Ganância do Estado

"Melhor forma de combater a corrupção é limitando poderes dos agentes públicos"

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9 de agosto de 2016, 13h20

Spacca
O criminalista Fábio Tofic Simantob tem um duro desafio pela frente. Ele quer mostrar para a sociedade que o cumprimento das regras é tão importante quanto o combate ao crime. O novo presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), chega à instituição em meio a um cenário que parece desolador, onde direitos são suprimidos em nome da segurança ou do “combate à impunidade”.

Tofic não vê com bons olhos as chamadas 10 medidas contra a corrupção, defendidas pelo Ministério Público Federal. Para ele, é “um pouco constrangedor” ver membros do MPF proporem medidas que afetam a Justiça estadual com base na experiência que tiveram na Justiça Federal. “É como se um chef francês resolvesse defender perante uma plateia de famintos somalianos que o grande problema do mundo é a obesidade”, afirma o novo presidente do IDDD.

Em entrevista exclusiva à ConJur, o criminalista é categórico ao definir o pacote de mudanças legais defendidas pelos promotores e procuradores: trata-se de uma busca por mais poder. “Se espremermos o pacote das dez medidas, veremos que o que sobra são agentes da Justiça querendo angariar mais poderes. Só se esqueceram que poder ilimitado é uma das causas mais evidentes de corrupção sistêmica.”

Entre os movimentos que explicitam o rebaixamento do direito de defesa está a mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal, que passou a permitir a prisão de réus antes do trânsito em julgado. Uma vez promulgada, a Constituição deve ser preservada, respeitada, seguida. Para Tofic, a Constituição é clara ao definir que o processo se encerra quando se encerram os recursos. Assim, na visão do novo presidente do IDDD, ao permitir a prisão para pessoas condenadas em segunda instância, antes do fim da ação, o STF diz que até mesmo aquilo que está escrito pode ser mudado. E essa relativização é um dos maiores fatores de insegurança jurídica.

Ainda na entrevista à ConJur, Fábio Tofic Simantob rebate a acusação feita por membros da Justiça Federal de que, ao buscar nulidades no processo, os advogados se esquivam de enfrentar o mérito das questões. Para ele, a culpa das nulidades não pode ser atribuída ao advogado, mas a um sistema que não prioriza as provas. “Quem abandonou o debate de mérito foi o próprio Estado, ao aceitar como provas o mesmo padrão que se usava no século XIX para condenar alguém. Restou à defesa as teses processuais. É um caminho óbvio e natural. Fruto de um faz de conta processual que o Judiciário não teve coragem de enfrentar para não entrar em confronto com a polícia e com a opinião pública”, diz.

Tofic Simantob foi vice-presidente do instituto que agora presidirá e participa também do conselho do Movimento de Defesa da Advocacia. O criminalista traz no histórico de processos em que atuou nomes como o marqueteiro João Santana, o banqueiro Edemar Cid Ferreira e os funcionários da Engevix, alvo da operação “lava jato”.

Leia a entrevista:

ConJur — Ao deixar a presidência do IDDD, o advogado Augusto de Arruda Botelho falou que “o momento é ruim para o direito de defesa”. Quais são os principais problemas que a entidade tem identificado? São mudanças que podem ser associadas à "lava jato"? Ou têm afetado também acusados menos famosos e que envolvem casos menos midiáticos?
Fábio Tofic —
Existem duas justiças criminais. Uma Justiça criminal é aquela que parece série de TV, onde as operações têm nome, os investigados são conduzidos por policiais armados até os dentes e as fases de investigação são acompanhadas de entrevistas coletivas. A outra Justiça criminal não conhece holofote algum e, em vez de políticos e empresários poderosos, tem como alvo os pobres. São pessoas que, ainda que inocentes, são tratadas como se fossem culpadas, muitas vezes enviadas para a cadeia sem provas. A “lava jato” não é infalível como pregam alguns de seus condutores. Há problemas, e não são pequenos. Mas essa outra Justiça preocupa muito mais porque ela opera quase exclusivamente à base da supressão de direitos. Poucas são as vozes que se levantam para questioná-la. O IDDD tem um papel fundamental nesse campo. 

ConJur — O direito de defesa está sendo rebaixado no Brasil? O senhor acha que a população entende o que é isso?
Fábio Tofic —
A supressão ao direito de defesa é cometida de forma velada. Ninguém a explicita. Nenhum delegado, promotor público ou juiz escreverá que este ou aquele cidadão foi encaminhado ao presídio porque era negro ou pobre. Nos códigos está tudo escrito, tudo desenhado para que o cidadão não seja desrespeitado. Só que não funciona, principalmente para as camadas mais desassistidas. Ainda condenamos com prova produzida no inquérito, usamos provas do século XIX, como testemunho de ouvir dizer, reconhecimento testemunhal, testemunho de policiais. Raríssimas vezes há preocupação com preservação da integridade da prova. O sistema caminha sempre no sentido da condenação. Quando o réu consegue contratar um bom advogado, as mazelas até podem ser evitadas. Mas é uma pequena minoria.

