STF reabre discussão sobre direito adquirido a teto remuneratório
11 de junho de 2015, 8h03
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal revisitou a matéria, sob a sistemática da repercussão geral, no julgamento do RE 609.381/GO — e não deixou, a bem da verdade, de colocar novos ingredientes na discussão.
Neste breve ensaio apresentar-se-á a evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre aplicabilidade dos tetos de remuneração, revelando, ao final, que uma das questões mais sensíveis ali discutidas relaciona-se com o espectro e os limites do poder reforma da Constituição em face dos direitos adquiridos.
1.Teto remuneratório na redação originária da Constituição
O teto remuneratório do funcionalismo público brasileiro foi tratado no artigo 37, XI, do corpo permanente da Constituição da República, cuja redação originária previa a possibilidade de o legislador ordinário (de cada unidade federativa) fixar limites remuneratórios de seus servidores (subtetos), obedecidos os patamares prescritos pela Constituição.
A compatibilização desse teto com as percepções remuneratórias havidas antes da vigência da Constituição de 1988 encontrava-se no artigo 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que determinou a imediata redução das remunerações superiores aos limites expressos no texto constitucional. Dispôs o preceito transitório:
Art. 17. Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título.
O que se esperava dessa regra transitória era a imediata das reduções superiores aos tetos presentes na Constituição que logo após a sua promulgação: as remunerações excedentes aos tetos seriam decotadas no que lhes sobejassem, a fim de criar patamares uniformes e compatíveis com o desejo do constituinte e do legislador nas diversas esferas federativas.
Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a ADI 14, relatada pelo ministro Célio Borja, entendeu que vantagens de caráter individual e pessoal percebidas pelos servidores estavam alheias à incidência dos tetos remuneratórios descritos (art. 37, XI, CF), decidindo, portanto, que “os tetos remuneratórios não abrangiam adicionais por tempo de serviço, quintos, apostilamento ou estabilidade financeira, adicional de aposentadoria, gratificação de gabinete ou função, considerados todos vantagens de caráter pessoal.”[1]
A interpretação da Suprema Corte obstou a aplicação do artigo 17 do ADCT, culminando, quase dez anos depois, com a primeira alteração do preceito do artigo 37, XI, que restou levada a efeito pela Emenda Constitucional nº 19/98 (EC 19/98).
2. Teto remuneratório na Emenda Constitucional 19/98
A EC 19/98 inovou o artigo 37, XI da Constituição, estabelecendo a submissão de todos os servidores públicos, de todas as esferas, ao valor correspondente ao subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Contudo, como o estabelecimento deste subsídio dependia de lei, de iniciativa conjunta dos três Poderes (artigo 48, XV da Constituição, também incluído pela EC 19/98), o STF firmou o entendimento de que o teto previsto no artigo 37, XI (com a redação dada pela EC 19/98) não seria autoaplicável, permanecendo válida, dessa forma, a interpretação construída sob a égide da redação originária. Nada mudou!
3. Teto remuneratório na Emenda Constitucional 41/03
a) MS 24.875/DF
Antes mesmo que sobredita regulamentação viesse à baila, sobreveio a Emenda Constitucional 41/2003, que novamente alterou a redação do artigo 37, XI, passando a dispor:
Art. 37 […]
XI – a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos;
O novo teto teve sua aplicabilidade rapidamente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal[2], incidindo sobre quaisquer verbas remuneratórias percebidas pelos servidores públicos, incluídas as vantagens pessoais e outras de caráter remuneratório. A única exceção — que se supunha fosse perdurar — decorreria do princípio da irredutibilidade dos vencimentos (modalidade típica de direito adquirido), somente para aqueles servidores que, em 31 de dezembro de 2003 (data da entrada em vigor da EC 41/03), já percebessem valores financeiros superiores ao teto, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do MS 24.875, relatado pelo ministro Sepúlveda Pertence.[3]
Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade de votos, reconheceu que o artigo 8º da EC 41/2003 determinava a absorção (e consequente extinção), pelo subsídio/provento, dos adicionais por tempo de serviço, e que, na esteira de sua jurisprudência, inexistia direito adquirido a determinada fórmula de composição remuneratória. Garantiu assim que o montante percebido pelos servidores acima do teto permanecesse “congelado”, sem acréscimos, até sua absorção completa pelos aumentos sucessivos no novo teto.
