Juiz justiceiro

"Discurso apaixonado contaminou instituições", diz Andrei Zenkner Schmidt

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13 de junho de 2015, 7h02

Spacca
O advogado Andrei Zenkner Schmidt já está mais do que acostumado a bater de frente com os abusos cometidos pelo aparelho investigatório estatal. E até por isso, também está acostumado a ver a opinião pública confundir a pessoa do advogado com a do réu. Como se o advogado defendesse o réu por concordar com o cometimento de crimes.

"Acostumado" é um eufemismo. Zenkner já espera essa reação. Principalmente quando há movimentação processual nos casos de seu cliente mais célebre: Daniel Dantas. Sediado em Porto Alegre, Zenkner não faz parte do famoso clube de criminalistas da Brasília. Mas assumiu papel importante no noticiário nacional na época das investigações da operação satiagraha.

O que a Polícia Federal dizia que investigava eram crimes financeiros cometidos pelo banco Opportunity; a operação, entretanto, se transformou num case midiático e foi derrubada pelo Superior Tribunal de Justiça por conta das inúmeras ilegalidades cometidas pela PF, pelo Ministério Público Federal e até pela Justiça Federal.

Mas o movimento que Zenkner observa é que o discurso apaixonado de combate à criminalidade penetrou o Judiciário. Esta semana, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu que a fase de discussão de recebimento da denúncia não comporta a ampla defesa. E um dos desembargadores disse que quem aponta erros da investigação “tem interesse no encobrimento da criminalidade”. Zenkner é o advogado do caso.

A conclusão dele é que, “gradativamente, esse grito emotivo está contaminando instituições que têm por missão conter a vingança privada e o arbítrio do Estado”. Conforme atesta em entrevista à revista Consultor Jurídico, “mais do que nunca, nós, advogados criminalistas, somos ofendidos por buscarmos respeito às regras do jogo processual”.

Leia a entrevista:

ConJur — Tem crescido no Judiciário a ideia de que passar por cima de regras processuais é “beneficiar a sociedade em detrimento do réu”. O que acha disso?
Andrei Zenkner Schmidt — Há alguns meses, presenciamos a entrevista da delegada que investigou o atropelamento de um ciclista na Avenida Paulista, em São Paulo. Ela interrompeu a entrevista emocionada, chorando, comovida porque a vítima teve o braço amputado. Em outro episódio semelhante, relacionado à morte do menino Bernardo em Frederico Westphalen (RS), a autoridade policial responsável pelo inquérito foi filmada no velório do menino, aos prantos, abraçada à avó da criança. Esses episódios retratam bem a atual passionalização do poder punitivo. Personagens das agências penais, que deveriam atuar com o devido distanciamento dos fatos, deixam-se contaminar pelo clamor social diante da sensação geral de insegurança, cada vez mais explorada midiaticamente. Esses são bons exemplos de o Estado chorar na repressão de crimes, manejando o arsenal do poder punitivo de forma emotiva e não distanciada. O recente acórdão do TJ-RS, noticiado pela ConJur, é apenas mais um retrato dessa dura realidade que atravessamos.

ConJur — Ali a discussão foi sobre a arguição de nulidades que afetam toda a investigação, não foi?
Andrei Zenkner — 
Não pretendo discutir aqui o mérito das teses que eu e meus sócios [Bruna Lima e Tapir Rocha Neto] levantamos naquele processo. Ao contrário do que constou da decisão, jamais alegamos a nulidade do encontro fortuito de uma arma de fogo na execução da busca e apreensão (é sintomático, aliás, negarem algo que sequer foi pedido). Debatemos, isso sim, a nulidade da busca e apreensão por ausência de fundamentação. E também destacamos, além de outros vícios (como interceptação telemática retroativa a 10 anos), que diversas provas produzidas pela investigação do Ministério Público não foram disponibilizadas à defesa. Ora, não é possível exercer o contraditório, ainda que no momento do recebimento de uma denúncia, se a integralidade da investigação não foi franqueada à defesa. Isso não é “teoria” alguma. Há uma Súmula Vinculante do STF dizendo isso.

