Justiça Tributária

Somente insanos julgam seus próprios atos

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

30 de março de 2015, 9h27

Spacca
Raul Haidar [Spacca]As repartições públicas que se destinam a julgar atos praticados por seus próprios servidores, relacionados com lançamentos tributários, já não atendem mais as necessidades do nosso povo. Devem ser extintas.

Nossa Constituição, em seu preâmbulo, diz que o nosso estado democrático está

“…destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias…”

Tais direitos e princípios não podem outorgar a repartições, organismos, conselhos ou quaisquer órgãos de julgamento, ainda que sob o rótulo de “tribunais”, poderes para julgar e ao final tornar líquidas e certas e assim passíveis de execução, supostas dívidas tributárias ou administrativas, resultantes de lançamentos, mesmo que derivados de acessórios como multas ou sanções de qualquer espécie.

Tais procedimentos podem colocar em risco o patrimônio e a liberdade de qualquer pessoa, o que não pode ser ameaçado por mecanismos burocráticos comandados por servidores públicos que não estejam comprometidos com o julgamento, onde garantias constitucionais sejam absolutamente ignoradas.  

Esses “julgamentos” muitas vezes podem ser verdadeiras farsas e,  pior ainda, com a participação de supostos representantes de contribuintes, indicados de forma desconhecida.

Nesta semana teve grande repercussão notícia de que no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais  (Carf) teriam ocorrido atos ilícitos  de grande expressão, envolvendo algumas empresas, ao que consta com a participação (leia-se cumplicidade) de escritórios de advocacia, servidores, conselheiros e até ex-conselheiros!

Também não faz muito tempo que problemas similares ocorreram na Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, de cujo órgão de julgamento administrativo, o tribunal de impostos e taxas (penso que as  maiúsculas destinam-se apenas aos que integram o Poder Judiciário) alguns juízes tiveram de ser afastados em virtude de fraudes. Também em São Paulo, é recente o caso chamado “máfia do ISS”.

Apesar disso tudo, escândalos na área tributária não são tão comuns e por isso mesmo nos obrigam a uma reflexão mais profunda. Uma coisa é  certa: a maioria esmagadora dos servidores públicos, seja da União, dos Estados ou dos Municípios, é composta de pessoas sérias, éticas, cumpridoras de seus deveres. Isso também ocorre na Advocacia.

Descoberto o escândalo, o assunto deve ser tratado pelas autoridades disso encarregadas: polícia, MP e Judiciário. E podemos também confiar no povo: tem muita gente de olho nisso! Já não contamos só com a imprensa. Viva a internet!

Não podemos esquecer que corrupção é crime de duas vias, com bandidos em ambas as direções. Com mais de 40 anos de advocacia, jamais fui convidado a participar de qualquer ato dessa natureza e também nunca sugeri nada a respeito.

Como se dizia antigamente: quando um  não quer, dois não brigam.

Costuma-se dizer que a corrupção está no Brasil desde Cabral. Se assim é, notícias a respeito não deveriam chamar tanto a nossa atenção. Se a notícia existe como tal, o fato talvez não seja tão comum.

Por exemplo: em determinado processo administrativo na OAB estudava-se acionar órgão da imprensa que fizera reportagem sobre uma advogada detida em flagrante ao furtar mercadoria numa loja. Afirmava-se que a matéria era ofensiva e fazia escândalo desnecessário. A proposta foi arquivada com um argumento jornalístico: era apenas uma notícia, não uma ofensa. E mais: era bom que isso fosse noticiado, pois notícia é quando o homem morde o cachorro, não o contrário. Tratava-se, pois, de ato inusitado, daí a atenção da imprensa. Pior seria se o fato fosse totalmente ignorado: isso poderia indicar que é tão comum e banal que advogados furtem, que já deixou de ser notícia!

A manutenção de órgãos encarregados de julgar atos da administração, decorrentes de suas relações com terceiros, precisa ser repensada. Por certo devem permanecer as corregedorias e auditorias, necessárias à fiscalização interna e ao controle da disciplina dos servidores. Mas julgamentos tributários e de infrações diversas, devem ser feitos com a independência e a imparcialidade que só se vê numa decisão amparada pelo judiciário.

Nas notícias envolvendo o Carf mencionou-se que mais de 90% dos processos são julgados contra os contribuintes e que em caso de desempate quem decide é o presidente da turma, quase sempre um representante do fisco. Ou seja: é julgamento para condenar, não para fazer justiça. Na dúvida, contra o réu!

Esgotada a esfera administrativa, se não aconteceu o milagre dos menos de 10% e o valor for expressivo, o contribuinte pode estar liquidado. Vem a execução fiscal e com ela o bloqueio de ativos financeiros, inscrição no Cadin, na Serasa, enfim, o empresário vira um pária!  Mesmo que tenha razão, já entra no Judiciário prejudicado. Se a questão for estadual, as custas iniciais podem ultrapassar 1% do valor da casa e o pagamento é antecipado.

Outro problema sério: se a empresa deseja participar de uma licitação ou concorrência poderá ficar impossibilitada, pela ausência de certidão negativa. Aliás, isso é outra asneira que deveria ser extinta. Se uma empresa quer inscrever-se numa concorrência, bastaria fornecer o numero de seu CNPJ. A repartição tem acesso imediato a todos os cadastros da empresa, em tempo real. Basta que ela mesma se encarregue disso, evitando-se assim os tumultos que possam ter origem na entrega de documentos fraudados.

Nesses julgamentos administrativos não podemos nos esquecer dos feitos por agências reguladoras (Anatel, ANP, Inmetro etc) ou quaisquer organismos similares. Tais entidades podem emitir  certidões de divida ativa, que criam os problemas já mencionados.

Quando houver conflito de interesse que envolva de um lado uma pessoa jurídica de direito público, repartição, entidade, empresa ou órgão público e, de outro,  qualquer pessoa de direito privado, seja pessoa jurídica ou natural, somente pode ele ser julgado por juízo especializado em causas de direito público, integrante do Poder Judiciário, assegurados às partes todos os meios de prova previstos na Constituição. Só assim será possível obter  a igualdade “e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.”

Também é inadmissível que as autoridades fazendárias não mantenham adequado controle sobre o funcionamento e também sobre as pessoas que exercem atividades nesses órgãos.

Nos casos que vieram a público há notícias de pessoas que ostentavam padrão de vida incompatível com seus rendimentos e em alguns casos enorme quantidade de valiosos imóveis. Ninguém viu isso? Os servidores não entregam anualmente cópia de suas declarações de bens a alguém? Afinal: ninguém controla o pessoal que cuida da arrecadação? São os chefes insanos? 

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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