ConJur — O que o senhor pretende mudar no IDDD, como presidente?
Fábio Tofic —
Não há dúvida de que é preciso combater o crime, mas os fins não podem justificar os meios. Culpados só devem ser mandados para a cadeia após um processo penal irreparável, e sabe por quê? Porque processos penais conduzidos de forma equivocada produzem injustiça, que vai desde o enquadramento equivocado que aumenta a pena até a condenação de um inocente. Nosso maior desafio como país é combater o crime dentro das regras. E o maior desafio do IDDD é mostrar para a sociedade que o cumprimento das regras é tão importante quanto o combate ao crime. Uma coisa é a justiça, outra bem diferente é o justiçamento. Em nome da condenação dos culpados, o Estado não pode adotar uma conduta condenável. Infelizmente, as pessoas só se dão conta da importância do direito de defesa quando se tornam rés. É uma forma muito ruim e dura de aceitar que as coisas precisam mudar.

ConJur  O Direito Penal do Inimigo é uma realidade nos nossos tribunais?
Fábio Tofic —
O Direito Penal caminhou nos últimos anos para um afrouxamento do princípio da legalidade, mediante a adoção de institutos que alargam demais a responsabilidade do individuo. Há 20 anos, acreditava-se que o Direito Penal caminharia para um Direito Penal mínimo. Deu-se o inverso. Inflacionou-se a quantidade de novas condutas tipificadas como crimes, ao passo que algumas figuras novas criaram um sistema que exige conduta quase heroica do cidadão na prevenção do crime. Refiro-me ao domínio do fato, cegueira deliberada, dolo eventual, responsabilidade por omissão, e outras excentricidades. Enquanto isso, o Estado ganha cada vez mais poder e força, e é quase sempre desculpado quando comete erros.

ConJur — O punitivismo foi fortalecido recentemente no nosso Legislativo ou ele sempre teve força lá e agora está sendo mais sentido no noticiário?
Fábio Tofic —
A condenação sempre será mais popular do que a absolvição. O ser humano se satisfaz com a punição dos outros, até como uma forma de expurgar seus próprios pecados. Vivemos numa sociedade onde é normal comparecer à passeata contra a corrupção no domingo, e na segunda pagar propina para garantir que o filho consiga a carteira de habilitação sem se submeter às provas de praxe. À contravenção dos outros a forca, à nossa o perdão. Os partidos capitalizam esse sentimento, e passam a usá-lo de forma populista. Essa fórmula não é nova. Produz leis ruins, e sensação enorme de insegurança

ConJur — É possível o cidadão (réu) se defender em paridade de armas com o Estado, que é Ministério Público, polícia e juiz?
Fábio Tofic —
Do jeito que o sistema está montado hoje, arriscaria dizer que não, o que é um absurdo total. Ao expor as entranhas da estrutura do poder político, a “lava jato” gerou uma onda de indignação nacional, que sugere existir dois tipos de brasileiros. Os que querem purificar o país e os que querem manter a podridão. As vozes que se levantam para questionar o método da investigação, ou mesmo debater temas como a paridade de armas, acabam carimbadas como defensores da imundície praticada em Brasília. Precisamos entender que o momento é adverso, mas não podemos esmorecer. O direito de defesa é uma luta de todos, não apenas dos advogados. Sabe o combate ao colesterol alto? É um tema defendido por médicos, certo? Só que quem morre com artéria entupida é a sociedade.

ConJur — O que o senhor acha das “10 medidas contra a corrupção”, defendidas pelo Ministério Público Federal?
Fábio Tofic —
É um pouco constrangedor ver membros do MPF proporem medidas que afetam réus da Justiça estadual (onde está a esmagadora maioria de réus do país), apenas com a experiência que tiveram em alguns poucos casos na Justiça Federal. É como se um chef francês resolvesse defender perante uma plateia de famintos somalianos que o grande problema do mundo é a obesidade. Se a “lava jato” conseguiu o êxito todo que conseguiu sem as dez medidas, é porque a lei não precisa ser alterada para que a corrupção possa ser combatida. A “lava jato” é a maior prova contra as dez medidas. Se espremermos o pacote das dez medidas, veremos que o que sobra são agentes da Justiça querendo angariar mais poderes. Só se esqueceram que poder ilimitado é uma das causas mais evidentes de corrupção sistêmica. A melhor forma de combater a corrupção é limitando, e não ampliando os poderes dos agentes públicos.