ConJur — Os desembargadores pareceram chocados com o fato de o advogado defender seu cliente.
Andrei Zenkner — 
Na sessão de julgamento do TJ-RS, além de ser dito que essas preliminares não eram relevantes, foi registrada a surpresa com a postura da defesa em inventar “teses” em vez de contestar o mérito da acusação. E um dos julgadores chegou ao ponto de afirmar que a defesa que busca esse tipo de controle de legalidade estaria se consorciando com o crime. Eu só tenho a lamentar o que foi dito. É mais um exemplo do Estado chorando, agora no exercício da jurisdição. A existência do Estado de Direito se justifica exatamente em face da necessidade de controle de legalidade de atos institucionais. Os fins não justificam os meios, e ponto final. Até consigo compreender (ainda que aceitar seja outra história) que a população pense que a nulidade de uma busca e apreensão impeça a “realização da justiça”. O que eu não consigo entender é que o órgão do Estado a quem incumbe proteger todo e qualquer cidadão da vingança privada e do arbítrio estatal (e isso é Justiça, frise-se) passe a pensar exatamente como a população. O debate, que deveria ser jurídico, vira uma conversa de boteco. Isso nos faz compreender por que o advogado que se opõe à ilegalidade passa a ser visto como um inimigo, como um delinquente. Quem defende a observância de regras processuais passa a ser visto como adversário da sociedade, adversário do “bem”.

ConJur — O princípio in dubio pro societate faz sentido?
Andrei Zenkner — 
Nenhum. Onde esse suposto princípio está escrito, ou de onde ele poderia ser deduzido? Isso é muito semelhante àquela máxima futebolística de que “bola prensada é da defesa”: todos repetem, mas ninguém sabe exatamente de onde vem e o que significa. Uma denúncia só pode ser recebida diante de prova da materialidade e de indícios razoáveis de autoria. Não se trata de discutir dúvida. Dúvida vai existir sempre quando do recebimento da denúncia. Sob essa lógica, toda e qualquer denúncia pode ser recebida. O que importa é que, ou a investigação resultou no standard mínimo de prova exigido em lei para o início da ação penal, ou não resultou. E aí a acusação deve ser rejeitada. Ou os pressupostos e condições da ação penal estão satisfeitos ou não estão. Se não estão satisfeitos, conquanto pudessem estar, a dúvida não se opera a favor da sociedade. Aliás, a sociedade não deve ser protegida de acusações formuladas sem lastro probatório mínimo?

ConJur — O caminho que a maioria dessas megaoperações percorreu ao longo dos anos foi o do barulho na imprensa, condenação em primeiro grau, e definhamento quando chegam ao STJ e ao Supremo. Há disparidade entre as instâncias inferiores e as superiores?
Andrei Zenkner — 
Não creio haver disparidade. Acredito, isso sim, em compreensão da necessidade de distanciamento. Parece-me que os tribunais superiores assimilaram adequadamente a missão de defesa do ordenamento infraconstitucional (STJ) e constitucional (STF) com maior capacidade de abstração frente o caso julgado. Mas isso é uma colocação que também não pode ser generalizada, pois temos muitas decisões dos tribunais de apelação que seguem atentas ao controle de legalidade, assim como decisões dos tribunais superiores que, em alguns casos, deixam-se levar por um certo justicialismo, pela emoção. O que importa é nos darmos conta de que a gravidade de um fato investigado não justifica, por si só, a ação do Estado.

