Foro por conexão

A "lava jato", o Supremo Tribunal Federal e a competência do Poder Judiciário

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24 de setembro de 2015, 13h32

Notícia veiculada no site do STF informa: “O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, na sessão da quarta-feira (23/9), desmembrar o Inquérito 4130, mantendo na corte apenas a investigação contra a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), sob relatoria do ministro Dias Toffoli. Quanto aos demais investigados sem prerrogativa de foro, por maioria de votos os ministros decidiram que os autos devem ser enviados para a Seção Judiciária Federal de São Paulo – município que sedia a maior parte das empresas investigadas no caso. A decisão foi tomada em Questão de Ordem apresentada pelo relator, ministro Dias Toffoli”.

Essa decisão pode mudar o curso de toda a investigação levada ao Judiciário pelo Ministério Público e pela Polícia Federal, que vinha sendo conduzida pelo juiz Sergio Moro no primeiro grau, e pelo ministro Teori Zavascki no STF.

Antes de justificar essa afirmação, imprescindível abordar questão fundamental que deu ensejo aos debates na corte, colocando alguns de seus integrantes, radicalmente contrários ao deliberado pela maioria.

O núcleo da discussão diz respeito à competência do juízo para julgar os fatos apontados por grande parte da imprensa e pelos encarregados da investigação como o maior caso de corrupção da história da humanidade.

Um dos princípios básicos do processo penal é o da indivisibilidade. Isso significa que o Ministério Público deve processar todos os que participaram da infração.

No caso em exame, estamos diante, sem dúvida, de uma das organizações criminosas mais bem estruturadas de que se tem notícia, com todas as características exigidas na Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional, conhecida como Convenção de Palermo, que conceitua grupo criminoso organizado nos seguintes termos: “Grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”.

Este grupo criminoso contava com a participação de grandes empresários, doleiros, agentes públicos e políticos, entre diretores de estatais, ministros e parlamentares. As operações criminosas tiveram reflexos em várias localidades, como nos delitos de ocultação e lavagem de valores, em paraísos fiscais, e foram consumados em alguns dos estados brasileiros.  

Diante dessa aparente complexidade, emergiu, agora, no STF, a discussão sobre o desmembramento dos fatos que compõem este emaranhado jurídico.

Digo "aparente complexidade" em razão de já ter o legislador estabelecido regras claras e objetivas sobre a fixação de competência para processar e julgar casos desta natureza, em que os efeitos do ato criminoso se consumam em duas ou mais localidades, chamados de transfronteiriços.

Primeiramente, no âmbito deste assunto, competência é a medida da jurisdição, distribuída entre os vários magistrados, que compõem organicamente o Poder Judiciário (Elementi di procedura penale, 3. Ed. 1908. P 209, Lucchini). Ou, de forma mais simples, competência é o limite do poder jurisdicional fixado previamente dentro do qual o juiz exerce a jurisdição.

Considerando que, como foi dito nos debates, os crimes foram perpetrados e consumados em vários locais, como Brasília, Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro, quaisquer juízes dessas localidades poderiam ter sido provocados, pelo Ministério Público, para processar e julgar esses fatos. Todavia, aquele que por primeiro praticou ato decisório, exercendo a jurisdição, tornou-se prevento. Assim, começa-se a entender por qual razão o juiz Sergio Moro passou a conduzir, no Judiciário, as ações penais contra esta organização criminosa. Estamos diante de normas claras de fixação de competência em razão da natureza da infração.

Entendidos os motivos pelos quais esse processo tramita em uma Vara Federal de Curitiba, passamos ao segundo ponto. Por que razão os outros fatos desbaratados no curso desta investigação devem, ou melhor, deveriam, com o devido respeito a decisão, por maioria, do STF, continuar sendo apurados no mesmo juízo?

 O legislador estabeleceu as regras de modificação ou de mudança de competência, quando os fatos possuem continência ou conexão com os que estão em apuração, em um determinado Juízo.

