Tributo a Nelson Carneiro: a luta e a batalha do divórcio (parte 2)
15 de junho de 2015, 8h00
É de clareza cristalina que o homenageado olhava a família do Século XX, que antes da edição do Estatuto da Mulher Casada[2] era tratada como fora a do Século XIX, com olhos voltados ao Século XXI. Se é verdade que a Lei 4.121 de 1962 tirou a mulher da situação de submissão e inferioridade que lhe atribuiu o Código Civil de 1916, não logrou o diploma a completa equiparação entre cônjuges em seus direitos e deveres. O art. 233 do Código Civil então vigente continuava a proclamar que “o marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos”.
Foi somente em 1988 que, definitivamente, prevaleceu o entendimento de Nelson Carneiro e o artigo 226 da Constituição proclamou, em sue parágrafo 5º, que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
A luta pelo divórcio foi uma luta pela e decorrente da emancipação da mulher como cidadã. O divórcio foi a garantia necessária da possibilidade de libertação da mulher do jugo do marido, sem que, com isso, sua possibilidade de felicidade estivesse comprometida para todo o sempre.
Nada mais fácil para um país machista que a manutenção da esposa sob o poder marital, sem lhe dar a possibilidade de criação de um novo núcleo conjugal em caso de falência do casamento.
Assim, uma primeira motivação que se percebe na luta pró-divórcio foi a garantia de emancipação completa da mulher, cujo grande passo inicial se deu em 1962.
É claro que “a felicidade conjugal é o objetivo de quantos se casam”[3]. Mas se esta não vem ou acaba? Haveria alguma razão de ordem jurídica para se permitir o “casamento” de pessoas desquitadas?
Também responde estas perguntas Silvio Rodrigues: “enquanto na minha mocidade os casos de casamentos de desquitados eram menos frequentes e suscitavam algum reparo, multiplicando-se as hipóteses de casamento no estrangeiro para dourar as aparências, em minha idade madura o quadro é inteiramente diverso. (…) E a ideia de se casar com mulher ou homem desquitado se apresenta com a maior naturalidade aos espíritos das gerações mais novas. Isso no passado não era assim correntio e principalmente a moça solteira via com muita reserva e não pouco receio a perspectiva de enlace com um homem desquitado”.[4]
Silvio Rodrigues nasceu em 1º de março de 1917[5] e, portanto, sua mocidade se passou nos anos de 1930, 1940. É compreensível a inquietação do professor quanto à mudança de costumes. Contudo, apesar disto, não deixa o autor de reconhecer que “foram tamanhas as modificações ocorridas no entretempo, que a moral comum evoluiu”.[6]. Note-se que ao optar pelo verbo “evoluir”, entende Silvio Rodrigues que a situação da moral mudou para melhor.
Uma segunda motivação na batalha pelo divórcio é o reconhecimento de que a indissolubilidade do casamento, já na década de 1970, se afastava dos anseios sociais e que a mudança da lei seria a efetivação da mudança social.
Como lembrava em 1978 Silvio Rodrigues, sem entrar em cogitações filosóficas, um fato objetivo parece inescondível: ninguém pode manter unidos casais infelizes, que, para fugirem à desdita de permanecerem sob o mesmo teto, encontram sempre abertas as portas da separação, quer através da mera separação de fato, quer do desquite.[7]
Outra questão que salta aos olhos é que o fato de o Brasil não permitir o divórcio, na realidade, não impedia que as pessoas simplesmente terminassem a comunhão plena de vidas, por meio da separação fática, constituindo novo núcleo familiar. Nestes casos, com a separação de fato, o regime jurídico vigente entendia haver uma situação de concubinato.
A situação destes casais que estavam unidos de fato, mas impedidos de se casar em razão da indissolubilidade do vínculo, era, no mínimo, constrangedora. De início, a família era chamada de ilegítima e assim sendo, desta relação, nenhum direito ou obrigação decorreria. Os filhos também eram considerados ilegítimos na modalidade “adulterinos”. Tais famílias, então, eram constituídas em pecado.
Acrescente-se, ainda, que de início, o casamento de direito prevalecia sobre a união de fato, razão pela qual ainda que o sujeito fosse desquitado há décadas, e em tais anos houvesse constituído nova família, a esposa mantinha a condição de herdeira e recolhia os benefícios previdenciários. Aquela então designada concubina nenhum direito receberia e tinha que se contentar com seu status de amázia.
A afirmação de Monsenhor Arruda Câmara aos projetos de Nelson Carneiro é ilustrativa da situação destas famílias ilegítimas: “[8]Sua Excelência é um autêntico revolucionário em matéria de Direito de Família. Ora pugna tenazmente pela equiparação dos espúrios à família legítima (projetos 194 e 825); ora bate-se pela oficialização do concubinato, buscando atribuir à companheira direitos até agora atribuídos à esposa legítima (projeto 122); ora visa equiparar juridicamente a mulher casada ao marido, o que liquida a relativa dependência ou incapacidade dela…”
Em resumo, uma terceira motivação na luta pelo divórcio era a possibilidade de retirar das famílias constituídas de fato, em decorrência da impossibilidade de dissolução do vínculo conjugal, a pecha de ilegítimas, concedendo-se direitos a pessoas que, anteriormente, eram ignoradas pelo sistema jurídico.
