Diário de Classe

Decisão judicial deita-se no
divã de Contardo Calligaris

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7 de novembro de 2015, 7h00

Spacca
Uma promotora de Justiça é convocada a atuar em um julgamento em que uma pessoa registrada como sendo sexo feminino, depois de operação de mudança se genitália (reconstruiu um pênis), procura modificar seu registro civil. Pretende se chamar Renato e ser tratado como homem também nos documentos. A amarra do episódio lida com sexo, gênero, sexualidade e com os preconceitos dos atores jurídicos, em especial da promotora de Justiça, que se posta raivosamente contra a alteração.

A série Psi da HBO, em segunda temporada, discute a condição humana de um psicanalista, Carlo Antonini, velho conhecido dos livros de Contardo Calligaris (O Conto do Amor e A Mulher de Vermelho e Branco), lançado nas tramas das demandas de seus pacientes, a partir da psicanálise marcada por Freud e Lacan.

Poderíamos seguir a linha de discutir as vicissitudes de quem nasceu aprisionado em um corpo que desmente sua certeza de homem, mas queremos rapidamente discutir o fundamento silencioso da Promotora de Justiça. Isto porque sua negativa “em nome dos interesses da sociedade” é trazida para o divã. O que se inicia com uma cantilena de Direitos Fundamentais da coletividade, baseada em exibidos princípios jurídicos, ou seja, retoricamente encadeados, encontra, na fala, um momento de impasse.

Se o sujeito é provido de inconsciente e eventualmente ele ocupa um lugar jurídico, conseguiria se livrar de suas neuroses no momento de julgar, enfim, de decidir. Poderia ele, no exercício de sua função, simplesmente acreditar que seu desejo não comparece na fusão de horizontes do momento da decisão? Deixar de lado a problemática de um sujeito do Direito que não deseja sempre foi a saída da teoria da decisão que acredita em indivíduos conscientes. No caso, Contardo Calligaris nos convida a ir além e compreender que no ato de enunciação (dizer o Direito), algo do sujeito e que ele não dá conta, comparece. Em todo o caso, todavia, cobra uma responsabilidade.

É o caso da promotora de Justiça que descobre que sua negativa, tão ferrenha, contra o pedido de Renato, encontra na sua adolescência um fato marcante. Seu pai separa-se de sua mãe para viver com outro homem. O preço que seu pai pagou para ser fiel ao seu desejo gera efeitos em terceiros, não só a ex-mulher, mas principalmente na filha. Enfim, pode não ter produzido efeitos em outras manifestações ministeriais, mas naquela, a posição de dizer não estava circunscrita à normatividade que os autos indicavam. Escondido no interesse público, quem sabe, esgueirava-se uma possibilidade de, no outro, promover um acerto de contas. Não com Renato, mas com o pai.

E a promotora queria ser coerente com o que pensava. Era de princípios, como dizia. Entretanto, para além das premissas de sua ordem de pensar, algo de seu trilhamento pessoal roubava a cena e modificava a conclusão. No caso narrado pela série Psi, ao final, por intervenção do analista, acaba se dando conta de que não pode julgar o mundo a partir de seus fantasmas nem de seus dilemas adolescentes. O acerto de contas não se dá com o jurisdicionado. Sorte de Renato. Mas quantos outros são depositários de algo que o sujeito não sabe, mas que opera.

Daí que deixamos o leitor convidado a pensar até que ponto o diálogo do Direito com a Psicanálise pode nos auxiliar a entender que muitas vezes no exercício de funções jurídicas, exibindo princípios e fortemente defensores da coletividade, da ordem e da moral, escondem-se desejos inconfessáveis.

Não se trata de psicanalisar o Direito, como incessantemente o Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR, coordenado por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, do qual fazemos parte, insiste. De qualquer forma, o convite para pensar as motivações dos sujeitos por caminhos do desejo, quem sabe possa nos abrir novas perspectivas subjetivas. Acreditar na decisão objetiva e sem desejo é o mecanismo de defesa de uma teoria da decisão imaginária e que manca na primeira questão que toca o sujeito. E isso acontece muito mais do que imaginamos. Ou não?

Vale terminar com Contardo Callligaris: “Uma possível moral da história é que a vontade ou necessidade de parecermos inteligentes ou poderosos nos torna estúpidos e desvenda nossa fraqueza e nossa vaidade. (…) a impostura é uma condição trivial e necessária da vida social. Os melhores conhecem a sua impostura e sabem que não estão à altura de sua máscara. Os piores se identificam com a sua máscara. Acreditar nas máscaras que vestimos é um delírio que nos torna perigosos.”[1] Boa semana.


[1] CALLIGARIS, Contardo. Todos os Reis estão nus. São Paulo: Três Estrelas, 2013, p. 20.

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