Processo decisório

Rigidez do rito das audiências públicas supera a do processo penal, diz especialista

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28 de setembro de 2014, 10h00

A democracia brasileira é representativa. Isso quer dizer que os cidadãos, de tempos em tempos, escolhem pessoas a quem delegam a função de representá-los junto ao Estado. O modelo estimula outros meios de participação popular no processo político. Um desses meios é a audiência pública, que é muito debatida quanto a seu uso no Judiciário, mas pouco se estuda sua aplicação pelo Executivo, como aponta o professor e procurador federal Eduardo Fortunato Bim em seu novo livro Audiências Públicas. "Em termos proporcionais, as audiências são muito mais usadas pelo Executivo que pelo Judiciário, mas também são bem mais contestadas, e a falta de doutrina sobre o assunto dificulta", compara.

O assunto se tornou espinhoso depois da publicação, pelo governo federal, do Decreto 8.243/2014, que estabelece a Política Nacional de Participação Social. Para muitos críticos, principalmente no Congresso, a norma tira o poder dos parlamentares ao permitir a formação de conselhos de cidadãos para discutir temas sensíveis. 

Usadas há tempos, as audiências públicas tangenciam o debate, mas não se submetem a ele. Em sua obra, Bim afirma que elas têm se mostrado importantes ferramentas de formulação de políticas públicas porque, além de aproximar a população do Estado, “têm a capacidade de influenciar o gestor público ao abordar informações, críticas ou elogios ao processo decisório”. Bim comenta que elas já são subsídio para o processo de tomada de decisões, principalmente nos setores ambiental, regulatório e de saúde.

No entanto, ele explica que elas não têm, e nem podem ter, o poder de vincular a decisão estatal. O que elas fazem é obrigar o gestor a analisar os argumentos trazidos por quem não participa do processo decisório. Por isso, ele afirma que a importância das audiências também deve ser relativizada. “A audiência é apenas um dos meios pelos quais o cidadão pode participar, não excluindo o direito de petição ou consulta pública, por exemplo”, disse à ConJur.

O livro Audiências Públicas foi lançado em agosto e é editado pela Revista dos Tribunais. Eduardo Fortunato Bim é professor de Direito Administrativo e procurador federal do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama). Ele cursa o doutorado em Direito na Universidade de São Paulo.

O livro nasceu de sua dissertação de mestrado pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e veio da necessidade criada a partir do “tratamento doutrinário esparso que vinha sendo dado às audiências públicas no âmbito do Executivo”, explica. “Por essa falta de compreensão do papel das audiências, criou-se um mito de que nelas se decide algo, enquanto o correto é que nelas se discute algo.”

Leia a entrevista:

ConJur — O livro fala de audiências públicas na formulação de políticas públicas no Executivo. Como elas funcionam?
Eduardo Fortunato Bim — 
As audiências públicas influenciam a formulação de políticas públicas porque têm a capacidade de influenciar o gestor público ao abordar informações, críticas ou elogios ao processo decisório. Em diversas áreas elas são utilizadas como subsídio para a tomada de decisões estatais, como na área da saúde, do meio ambiente, do setor regulatório, do urbanismo. Tal influência ficou ainda mais evidente após o polêmico Decreto 8.243/2014, que instituiu a Política Nacional de Participação Social no Poder Executivo federal.

ConJur — Se as audiências não vinculam a decisão estatal, de que forma elas podem ser usadas?
Eduardo Bim — 
Embora elas não vinculem a decisão estatal, como todos os instrumentos participativos administrativos, elas obrigam o gestor a analisar os argumentos trazidos pelos cidadãos, influenciando o rumo da decisão estatal.

ConJur — Sob qual aspecto o livro analisa essas audiências? A introdução do livro fala que a importância das audiências deve ser relativizada. Por quê?
Eduardo Bim — 
O livro analisa as audiências públicas como integrante do Direito Administrativo participativo.  Embora as audiências públicas sejam importante instrumento de participação popular, sua importância deve ser relativizada porque são apenas um dos meios pelos quais o cidadão pode participar, não excluindo o direito de petição ou a consulta pública, por exemplo.  Existem diversos outros meios participativos, como bem demonstra o rol exemplificativo do artigo 6º do Decreto 8.243/2014.

ConJur — Há um discurso político padrão de que a política exclui a sociedade que, por sua vez, desconfia da política. A saída seria aumentar a participação popular no processo decisório. A audiência pública serve para isso?
Eduardo Bim — 
Sim, embora a finalidade das audiências públicas seja trazer subsídios para dentro do processo decisório, fazendo parte da sua instrução, ela tem essa capacidade de aproximar o político da sociedade. Como princípio, é sempre bem-vindo o aumento da participação popular, mas isso deve ocorrer dentro da lei, com previsão expressa, e sem que haja deslocamento do poder decisório para esse instrumento. A audiência pública integra a participação popular não orgânica e eventual, não podendo ser tomada como qualquer tipo de decisão estatal.

ConJur — Seu livro afirma que é preciso evitar certas distorções quando da realização das audiências. Que tipo de distorções?
Eduardo Bim — 
Infelizmente, as audiências públicas não vêm sendo utilizadas como forma de promover a participação popular na gestão pública, mas como causa de anulação do processo decisório estatal quando a decisão não agrada a quem as contesta.  Superestima-se sua potencialidade, sacralizando-a para arguir a nulidade. Assim, para quem almeja anular o processo decisório, a audiência pública se torna o seu ato mais importante, em que cada ato a ela relativo é tratado como parte de um rito inflexível, não convalidável, ou exigindo prova do prejuízo, ainda que haja outros instrumentos participativos nesse processo, como a consulta pública.  Chegou-se a tal ponto de desproporcionalidade que as falhas relativas às audiências públicas são mais graves, em termos de nulidade, do que as do processo penal ou as do processo eleitoral, que encarna a nossa base democrática.

ConJur — E o que pode causar a nulidade de uma audiência?
Eduardo Bim — 
Em tese, qualquer coisa que saia do rito previsto ou imaginado, como bem apontou a Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Vermont Yankee, pode causar a nulidade de uma audiência pública e, consequentemente, do processo decisório no qual ela se insere. Quando falo em “imaginado” é algo não previsto em lei ou regulamento, o que relegaria a questão à discricionariedade administrativa.

ConJur — Por que são nulidades piores que as do processo penal?
Eduardo Bim — 
Algumas nulidades, como a ausência de um reforço de convocação para a audiência pública ambiental, são piores porque não se exige prova do prejuízo ou ele é sempre presumido, o que não ocorre nem no processo penal. Às vezes, grupos muito bem organizados, do ponto de vista logístico, reclamam que a convocação não foi devidamente efetuada ou mesmo que foi insuficiente a publicação na internet e nos diários oficiais, mas disponibilizam uma sofisticada logística aos seus associados para participarem da audiência pública, como aluguel de ônibus, refeições etc.

ConJur — Seu livro também fala em controle como forma de influência. O que isso quer dizer?
Eduardo Bim — 
As audiências públicas são uma forma de controlar a atividade estatal através do controle-influência. É o que ocorre em uma comissão parlamentar de inquérito, por exemplo. É uma forma de controle que influencia a sociedade ou mesmo a atividade administrativa, sem impor sanções ou cursos de ações específicos.

[Texto alterado em 28 de setembro de 2014, às 16h43, para correção de informações.]

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