Sobre o tema da ilegitimidade das uniões e dos filhos delas advindos, no debate ocorrido em 24 de abril de 1962, Monsenhor Arruda Câmara indagou Nelson Carneiro se ele considerava filhos ilegítimos os filhos de pessoas casadas no religioso[9]. Depende do casamento religioso, responde o deputado, se registrados civilmente são legítimos, mas os filhos do casamento religioso sem efeitos civis são ilegítimos e diante da lei civil em 1940 existiam 2 milhões de uniões ilegítimas.
A reação de Monsenhor Arruda Câmara foi imediata: “V. Exa. fala em filhos ilegítimos como se fossem filhos do amor livre!” e “V. Exa. procura fazer confusão como se o Brasil fosse um hospital de prostituição!.”
Esta era uma faceta da sociedade brasileira na fase pré-divórcio. Uniões ilegítimas e à margem da lei que eram ignoradas pela legislação vigente.
Em se tratando da visão do divórcio sob a ótica dos anti-divorcistas, os argumentos são todos calcados em uma noção religiosa de família. Contudo, os argumentos muitas vezes vinham dissociados desta questão.
Quando da discussão do Projeto 786 em 10 de julho de 1951, que pretendia aumentar as hipóteses de anulação de casamento e que Monsenhor Arruda Câmara chamava de camuflagens, eufemismo de divórcio branco, ou divórcio em contrabando[10], um argumento foi trazido para que se repudiasse o divórcio: o quantitativo.
Conforme contou o Deputado Oscar Carneiro, pernambucano, “recebi, de quase todos os municípios de meu Estado (…) reiterados pedidos, apelos que posso considerar mesmo frementes, no sentido de combatermos este projeto, porque nada mais é que um divórcio disfarçado. Consequentemente eu adiro ao ponto de vista de V. Exa., concordo com o ponto de vista de V. Exa. E combaterei este projeto, tanto quanto me seja possível.”. Em corroboração, afirma Monsenhor Arruda Câmara: “É a opinião nacional, contrária ao divórcio, na qual Ruy Barbosa encontrava o maior argumento contra sua decretação.[11]
Uma primeira razão para que não se permitisse o divórcio, portanto, era a quantitativa, ou seja, o divórcio era repudiado pela sociedade brasileira.
Ainda, a todas as tentativas de reforma do texto do Código Civil, os anti-divorcistas retomavam o dispositivo constitucional pelo qual o casamento era indissolúvel e, portanto, a mudança da lei ordinária seria inconstitucional. Assim, afirma Monsenhor Arruda Câmara que “não vejo como o possa negar quem examinar a questão com sinceridade, calma e boa-fé. Fosse esse projeto convertido em lei, que valeria a indissolubilidade no texto da Constituição?”[12]
Um segundo forte argumento, então, era que sem a mudança da Constituição então vigente qualquer iniciativa divorcista seria inconstitucional.
Este forte argumento de cunho eminentemente jurídico foi suficiente para, por décadas, se impedir a aprovação de qualquer forma de divórcio no Brasil.
Outros argumentos de cunho social se sucediam. Monsenhor Arruda Câmara se perguntava, na Sessão de 16 de agosto de 1951, ao se debater na Câmara dos Deputados o projeto 786/1951: “será que o divórcio torna felizes os cônjuges?”. E ele mesmo respondia que a experiência e a lição de outros povos dizem que não[13].
Os dados compilados por Monsenhor Arruda Câmara são impressionantes, já a lógica não nos parece muito clara. Segundo ele, com o divórcio é muito maior o número de suicídios, de casos de loucura e prostituição. Transformamos em uma tabela os dados para facilitar sua compreensão:[14]
|
Saxônia |
Hungria |
Baviera |
Wurtemberg |
São Francisco (EUA) |
Califórnia (EUA) |
---|---|---|---|---|---|---|
Suicídio cometido por casados |
200 |
386 sobre 1 milhão |
|
|
430 sobre 1 milhão |
610 sobre 1 milhão |
Suicídio cometido por divorciados |
904 |
2.181 sobre 1 milhão |
|
|
1.090 sobre 1 milhão |
1.840 sobre 1 milhão |
Loucura em casados |
115 sobre 100 mil |
|
283 sobre 100 mil |
120 sobre 100 mil |
|
|
Loucura em divorciados |
1.144 sobre 100 mil |
|
2.994 sobre 100 mil |
1.144 sobre 100 mil |
|
|
Meretrizes em Viena |
Solteiras |
Casadas |
Divorciadas |
---|---|---|---|
1939 |
384 |
2 |
150 |
1941 |
389 |
2 |
165 |
1942 |
306 |
– |
162 |
As conclusões de Monsenhor Arruda Câmara trazem, então, um terceiro argumento contra o divórcio: “as estatísticas, pois, demonstram que os divorciados não são mais felizes, pois é muito maior entre eles, do que de casados, o número dos que se desesperam e põe temo à vida. A morte, a loucura o suicídio, mais numerosos entre os divorciados, não são índices de felicidade. [15]”
A conclusão é tão desprovida de senso, que não merece comentários. Uma correlação direta entre casamento e divórcio, com suicídio e loucura, de maneira singela e sem qualquer aprofundamento teórico, beira a má-fé na defesa de uma tese, cuja paixão definitivamente cega a razão.
