Modelo das concessões petrolíferas
do país é inconstitucional
13 de setembro de 2015, 8h00

Estas concepções, no entanto, estão equivocadas. O petróleo e os recursos minerais são bens públicos de uso especial, bens indisponíveis cuja destinação pública está definida constitucionalmente: a exploração e aproveitamento de seus potenciais. A exploração do petróleo e dos recursos minerais está vinculada aos objetivos fundamentais dos artigos 3º, 170 e 219 da Constituição de 1988, ou seja, o desenvolvimento, a redução das desigualdades e a garantia da soberania econômica nacional. Trata-se de um patrimônio nacional irrenunciável.
Em decorrência disto, a natureza jurídica do contrato de concessão de exploração de petróleo, assim como o contrato de concessão de lavra mineral, é a de um contrato de concessão de uso de exploração de bens públicos indisponíveis, cujo regime jurídico é distinto em virtude da Constituição e da legislação ordinária, portanto, a de um contrato de direito público. Estas concessões são atos administrativos constitutivos pelos quais o poder concedente (a União) delega poderes aos concessionários para utilizar ou explorar um bem público.
Ainda em relação à natureza jurídica do petróleo como bem público, a questão da propriedade sobre o resultado da lavra do petróleo e gás natural foi debatida no Supremo Tribunal Federal no contexto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3273-9/DF, impetrada pelo então Governador do Paraná, Roberto Requião, alegando a inconstitucionalidade de uma série de dispositivos da Lei 9.478, de 06 de agosto de 1997, especialmente o seu artigo 26, caput[1]. De acordo com este dispositivo, o contrato de concessão permitiria a propriedade privada dos recursos petrolíferos. O concessionário (seja uma empresa ou um consórcio) adquiriria o direito exclusivo de explorar naquela área determinada, por sua conta e risco, tornando-se proprietário do petróleo produzido.
Para os defensores da constitucionalidade do artigo 26, caput da Lei 9.478/1997, a Emenda Constitucional 9, de 1995, teria equiparado o regime jurídico aplicável ao petróleo e gás ao dos demais bens minerais previstos no artigo 176 da Constituição. O concessionário teria o direito de propriedade sobre o produto da lavra, ao se aplicar o disposto no artigo 176, caput da Constituição ao petróleo, regido pelo artigo 177, com a interpretação de que o artigo 176 seria a “regra geral” para a exploração de todos os recursos minerais de titularidade da União, inclusive o petróleo.
Os que entendem a inconstitucionalidade da Lei 9.478/1997 afirmam que as jazidas de petróleo são bens públicos indisponíveis da União. No entanto, o artigo 26 da Lei 9.478/1997 atribui a propriedade do petróleo, quando extraído, ao concessionário. A Lei 9.478/1997 teria migrado, assim, do monopólio estatal ao extremo oposto da titularidade dos concessionários. Este artigo seria inconstitucional, pois a propriedade do petróleo e gás natural, mesmo após extraídos, de acordo com o artigo 20, IX da Constituição, é da União. A questão da inconstitucionalidade do artigo 26 da Lei 9.478/1997 estaria ligada também à manutenção ou não do monopólio estatal do petróleo. Se o monopólio foi mantido pela Emenda Constitucional 9/1995, a União não poderia transferir a propriedade do produto da lavra para o concessionário.
A maioria do Supremo Tribunal Federal acompanhou o voto elaborado, após pedido de vista, pelo ministro Eros Grau, na sessão ocorrida em 16 de março de 2005, considerando improcedente a ação direta de inconstitucionalidade. Em seu voto, o ministro Eros Grau discordou da natureza jurídica do petróleo como bem público de uso especial, entendendo-o como um bem público dominical. Embora tenha afirmado, corretamente, que o monopólio diz respeito à atividade econômica, não à propriedade dos bens, o ministro Eros Grau defendeu a posição de que a transferência da propriedade do resultado da lavra das jazidas de petróleo e gás natural para terceiros seria constitucional, pois não afetaria o monopólio estatal da atividade, previsto no artigo 177. Deste modo, seria aplicável ao petróleo e ao gás natural o mesmo tratamento dado aos concessionários da exploração dos demais recursos minerais, conforme disposto no artigo 176, caput da Constituição. Além disto, a propriedade do concessionário sobre o produto da lavra seria relativa, pois sua comercialização continuaria a ser administrada pela União, por meio da Agência Nacional do Petróleo.
