Olhar Econômico

Princípios da Haia evidenciam insegurança brasileira em contratos internacionais

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

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11 de junho de 2015, 10h10

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Todos os esforços devem ser envidados para reverter os efeitos da crise econômica e de credibilidade que assola o país. Para tanto é necessário tomar, conjuntamente, uma série de medidas. Dentre essas, há providências complexas e difíceis de serem rapidamente implementadas; além de outras, de execução relativamente simples. É lugar comum que a melhora da balança de pagamentos contribui para amenizar a crise. Por seu turno, o incremento das relações comerciais em um mercado globalizado depende de uma série de fatores, entre os quais de legislação propícia à conclusão de contratos internacionais. Contratos esses que se diferenciam dos contratos nacionais, por estarem relacionados a mais de um ordenamento jurídico e por terem alguma repercussão na economia internacional.

A atualização das regras de Direito Internacional privado brasileiro sobre contratos comerciais internacionais diminuiria o “custo Brasil”, por  contribuir para a certeza jurídica. Isso depende da vontade política do Congresso Nacional em aprovar celeremente, lei eminentemente técnica, que, consequentemente, não desperta antinomias políticas.

O Código Civil brasileiro de 1916 tinha como frontispício, lei autônoma denominada Introdução ao Código Civil, que regulava a aplicação das regras jurídicas, o direito no tempo e o direito no espaço (direito internacional privado). Era conhecida como “lei das leis” ou sobredireito, em razão de todas as demais normas jurídicas brasileiras, inclusive as constitucionais, dela dependerem para serem aplicadas. Decreto-lei de 1942, a substituiu pela Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), com a mesma estrutura, mas substancialmente pior que a antecedente. Seu artigo 11 não foi claro relativamente ao princípio do reconhecimento internacional das pessoas jurídicas; a consagradíssima regra de que “a lei do local rege a forma do ato”, reguladora dos aspectos extrínsecos das obrigações, restou apenas implícita; e a clássica diferenciação, atinente à substância dos contratos entre presentes — lei da constituição da obrigação regendo a validade e a lei do lugar da execução, a respectiva execução — não foi feita.

Pior, entretanto ocorreu com o artigo 9º da LICC, que não deixou margem às partes para a escolha da lei aplicável à substância do contrato — autonomia da vontade. O caput do artigo 13 da Introdução de 1916, embora estipulasse a lei do lugar do contrato para reger a substância contratual, abria margem para a escolha, por força da oração intercalada “salvo estipulação em contrário”. Já o taxativo artigo 9º da LICC não contemplou tal possibilidade. Assim, muito embora, o princípio da autonomia da vontade das partes em matéria de obrigação contratual tenha-se enraizado em nosso ordenamento desde o artigo 5º do Regulamento 737, de 1850, restou sem base legislativa após 1942.

Esses problemas provocaram contorcionismos doutrinários, incerteza na jurisprudência e fizeram com que vários projetos de lei substitutivos tenham florescido. O projeto Valladão, encomendado pelo governo em 1961 e entregue em 1964, foi arquivado na década de 1980. O anteprojeto dos quatro especialistas, nomeados pelo Ministério da Justiça, em 1994, transformou-se no Projeto de Lei da Câmara dos Deputados 4.905, de 1995. Na véspera de ser votado, já com parecer favorável do relator, houve a retirada para reexame pelo então ministro da Justiça! Estranhamente, quando do trabalho parlamentar concentrado que levou a aprovação do novo Código Civil, não houve preocupação com a lei introdutória, apesar de a imprensa ter chamado atenção. O Projeto de Lei do Senado 269/2004, apresentado por Pedro Simon, que retomara o projeto 4.905, com algumas atualizações, também foi arquivado. Oito anos após a entrada em vigor do Código Civil, a Lei 12.376/2010, curiosamente, preocupou-se apenas em  redenominar a lei introdutória: “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro”!

A Conferência da Haia de Direito Internacional Privado é uma organização internacional intergovernamental de que o Brasil é membro. Ela, assim como outros organismos dedicados à codificação e ao desenvolvimento progressivo do direito internacional, além de preparar anteprojetos de convenções internacionais a serem submetidos à aprovação dos Estados (hard law),  passou, também, a elaborar princípios não vinculantes (soft law), para serem utilizados como modelo para instrumentos legais nacionais, internacionais ou regionais; bem como para ajudar tribunais judiciais nacionais ou arbitrais a interpretar direito internacional privado existente, sempre no intuito de facilitar o comércio internacional. Nessa categoria se enquadram os “Princípios da Haia sobre Escolha de Lei em Matéria de Contratos Internacionais”, com 12 artigos, aprovados no corrente ano, cujo foco principal é a autonomia da vontade. Esses Princípios, como já havia feito a Convenção da Haia, de 2005, sobre os acordos de Eleição de Foro, realça a importância da autonomia da vontade. Após limitar, em seu artigo 1º, a aplicação dos Princípios aos contratos internacionais em matéria civil e comercial (excetuados os relativos ao consumo e ao direito do trabalho), coloca como regra-geral: “O contrato é regido pela lei escolhida pelas partes” (artigo 2º). A escolha pode recair sobre regras jurídicas aceitas universal ou regionalmente (artigo 3º), podendo a lei escolhida ser aplicada a todo ou parte do contrato (dépeçage) e ser modificada a qualquer tempo (artigo 2º). A escolha tácita somente é possível se a vontade defluir claramente das cláusulas ou das circunstâncias do contrato (artigo 4º). O artigo 11 trata de limitações decorrentes da ordem pública do foro. É grande a semelhança dos princípios com o disposto no projeto 4.905/94, acima citado.

Aos contratos internacionais podem, em tese, ser aplicáveis regras oriundas de tratados internacionais, quer disponham sobre normas substantivas ou de escolha de lei; normas originárias da prática de corporações comerciais dedicadas a segmentos específicos (nova lex mercatoria); bem como legislações de Estados, que tenham relacionamento com o contrato. Mesmo sendo usual que os contratos internacionais entreguem a solução de controvérsias para a arbitragem, nunca é possível exorcizar absolutamente o direito, nem o judiciário internos. Daí a permanente influência do direito interno nos contratos comerciais internacionais e a necessidade de que um país possua direito interno amigável a tais contratos. Em nosso hemisfério, o Chile é bom exemplo de Estado, que se vem beneficiando por possuir direito interno adequado ao comércio internacional. Por seu turno, nosso país é o mais retrógrado, possuindo uma Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, cuja estrutura remonta ao Código Civil alemão de 1896 (utilizada por Clóvis Bevilacqua em seu projeto de 1899); e cuja substância retrocedeu em 1942.

Os direitos internos dos Estados, as organizações regionais de integração econômica e as organizações internacionais empenhadas na codificação e no desenvolvimento do direito internacional, há mais de setenta anos, vem-se modernizando, no intuito de facilitar o comércio internacional. Os princípios da Haia de 2015 não fizeram mais do que entronizar, definitivamente, o princípio do respeito à autonomia da vontade das partes, já largamente aceito. Ao fazê-lo, realçaram, mais uma vez, o incrível atraso do direito brasileiro. Resta instar que o Congresso Nacional saia, imediatamente, de sua letargia nesse tocante e volte a considerar, seriamente, a necessidade de atualizar aspecto tão importante da legislação, que, possui efeito multiplicativo em todas as leis brasileiras. Contribuindo, assim, para aumentar as condições para que o país possa emergir da presente recessão.

Autores

  • é decano dos professores titulares da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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