ConJur — É papel do MPF propor leis e fazer campanha popular pela aprovação delas?
Fábio Tofic —
Ainda que discorde da lista das dez medidas, não posso negar ao MPF o direito de lutar por aquilo que acredita. A sociedade ganha quando todos os segmentos se mobilizam. Lutaremos para mostrar que eles estão equivocados. Trata-se de um debate saudável, próprio da democracia.

ConJur — O juiz Sergio Moro tem ganhado os holofotes. A atuação dele é representativa do Judiciário brasileiro?
Fábio Tofic —
Se todos os juízes trabalhassem o tanto que ele trabalha, os processos andariam mais rápido, prescreveriam menos, e daria até para esperar o trânsito em julgado das condenações antes de mandar prender o réu.

ConJur — Aliás, hoje vimos a notícia de Sergio Moro em um almoço com artistas, de apoio a ele mesmo. É papel de juiz fazer isso?
Fábio Tofic — Moro virou um símbolo, e é natural que queiram homenageá-lo. Não me sinto confortável em julgar seu comportamento social. Limito-me a debater suas sentenças.

ConJur — Compartilhamento de provas com a Suíça sem autorização do Ministério da Justiça, grampos em escritório de advocacia (Teixeira Martins), presos preventivamente sendo soltos após fazerem delação… A operação “lava jato” respeita as garantias dos cidadãos?
Fábio Tofic —
Estas respostas precisam ser dadas pelos nossos tribunais. Mas uma coisa posso garantir, a história dificilmente nos absolverá da forma como foram usadas as prisões neste caso, como inegável instrumento de obtenção de confissões e delações. Só não percebe isto quem não leu os autos.

ConJur — O uso de grampos é indiscriminado no Brasil? As delações premiadas, que ganharam espaço com a operação “lava jato”, podem ser vistas como instrumento de defesa? Ou são um instrumento do Estado para investigar?
Fábio Tofic —
Ninguém pode ser contra o direito que um réu tem de revelar crimes em troca de um benefício qualquer, por exemplo, a redução na sua pena. Essa possibilidade está prevista no nosso ordenamento jurídico. O problema começa quando os acordos de colaboração se tornam uma forma que o Estado encontrou de suprir sua incapacidade de investigar. Uma coisa é fazer buscas e apreensões, juntar documentos, contratos, horas e horas de áudio, listas e listas de mensagens trocadas por SMS ou WhatsApp. Outra, muito diferente, é saber o que fazer com esse material todo. As cenas em que policiais paramentados recolhem HDs e caixas de papelão podem sugerir que a qualidade da investigação policial no Brasil atingiu patamares internacionais. Não nos deixemos impressionar. Está cada vez mais claro que as sucessivas fases da “lava jato” se amparam basicamente no que disseram os delatores. Basta abrir os jornais para constatar que, em muitos casos, delatar virou uma opção lucrativa, que garante a liberdade antecipada e salva uma parte significativa do patrimônio. Será que a força-tarefa não está, involuntariamente, patrocinando um bom negócio? Nos EUA, onde tais acordos surgiram, não se permite que culpados em maior grau saiam livres pela delação, nem que culpados de menor grau sejam punidos de forma tão severa. Lá, o réu tem direito a celebrar um acordo mesmo que não seja de delação. Aqui não. Quem sabe pouco fica preso. Quem sabe muito sai rápido. Esse sistema a longo prazo é capaz de produzir grande injustiça, e reforçar o sentimento de impunidade que a “lava jato” diz combater.

ConJur — O conteúdo das delações pode ser combinado antes?
Fábio Tofic —
O acordo de colaboração é um pacto, uma troca. Os réus contam o que sabem em troca de um benefício. Tanto o benefício quanto o conteúdo da colaboração é discutido abertamente, do contrário, não seria um acordo.

ConJur — Quais são as mudanças legislativas possíveis para evitar que as prisões sejam usadas para obter acordos de delação?
Fábio Tofic —
Prisão preventiva não poderia ser objeto de negociação. Ou existem motivos para a prisão, ou não existem. A lei não prevê a possibilidade de barganhar uma coisa pela outra. A lei prevê benefícios penais, e não processuais. Tudo que pode ser barganhado passa a ser motivo de “chantagem”. O mesmo ocorre quando se permite barganhar a delação com benefícios a familiares. Permite que a ameaça a filhos e parentes se torne instrumento de pressão contra o réu. Este ciclo não faz bem ao Direito nem à Justiça.