ConJur — O noticiário só permite concluir que a ideia do juiz justiceiro vem ganhando força. A figura do “magistrado cansado de tudo o que está aí” é midiática e ganha manchetes. Mas os juízes estão realmente assumindo essa postura de combate ao crime? O Judiciário tem sido mais tolerante com os excessos da acusação e mais intolerante com a defesa?
Andrei Zenkner — 
Todos estamos cansados. Todos somos contra a violência. Não sou a favor da corrupção ao defender alguém de um crime de corrupção, assim como o médico que salva a vida de um assassino não é a favor do homicídio. É interessante que profissionais da medicina, de uma maneira geral, saibam lidar com esse distanciamento e, no Direito, o mesmo não ocorra. Meu trabalho, como advogado, é lutar também pelo respeito às regras do jogo. E não vou titubear em fazer tudo o que juridicamente estiver a meu alcance para tanto. Agora, é inegável que os tempos são de contaminação do discurso jurídico pelo discurso midiático, pelos anseios dos gestores atípicos da moral. Faz parte de uma democracia a população ter a chance de gritar “basta”. O que temos presenciado é que, gradativamente, esse grito emotivo está contaminando instituições que têm por missão conter a vingança privada e o arbítrio do Estado. A função de um juiz não é promover segurança pública, esse é o ponto. O juiz que acredita nisso ou terá uma úlcera gástrica, ou sairá tiroteando, à noite, em sua moto, com bandidos.

ConJur — Recentemente o juiz federal Fausto De Sanctis publicou um artigo em que considera os advogados que apontam nulidades na condução das investigações menos competentes do que aqueles que enfrentam o mérito. É mesmo mais fácil advogar hoje em dia?
Andrei Zenkner — 
Eu li a declaração do Dr. Fausto. Ele disse que “existe uma parte de profissionais que se especializaram em nulidades”. Isso é verdade. A diferença é que alguns especializaram-se em provocá-las. Outros, em combatê-las. É missão do advogado ser um especialista em nulidades, pois é sua tarefa impor-se diante do arbítrio estatal. Todo juízo de mérito deve ser antecedido de um procedimento válido. Ou as coisas funcionam assim, ou voltaremos ao Estado medieval. Mais do que nunca, nós, advogados criminalistas, somos ofendidos por buscarmos respeito às regras do jogo processual. Quando sustentamos uma nulidade, não estamos menosprezando a defesa de mérito.

ConJur — No mesmo artigo, De Sanctis afirma que exacerbar o direito à ampla defesa leva à impunidade. O que isso diz do Judiciário? O Estado se tornou ineficiente para investigar?
Andrei Zenkner — 
Bem, se isso é certo minha profissão não se justifica mais. Quando garantias como a ampla defesa, contraditório, duplo grau de jurisdição e a não-culpabilidade passam a ser vistas como empecilhos à justiça, então já estaremos falando que outra coisa, que não de um Estado Democrático de Direito. O Estado nunca esteve tão bem aparelhado para investigar crimes. Organização, portanto, não é um atributo observado só na delinquência atual, senão também na persecução penal.

ConJur — A alegação, principalmente do MP, é que certos crimes são difíceis de provar e a única forma são essas medidas, consideradas mais eficientes.
Andrei Zenkner — 
O problema é que meios "eficientes" de investigação são mais sedutores, especialmente por aqueles agentes do Estado que possuem uma predileção por ostentar poder. São meios simplificadores. Facilitam o trabalho. Ora, por que eu teria de ouvir testemunhas ou coletar provas se eu posso imediatamente quebrar o sigilo telefônico de alguém e bisbilhotar toda a sua vida? Quando as agências penais atuam a partir dessa lógica, seguidamente atropelam desnecessariamente direitos fundamentais de quem é investigado. E, não raro, também de quem não é. O importante é termos a consciência de que medidas mais eficientes não são, só por isso, legítimas. A violação de um direito fundamental é sempre uma estratégia residual de investigação, a ser utilizada em face de situações muito peculiares. E mesmo nos casos em que ela se revele necessária e adequada, só será legítima se for observado o devido processo legal.

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