Pode parecer bizarra tal afirmação nos dias de hoje, mas se pensarmos o impacto que tal estatística causa, pode-se imaginar que certa parte da população realmente tenha acreditado que o divórcio seria a causa de todos estes males, ou a aprovação do divórcio equivaleria a uma verdadeira caixa de Pandora[16].
Além das “impressionantes estatísticas”, outro argumento contra o divórcio e que vem das lições de Clóvis Beviláqua é que “aquele que se divorcia vai constituir novas famílias, e naturalmente, há de se levar o germe do divórcio para essas novas famílias que for constituindo. Desse modo, em vez de termos simplesmente um casal infeliz, teremos dois, três, quatro e mais segundo as circunstâncias o permitirem”.[17]
Então, note-se que o divórcio, utilizado como um quarto argumento contra o divórcio é que, este, como verdadeiro vírus ou bactéria, se espalharia de maneira incontrolável pela sociedade, contaminando as famílias e levando muitas pessoas à infelicidade. Haveria verdadeira progressão geométrica de infelicidade que acabaria por atingir a totalidade da população?
O quinto e grave argumento apresentado para não se permitir o nefasto instituto do divórcio no Brasil, diz respeito à diminuição do nascimento de crianças nas famílias. Nas palavras de Victor Hugo, isto era uma das coisas mais tristes do mundo: une maison sans enfant. O fim principal do casamento, segundo Monsenhor Arruda Câmara, é a criação e educação da prole e em suas palavras[18]:
O divórcio é o cupim destruidor destes dois objetivos. O divórcio elimina a prole. Sua tendência negativista pugna por impedir que venham à luz os frutos naturais do matrimônio. O filho pede uma casa com futuro garantido. A mobilidade e a precariedade da união conjugal dissolúvel, repele todo ser que constitui óbice a esse dinamismo conjugal. O filho é uma travanca indesejável, em lar que pode se dissolver amanhã.
Os argumentos revelaram-se infundados com o passar das décadas. A população cresceu enormemente e não parou de crescer quando, no final da década de 1970, aprovou-se o divórcio. Vejamos os dados do IBGE sobre o tema:[19].
Ano |
População do Brasil |
---|---|
1940 |
41.236.6315 |
1950 |
51.944.397 |
1960 |
70.070.457 |
1970 |
93.139.037 |
1980 |
119.002.706 |
1991 |
146.825.475 |
1996 |
157.07.0163 |
2000 |
169.590.693 |
[1] A luta…, p 21.
[2] Esta lei, aliás, também fruto do trabalho de Nelson Carneiro.
[3] A luta…, p. 21.
[4] O divórcio…, p. 9.
[5] Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Silvio_Rodrigues consultado em 24 de setembro de 2010.
[6] O divórcio…, p 9.
[7] . O divórcio e a lei que o regulamenta, Saraiva, 1978, p. 8
[8] A batalha…, p. 19.
[9] A luta…, p. 150.
[10] A batalha…, 18.
[11] A batalha…, p. 18.
[12] A batalha…, p. 20.
[13] A batalha…, p. 42.
[14] A batalha…, p. 42/52.
[15] A batalha…, p. 42.
[16] A expressão faz referência à lenda grega de Pandora. Segunda a lenda, Pandora foi enviada a Epimeteu, a quem Prometeu (o Titã que revelou o segredo do fogo à humanidade) recomendara que não recebesse nenhum presente dos deuses. Vendo-lhe a radiante beleza, Epimeteu esqueceu quanto lhe fora dito pelo irmão e a tomou como esposa. Ora, tinha Epimeteu em seu poder uma caixa que outrora lhe haviam dado os deuses, que continha todos os males. Avisou a mulher que não a abrisse. Pandora não resistiu à curiosidade. Abriu-a e os males escaparam. Por mais depressa que providenciasse fechá-la, somente conservou um único bem, a esperança. E dali em diante, foram os homens afligidos por todos os males (http://pt.wikipedia.org/wiki/Pandora – visita em 1 de outubro de 2010)
[17] A batalha…, p. 44.
[18] A batalha…, p. 44.
[19] Site http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/sinopse_preliminar/Censo2000sinopse.pdf – visita em 1 de outubro de 2010.
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