No caso discutido, está demonstrada a existência de ambas. Inicialmente prevista no artigo 76, inciso I, primeira parte do Código de Processo Penal, ao estabelecer que: “Quando duas ou mais infrações são praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, sem que exista liame subjetivo entre elas, ou seja, sem que estejam atuando em concurso de agentes” – conexão intersubjetiva por simultaneidade. Na segunda parte do dispositivo, “quando duas ou mais infrações são praticadas por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar. ” – conexão intersubjetiva por concurso – deve ensejar a unidade processual.

Pelas características da organização criminosa, também ficou evidenciada a continência de que trata o artigo 77, inciso I do CPP, ao estipular que, “quando duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração”, havendo coautoria ou participação, nos termos do artigo 29, caput, do CP, estabelecendo um vínculo de agentes, torna não só conveniente, mas necessária a simultaneidade dos processos em um único Juízo.

Não podemos esquecer a conexão probatória, conveniente ou necessária para manter em um único juízo toda a apuração.

Quis o legislador, cautelosamente, evitar que possa haver decisões contrárias ou conflitantes, em avaliação das mesmas provas produzidas. Além de não se descuidar de outros aspectos, como o da economia processual e da segurança jurídica.

Como último tópico, com observância destas regras, evita-se a ocorrência do bis in idem. Como processar um servidor público acusado de ter recebido vantagens indevidas de um empresário no Rio de Janeiro e o corruptor ser processado em Curitiba, por corrupção ativa?

Em casos precedentes enfrentados pelo próprio STF, como no julgamento da AP 470 (mensalão) entendeu a Corte que não viola o princípio do juízo natural nem a ampla defesa a unificação processual decorrente da conexão entre os delitos praticados pelos envolvidos naquela organização. Muito embora, também naquele caso, vários fatos tenham sido praticados e consumados em localidades distintas conforme pode-se conferir no Inquérito 2704, de relatoria da minista Rosa Weber.

Em qualquer ordenamento jurídico em que vigora um estado democrático, temos que observar o princípio do non bis in idem no aspecto processual e penal, em nome do respeito à dignidade da pessoa humana.

Na União Europeia, por força do espaço comum, com a livre circulação de pessoas e valores com moeda única, potencializaram-se algumas modalidades criminosas transfronteiriças, como nos casos de tráfico de pessoas para fins de prostituição com rede de exploração em vários Estados Membros. Nestes casos, nas ações em cooperação judiciária, em força-tarefa, os órgãos de repressão, como a Europol e a Eurojust, atuam em parceria, definem o Juízo que deve conhecer do caso, entre aqueles que possuem competência e todos os fatos serão levados a julgamento em um único tribunal, assegurando o non bis in idem.

Em nações soberanas, os princípios de fixação de competência de tempo e espaço são relativizados em nome de outros de maior importância. Não está em jogo, obviamente, privilegiar um órgão do Judiciário em detrimento de outro.

No Judiciário brasileiro existem, sem dúvida, inúmeros magistrados que poderiam presidir este processo com absoluta independência e imparcialidade, o que tem demonstrado o juiz Sergio Moro. A questão é jurídica, a unidade deveria continuar sendo observada. O desmembramento somente deveria continuar se operando, nos casos previstos na Constituição Federal, quando estiver sendo acusada autoridade com prorrogativa de foro e, tratando-se da mesma organização criminosa, com o mesmo Relator.

Poderíamos até admitir que o STF deliberasse desmembrar, na própria Corte, os casos de sua competência originária, sorteando novo relator. Porém, não tem cabimento, com a devida vênia, decidir subtrair da Vara Especializada da Justiça Federal de Curitiba e determinar parte dos fatos conexos ao objeto global da investigação para o Juízo de São Paulo, suprimindo as instâncias competentes inferiores para apreciar o incidente de declinação de competência relativa (em razão do lugar), desde que arguida em tempo oportuno.

Portanto, a fragmentação, os desmembramentos, as separações processuais enfraquecem e dificultam a avaliação global das provas, num conjunto sistemático e coeso. 

Como todas as instituições são integradas por homens, portanto sujeitas a equívocos, conclui-se, data máxima vênia, que ao STF é conferida a prerrogativa de “errar por último”. Assim, diante de decisão judicial, deve-se seguir a regra, “cumpra-se”, especialmente daquelas contra as quais não cabem recursos, cuidando-se, todavia, para que não se criem falsos subterfúgios para alegar nulidades inexistentes. 

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