seu espírito ou, “talvez tenha saído definitivamente dele”. O “roído de um coração doente” avisaria que um resto de vida ainda haveria. Premonia que nem o cigarro da mocidade restaria; fumaria um cigarro forte que satisfaria seus pulmões viciados. Melancolicamente anunciava que seria “um corpo sem mocidade, inútil, vazio, cheio de irritação para com a vida”. E mais melancolicamente ainda também adiantava que seria um “velho cujo único valor é ser o cadáver de uma mocidade criadora”.

A aplicação jurídica dessa angustiada percepção constitucionaliza-se emblematicamente no dever dos filhos maiores ajudar e amparar aos pais na velhice, carência ou enfermidade (artigo 229 da Constituição Federal). Pragmaticamente, a regra somente alcança o idoso que tenha filhos, que esses tenham condições de ajuda e amparo, a par de um elemento de índole muito subjetiva, que também traça limites putativos entre direito e moral.

É nas Lições Preliminares de Direito que Miguel Reale nos relatava que, ainda muito jovem, ajuizara uma ação em favor de um idoso, contra os filhos que o abandonaram. A procedência da ação, e a consequente condenação dos filhos réus, não substituía alguma motivação moral, que o direito não consegue alcançar. Miguel Reale tratou do abandono afetivo, muito antes que esse tema se tornasse tão recorrente nos tribunais.

Apreciador de camarões à baiana, de picadinhos à la cavalados, de patos de alucinar, de canjas de meia noite, Vinicius era um glutão, de formas e de sabores, e que passou por esta vida tudo apreciando[2]. Seu legado poético e intelectual, no entanto, e a seu favor, nos indica que pela manhã semeava as sementes, e que a tarde não retirava a própria mão, porque, tal como no Eclesiastes (11,6) não sabia qual semente prosperaria, se esta, ou aquela, ou se ambas seriam integralmente boas. Vinicius frutificou em todos os campos.

Vinicius deve ter relido todos os clássicos, e certamente inspirou-se na passagem transcendente de Ovídio (que viveu no século I a.C.), para quem devemos pensar, desde agora, na velhice que virá[3]. Assim, prossegue esse clássico romano, a vida não passará em vão para nós. Ensinou Ovídio que devemos nos divertir, enquanto é possível, enquanto nos encontramos nos verdes anos; é que os anos “passam como a água que escoa; nem a água que corre voltará para trás, nem as horas poderão voltar (…) o tempo tem de ser aproveitado: ele foge com passo veloz e por melhor que seja não é tão bom como o que o antecedeu”. Provavelmente, Vinicius inspirou-se também em Horácio (contemporâneo de Ovídio), para quem deveríamos aproveitar o dia (carpe diem), acreditando muito pouco no amanhã (quam minumum postero credula).

A constitucionalização do amparo ao idoso é indicativo legislativo e freudiano de que a velhice nos preocupa, de que o desamparo é um problema e de que a solidariedade social deva mitigar as aflições de quem ao fim da vida nada mais tenha do que lembranças dos anos de juventude.

[1] Conferir, Vinicius de Moraes, Poesia Completa e Prosa, volume único, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987, pp. 82-83.

[2] A culinária que empolgava Vinicius está magistralmente recolhida e explicada em livro organizado por Daniela Narciso e Edith Gonçalves, Pois sou um bom cozinheiro- receitas, histórias e sabores da vida de Vinicius de Moraes, São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

[3] Ovídio, A Arte de Amar, Rio de Janeiro: Ediouro, s.d., tradução de David Jardim Júnior. 

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