A decisão da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal foi, infelizmente, absolutamente equivocada. O artigo 26, caput da Lei 9.478/1997 é inconstitucional, pois viola o disposto nos artigos 20, IX e 177 da Constituição. O petróleo e o gás natural são bens inalienáveis da União, bens de uso especial, como os demais recursos minerais. A diferença entre o regime jurídico dos recursos minerais em geral (artigo 176) e o regime jurídico do petróleo, gás natural e minérios nucleares (artigo 177) é, justamente, o fato destes últimos terem sido monopolizados pela União. A autorização constitucionalmente manifestada no artigo 176, caput de que o produto da lavra mineral é propriedade do concessionário é uma exceção de alienabilidade ao regime jurídico dos bens minerais, por isso é expressa constitucionalmente. A regra é a inalienabilidade dos recursos minerais. Nos casos de concessão, é estipulada a exceção do artigo 176, caput. Se, de fato, como entendeu a maioria do Supremo Tribunal Federal, a Emenda nº 9/1995 e a Lei 9.478/1997 tornaram aplicável à exploração do petróleo e do gás natural as mesmas regras gerais previstas no artigo 176, especialmente a atribuição da propriedade do produto da lavra ao concessionário, não resta mais nenhuma distinção entre uma concessão de exploração de minérios e uma concessão de exploração de petróleo ou gás natural. Ora, a propriedade da União sobre o produto da lavra do petróleo e gás natural é mantida pela Constituição justamente pelo fato de esta atividade ser monopolizada, ao contrário da lavra dos minérios em geral. Com a atribuição da propriedade do produto da lavra do petróleo e gás natural ao concessionário, o controle da atividade petrolífera deixa, concretamente, de ser monopólio da União, o que viola os artigos 20, IX e 177 da Constituição de 1988.
De acordo com a análise de Juan Pablo Perez Alfonso, criticando o modelo venezuelano de concessões que existiu até a década de 1970, a diferença jurídica básica dos tipos de contrato se manifesta na diferença entre direitos reais e direitos contratuais. O titular da concessão tem direitos reais sobre o petróleo a ser explorado[2]. O contrato de concessão é o mais tradicional e é muito questionado, pois não permite a apropriação estatal de parte considerável da renda petrolífera gerada. Na Venezuela, por exemplo, desde 1946, a decisão dos governos democráticos foi a de não permitir mais nenhuma concessão ("princípio de no más concesiones"), tendo em vista a falta de investimentos e de desenvolvimento geradas pelo antigo sistema de concessões, finalmente abolido com a nacionalização da indústria petrolífera naquele país, em 1975.
Do mesmo modo, os países produtores de petróleo do Mar do Norte, notadamente a Noruega, decidiram não aceitar, ainda na década de 1960, o padrão tradicional de exploração por meio do sistema de concessões, impondo uma maior participação e direção da indústria petrolífera por parte de seus Estados. As alterações instituídas pela Noruega, um regime democrático consolidado, ampliaram o papel do Estado na exploração petrolífera e na apropriação das rendas geradas pelo setor. Ao enfrentar os interesses das multinacionais petroleiras e as prescrições de política econômica neoclássica, a Noruega priorizou sua própria política econômica nacional, não os interesses dos grupos econômicos privados. O chamado “North Sea model” concedia áreas menores do que o modelo de concessão tradicional. Embora as empresas privadas pudessem atuar diretamente na exploração e produção, foram implementadas uma série de taxações suplementares e imposições legais para reter boa parte da renda gerada pelo petróleo, como a chamada “participação governamental”, ampliou-se o controle estatal sobre os recursos produzidos, por meio do papel central da empresa estatal Statoil, ainda hoje sob controle do Estado norueguês, buscando acomodar os interesses privados sob o controle direto estatal. O modelo implementado tornou, assim, o Estado o principal operador da indústria petrolífera e o líder na acumulação de capital, reforçando a supremacia do Poder Público em relação ao capital privado na economia norueguesa.
O modelo dos contratos de concessão, criticado e abandonado em praticamente todos os países detentores de reservas petrolíferas consideráveis, foi o adotado pelo Brasil em 1997, modelo este que não poderia ser mais inadequado, tendo em vista o interesse público na exploração e produção de petróleo e gás natural. Além dos seus problemas estruturais, mencionados acima, não se pode relegar o fato de que a Lei nº 9.478/1997, que instituiu o modelo das concessões petrolíferas, é inconstitucional, pois o concessionário não pode ser proprietário do produto da lavra, sob pena de contrariar o fato de que o petróleo é um bem público de uso especial e é também monopolizado pelo Estado (artigos 20, IX e 177 da Constituição de 1988).
[1] Artigo 26, caput da Lei nº 9.478/1997: “A concessão implica, para o concessionário, a obrigação de explorar, por sua conta e risco e, em caso de êxito, produzir petróleo ou gás natural em determinado bloco, conferindo-lhe a propriedade desses bens, após extraídos, com os encargos relativos ao pagamento dos tributos incidentes e das participações legais ou contratuais correspondentes” (grifos meus).
[2] ALFONZO, Juan Pablo Perez, El Pentágono Petrolero, Caracas, Ediciones Revista Política, 1967, pp. 39-40.
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