ConJur — Passamos há pouco tempo por operações que foram anuladas por erros da investigação, como castelo de areia e satiagraha. A “lava jato” seria impossível em outra época?
Fábio Tofic —
Não vejo aí uma discussão de cunho temporal. As autoridades cometeram erros gravíssimos na condução daquelas operações. Tão graves que o Poder Judiciário as liquidou.

ConJur — Qual será o legado da “lava jato”?
Fábio Tofic —
Difícil prever. Uma vez perguntaram a um líder chinês qual foi o impacto da Revolução Francesa, e ele respondeu que ainda era muito cedo para saber. Sem dúvida haverá resultados positivos. A forma como se enxerga a corrupção nunca mais será igual.

ConJur — O senhor acha quer a mudança de entendimento do STF, permitindo a prisão antes do trânsito em julgado, é um retrocesso? O senhor vê chance de essa posição ser revista em breve?
Fábio Tofic —
Temos uma Constituição, redigida com um único propósito: ser o pilar do nosso ordenamento jurídico. A Constituição brasileira pode ser boa ou ruim, pode ser discutida, pode até ser emendada. Aliás, se eu fosse convidado a mexer na Constituição, seguramente faria vários ajustes. Mas nada disso está em discussão. Uma vez promulgada, a Constituição deve ser preservada, respeitada, seguida. E nossa Constituição não deixa dúvidas sobre esse assunto. O processo se encerra quando se encerram os recursos. Numa primeira passada de olhos, pode ficar a impressão de que o Supremo Tribunal Federal está agilizando o andamento dos processos penais. É uma leitura. A minha é um pouco diferente. O Supremo Tribunal Federal está dizendo para a sociedade que até mesmo aquilo que está escrito pode ser mudado. Quando o que não se discutia passa a ser discutido, quando tudo pode ser relativizado, surge a insegurança jurídica. Os países são estáveis não apenas quando a economia é previsível, mas quando o arcabouço legal é sólido.

ConJur — O que acha de o ex-presidente Lula ter ido à ONU para reclamar da atitude do juiz de seu caso? É significativo?
Fábio Tofic —
Aprovemos ou não, todo investigado tem o direito de fazer o que entender que está ao seu alcance para se defender. É uma questão de princípios. O ex-presidente é investigado e, juntamente com seus advogados, viu nesse expediente um caminho que faz sentido. Não me cabe questionar.

ConJur — Para que serve o IDDD?
Fábio Tofic —
Serve para lutar dia e noite por um direito fundamental da sociedade nas democracias, que é o direito de defesa. Serve para garantir aos presos o direito a um julgamento. Veja bem: não estou falando em julgamento justo, mas em julgamento. Boa parte dos nossos presos não foram julgados. O IDDD serve para garantir que o Estado seja obrigado a produzir condenações baseadas em provas de qualidade. Serve para assegurar a presunção de inocência. Serve para combater o uso desmedido das prisões preventivas, para defender um tratamento digno durante todas as fases do processo.

ConJur — Advogados apontam que a OAB não atua na defesa do direito de defesa. O senhor concorda? É papel do IDDD preencher esse espaço?
Fábio Tofic —
A OAB tem um grande escopo de atribuições, entre as quais está, sim, denunciar as falhas no direito de defesa. O IDDD funciona como um reforço concentrado nesse tema. OAB e IDDD são grandes parceiros.

ConJur — Alguns setores da Justiça Federal reclamam que advogados que buscam nulidades processuais são menos preparados, ou não conseguem enfrentar o mérito. O que acha desse tipo de raciocínio? Esse tipo de defesa acabou? O processo virou apenas formalidade para se chegar a uma sentença?
Fábio Tofic —
A priorização das nulidades em detrimento do mérito não é culpa dos advogados, mas de um sistema que não prioriza a prova no julgamento. As provas no Brasil são pífias, e isto é responsabilidade da polícia e do MP. O juiz aqui costuma se contentar com níveis baixíssimos de qualidade da prova. Até pouco tempo ninguém sabia o que era cadeia de custódia da prova. Se um advogado falar sobre isto no processo, vai ser motivo de piada. Quem abandonou o debate de mérito foi o próprio Estado, ao aceitar como provas o mesmo padrão que se usava no século XIX para condenar alguém. Restou à defesa as teses processuais. É um caminho óbvio e natural. Fruto de um faz de conta processual que o Judiciário não teve coragem de enfrentar para não entrar em confronto com a polícia e com a opinião pública.

*Texto alterado às 17h10 do dia 9 de agosto de 2016 para correção.

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