Leis de emergência restringem brutalmente os direitos fundamentais
12 de janeiro de 2015, 10h41
Depois da queda das torres em Nova York (Twin Towers do World Trade Center, 2001) e dos ataques nas estações de metrô de Madrid (Atocha, 2004) e Londres (London Underground, 2005), o alvo foi a jornal satírico Charlie Hebdo em Paris. Para além da brutalidade que os atos têm em comum, os episódios elevaram na potência máxima a tensão existente entre segurança e liberdade.
É dentro deste fenômeno-tensão que está inserido o terrorismo enquanto forma de crime político ou religioso que tem demandado respostas eficientes dos Estados. Os episódios terroristas de grande impacto na população e na opinião pública ocasionam rapidamente a aprovação de desmedidas leis protetivas excepcionais, que, mais das vezes, ensejam retrocesso no processo civilizatório. Em todos os casos, as leis de emergência vêm restringir brutalmente os direitos fundamentais.
Após os ataques nos Estados Unidos surgiram reações punitivistas que romperam com os limites locais e assumiram posturas internacionais. Diante do balanceamento entre segurança e liberdade e, sobretudo frente ao risco terrorista global[1], apareceram diferentes medidas antiterror, todas com um traço comum em sua natureza limitadora dos direitos fundamentais — as mais patentes são relativas à liberdade pessoal.[2]
O USA Patriot Act[3] é exemplo claro desta reação estatal, que, posteriormente, acabou por ter eco na publicação do Antiterrorism, Crime and Security Act do Reino Unido. Agora, a partir de Paris, alguns partidos da extrema-direita europeia apregoaram o fechamento das fronteiras e o regresso da pena de morte. Marine Le Pen, presidente da Frente Nacional, pleiteou abertamente a realização de um referendo que permita trazer de volta a pena capital em França. O Partido da Independência do Reino Unido, por Nigel Farage, justificou o aumento do controle sobre as políticas de imigração e sobre aqueles que querem viver no país. Geert Wilders, do Partido da Liberdade holandês, declarou que a Holanda deve fechar as fronteiras à imigração vinda de países muçulmanos. Todas estas manifestações políticas foram amplamente publicadas pela mídia internacional após o ataque ao jornal Charlie Hebdo.
O fato é que na guerra antiterrorista os Estados, como primeira opção, têm oferecido soluções bélicas. Na busca de eficiência no combate ao terror rompem-se os limites ético-filosófico-jurídicos e admitem-se as violações. É a promoção de uma política legislativa utilitarista e de emergência, que tem recebido certo apoio no imaginário social, mormente quando a coletividade é motivada pelo medo de novos ataques.
A guerra antiterrorista e, sobretudo, os corpos legislativos publicados em situações de emergência, vêm rompendo com os princípios básicos do Estado de Direito.[4] E, por suposto, como as ameaças estão a exigir outros instrumentos de segurança, o aparato repressivo passa a operar a partir de uma espécie de poder global, havendo uma superposição de Estado de Direito e Estado de Exceção, dando lugar a uma duplicidade jurídica, como identifica Pilar CALVEIRO.[5]
Temos, na expressão feliz de Manuel Guedes VALENTE, um terrorismo como gérmen da esquizofrenia belicista[6], a ponto de surgirem teses de intervenção antecipada e/ou guerra preventiva na lógica da emergência da luta contra o terrorismo internacional.[7] Então, indiscutivelmente, o que se constata é que estes processos de urgência, a ameaça terrorista como um Estado de Emergência[8], acabam sendo utilizados para justificar o aumento do poder punitivo, o que sempre pode ser, em alguma dimensão, incompatível com um sistema de garantias num Estado de Direito.[9]
É evidente que a questão não é simples, porque esta espécie de terror fanático, além de ser violento, é onipresente[10]. Contudo, as democracias modernas não estão autorizadas a viver em permanente Estado de Emergência. Limitar direitos e estigmatizar pessoas não é solução e, como é sabido, isto pode produzir danos irreparáveis à democracia e ao Estado de Direito[11]. Talvez seja o momento de reconhecer que fracassamos e que somos incapazes de tratar as loucuras do mundo com leis penais, pois a laicidade estatal não pactua com fundamentalismos religiosos. Mais, precisamos ter ciência de que, na busca por remédios, se é verdade que no caso não devemos recorrer ao placebo, também é certo que não podemos usar de uma dose que mate o paciente.
[1] Expressão é de TAVARES DA SILVA, Direitos fundamentais da Arena Global, Coimbra: Universidade de Coimbra, 2011, p. 153.