b) RE 609.381/GO (com repercussão geral)
No entanto, com as mudanças na composição do Plenário do STF, verificou-se, em 02 de outubro de 2014, o julgamento do RE 609.381/GO, relatado pelo ministro Teori Zavascki, oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal revisitou a questão, alterando seu entendimento sobre o assunto. Assentou a Suprema Corte que a incidência do teto remuneratório da EC 41/03 é imediata e sem ressalvas, atingindo quaisquer valores além do limite, sem que haja violação da irredutibilidade de vencimentos/direito adquirido ao montante estipendial. Nos termos do Acórdão do STF:
1. O teto de retribuição estabelecido pela EC 41/2003 é de eficácia imediata, e submete às referências de valor máximo nele discriminadas todas as verbas de natureza remuneratória percebidas pelos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ainda que adquiridas de acordo com regime legal anterior. 2. A observância da norma de teto de retribuição representa verdadeira condição de legitimidade para o pagamento remunerações no serviço público. Os valores que ultrapassam os limites pré-estabelecidos para cada nível federativo na Constituição Federal constituem excesso cujo pagamento não pode ser reclamado com amparo na garantia da irredutibilidade de vencimentos. 3. A incidência da regra constitucional da irredutibilidade exige a presença cumulativa de pelo menos dois requisitos: (a) que o padrão remuneratório nominal tenha sido obtido conforme o direito, e não de maneira ilícita, ainda que por equívoco da Administração Pública; e (b) que o padrão remuneratório nominal esteja compreendido dentro do limite máximo pré-definido pela Constituição Federal. O pagamento de remunerações superiores aos tetos de retribuição de cada um dos níveis federativos traduz exemplo de violação qualificada no texto constitucional.
Como se vê, o Supremo Tribunal Federal foi além da sua orientação anterior, admitindo a tese (rechaçada de maneira generalizada pela doutrina), de que emendas à Constituição podem tocar o direito adquirido (pelo menos quando o constituinte originário de alguma maneira tenha aludido ao tema). Do ponto de vista prático, mesmo que não se concorde com essa posição, quaisquer remunerações de servidores (ativos, inativos, pensionistas), que recebam valores superiores aos tetos previstos no artigo 37, XI da Constituição sofrem a sua incidência, fazendo cessar a percepção de excessos a qualquer título, salvo quando se tratar de parcelas de natureza indenizatória previstas em lei (parágrafo 11º do artigo 37 da Constituição), bem como os auxílios estendidos para determinadas categorias por decisões judiciais.
Conclusão
Em suma, o que se vê nas entrelinhas do novo entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre teto remuneratório é o seguinte:
a) Não é inconstitucional o artigo 9º da Emenda Constitucional 41/03, que ressuscita o artigo 17 do ADCT da Constituição em sua redação originária;
b) O constituinte reformador pode determinar a redução de vencimentos e vantagens dos servidores públicos ao montante do teto (artigo 37, XI), porque o comando constitucional próprio, embora fulminado pela interpretação primitiva do Supremo Tribunal Federal, admite “revigoramento” via emenda constitucional;
c) O precedente abre caminho para divergências e reascende a discussão sobre a intangibilidade do direito adquirido e os limites do poder de emenda à Constituição.
[1] DI PIETRO, Maria Sylvia, MOTTA, Fabrício, FERRAZ, Luciano. Servidores Públicos na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 124 et. seq.
[2] No âmbito do STF, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que, após a EC 41/2003, as vantagens pessoais, de qualquer espécie, devem ser incluídas no redutor do teto remuneratório, previsto no inciso XI do art. <37> da CF." (RE 464.876-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 16-12-2008, Primeira Turma, DJE de 20-2-2009.) No mesmo sentido: RE 471.070-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 31-3-2009, Segunda Turma, DJE de 24-4-2009. Vide: AI 339.636-AgR, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 16-10-2001, Primeira Turma, DJ de 14-12-2001.
[3] Neste mesmo sentido, foi a posição que doutrinariamente assumi antes mesmo da citada decisão do STF, no artigo intitulado: O teto dos sem teto, publicado na Revista JAM Jurídica: administração pública, executivo e legislativo municipal, v. 9, n. 5. p. 1, maio de 2004.
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