[2] Ver: CARRASCO DURÁN, “Medidas antiterroristas y constituición, tras el 11 de septiembre de 2001”, In: PÉREZ ROYO (dir.); CARRASCO DURÁN (coord.). Terrorismo, democracia y seguridade, en perspectiva constitucional, Madrid: Marcial Pons, 2010, p. 25; WADE, “Medidas antiterroristas en Inglaterra y Gales: los riesgos de discriminación e determinados grupos de plobación”, In: WINTER, Terrorismo, processo penal y derechos fundamentales, Madrid: Marcial Pons, 2012, p. 243.
[3] Fruto do Congresso dos Estados Unidos da América e assinado pelo então Presidente Bush, tornado lei em 45 dias após o atentado de 11 de setembro de 2001. Em linhas gerais é o Ato de Unir e Fortalecer a América Providenciando Instrumentos Necessárias para Interceptar e Obstruir o Terrorismo de 2001 (Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act of 2001). Indispensável lembrar que o Patriot Act possibilitou uma série de violações em nome da defesa da Ordem e da Segurança Nacional, tais como a investigação de cidadãos meramente possíveis suspeitos, a invasão de residências, interrogatórios continuados e até por afogamento e sem direito de defesa, imposição da incomunicabilidade dos detidos, etc., tudo em busca de ações antigovernamentais ou terroristas. (Conferir GÓMEZ CORONA, “Estados Unidos: política antiterrorista, derechos fundamentales y división de poderes”, op. cit., Terrorismo, democracia y seguridade, en perspectiva constitucional, p. 57. Ver, ainda, CHEVIGNY, “Repressão nos Estados Unidos após o ataque de 11 de setembro”, In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 47, 2004, p. 88.
[4] Fábio Roberto D´AVILA adverte que o “combate ao terrorismo” tem produzido efeitos, também, na dogmática penal: “A denominada “guerra contra o terrorismo” tem sido responsável por levar a já antiga tensão entre segurança e liberdade ao seu limite mais extremo. A dimensão dos atos terroristas vivenciados neste século e o medo de sua repetição têm se convertido em argumentos decisivos em prol da adoção – muitas vezes, a qualquer custo – de medidas de segurança. E isso a tal ponto que, por vezes, parece não haver limite jurídico possível, quando do outro lado está o forte argumento da eficiência no combate ao terror. Noções e princípios fundamentais de direito penal, até pouco tempo inquestionáveis, são relativizados ou simplesmente afastados. O terrorismo converte-se em uma espécie de argumento mágico. Embora isso, como se sabe, na história do direito penal, não seja algo novo.” (“O direito penal na luta contra o terrorismo”, In: COSTA ANDRADE; FARIA COSTA; RODRIGUES; MONIZ; FIDALGO (orgs), Direito penal: fundamentos dogmáticos e político-criminais – homenagem ao Prof. Peter Hünerfeld, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 188.
[5] Violências de Estado: la guerra antiterrorista y la guerra contra el crimen como medios de control global, Buenos Aires: Siglo Veintieuno Editores, 2012, p. 308.
[6] Direito penal do inimigo e o terrorismo: o progresso ao retrocesso, Coimbra: Almedina, 2010, p. 99.
[7] SERRANO PIEDECASAS; CRESPO, “Del Estado de Derecho al Estado preventivo”, In: SERRANO PIEDECASAS; CRESPO, Terrorismo y Estado de Derecho, Madrid: Iustel, 2010, p. 247.
[8] HUSTER; GARZÓN VALDÉS; MOLINA, Terrorismo y derechos fundamentales, Madrid: Fundación Coloquio Jurídico Europeo, 2010, p. 24.
[9] Sobre o assunto, é indispensável: ZAFFARONI; FERRAJOLI; TORRES; BASILICO, La emergencia del medo, Buenos Aires: Ediar, 2012, p. 8. Ver, sobretudo, o texto de FERRAJOLI, “Populismo penale nella società dela paura”, p. 37-55.
[10] LIMBACH, “Direitos humanos em tempos de terror: a segurança coletiva é a inimiga da liberdade individual?”, In: Direitos Fundamentais & Justiça, Ano 6, n. 19, Porto Alegre: HS Editora, abr./jun. 2012, p. 13.
[11] Concordo com Luciano FELDENS: “o Estado constitucional de Direito é reconhecidamente o único modelo de Estado habilitado a oferecer suporte ao projeto garantista. Estado constitucional de Direito e garantismo são realidades auto-referentes, apontando, em conjunto, para formulação de técnicas de garantias idôneas destinadas a assegurar o máximo grau de efetividade dos direitos fundamentais” (Direitos Fundamentais e Direito Penal, POA: Livraria do Advogado, 2008. p. 67.)
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!