Direito Comparado

Um novo “caso do véu” no Tribunal Europeu de Direitos Humanos (parte 2)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

9 de julho de 2014, 19h18

Spacca
1. Introdução
Os antecedentes da decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos – TEDH – sobre a Lei 2010-1192, da República Francesa, sobre o uso de vestes que encubram o rosto, foram examinados na coluna da semana anterior. Esta semana, retoma-se o estudo desse importante precedente europeu, que lança novas luzes sobre os limites da liberdade religiosa e da autodeterminação em uma sociedade laica.

O julgamento da Reclamação 43835/11, formulada por S.A.S em face da República Francesa, ocorreu no dia 1o de julho de 2014, sob a presidência do juiz Dean Spielmann. Votaram 17 juízes, tendo 15 deles acompanhado o relator, com a dissidência parcial da alemã Anna Nußberger e da sueca Helena Jäderblom, no que se refere à alegação de ofensa aos artigos 8o e 9o da Convenção Europeia de Direitos Humanos.

Nas seções seguintes, ver-se-ão as principais razões de decidir desse histórico julgamento.[1]

2. As alegações de mérito das partes e dos terceiros intervenientes
A reclamante alegou que nasceu no Paquistão, em uma família sunita, respeitadora de suas tradições religiosas e culturais, na qual é comum o uso do véu que encobre o rosto inteiro em público. Segundo ela a proibição legal do uso do véu é uma abordagem simplista da questão. Haveria inúmeras mulheres que tomaram a decisão individual de usar a veste, sem qualquer influência externa, muito menos para agradar a familiares ou para se submeter a padrões de comportamento impostos por pessoas chauvinistas ou machistas.

Em suas razões, também se afirmou que uma “sociedade verdadeiramente livre” é aquela que consegue “acomodar uma grande variedade de crenças, gostos, atividades, costumes e códigos de conduta”, sem que o Estado deva referendar ou validar determinada expressão religiosa. Ainda que se possam considerar válidas as restrições impostas pela lei francesa, suas sanções seriam desproporcionais. Os objetivos da lei poderiam ser alcançados por outras espécies de restrições, como criar controles de identidade em áreas de risco.

A reclamante ainda defendeu que a atitude do Governo francês mostrou-se paternalista e terminará por punir as mulheres, quando estas deveriam ser protegidas em face da pressão patriarcal.

A proibição instituída pela Lei 2010-1192 teria sido invasiva de sua esfera privada, em claro desrespeito ao art. 8o da Convenção Europeia de Direitos Humanos. No que se refere ao artigo 9o dessa convenção, a lei francesa ser-lhe-ia contrária porque essa modalidade de interferência na vida das pessoas é desnecessária em uma sociedade democrática.

Por fim, quanto ao artigo 14 da convenção europeia, a autora defendeu que a lei francesa seria discriminatória quanto ao gênero, à religião e à origem étnica das pessoas atingidas por seus efeitos.

A manifestação do Governo da República Francesa, em favor da lei, pode ser assim resumida:

a) A lei efetivamente estabelece uma limitação às liberdades individuais, mas ela se dá em um contexto que a justifica, pois é algo que se faz necessário em uma sociedade democrática, cujos objetivos devem ser protegidos.

b) O primeiro dos objetivos democráticos alcançados com a lei é a preservação da segurança pública. A lei permite a ampla identificação dos indivíduos. O segundo objetivo é a proteção dos direitos e liberdades de terceiros, com o estabelecimento de requisitos mínimos para uma vida em sociedade, com a possibilidade de afirmação do caráter único de cada pessoa e com possibilidade de uma coexistência social. O terceiro objetivo estaria na proteção à igualdade entre homens e mulheres. E, o quarto, a proteção à dignidade humana.

c) A lei foi aprovada pela quase unanimidade das casas legislativas francesas, além de ter sido examinada por seus tribunais e pelo Conselho Constitucional, o que demonstra o cuidado com sua elaboração e seu caráter proporcional e democrático.

O Governo do Reino da Bélgica participou como terceiro interveniente, especialmente em razão de haver aprovado uma lei semelhante à francesa, que entrou em vigor em 23 de julho de 2011. A norma belga foi examinada por seu órgão de controle de constitucionalidade, o qual a considerou como compatível com os respectivos textos constitucionais.

Como terceiras intervenientes, as organizações não governamentais Anistia Internacional, Artigo 19, Centro de Direitos Humanos da Universidade Ghent, Liberdade, Iniciativa por uma Sociedade Aberta e Justa defenderam a posição da reclamante, sob diversos fundamentos.

3. As razões de decidir do tribunal europeu[2]
Para o TEDH, a autodeterminação, em locais públicos ou privados, é um desdobramento da personalidade e, como tal, se conecta à noção de vida privada. Essa autodeterminação revela-se em atos como o corte de cabelo ou a escolha da roupa, conforme precedentes, e uma medida estatal que interfira nessas escolhas, em princípio, é uma forma de ingerência na vida privada, na acepção que lhe é dada pelo artigo 8o da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Quando essa decisão individual se liga a preceitos religiosos, entra em causa também o artigo 9o da convenção. O problema é saber se, em ambos os casos, houve: (a) uma interferência ou uma ingerência estatal na vida dos indivíduos; (b) uma ação prescrita em lei; (c) um objetivo legítimo; (d) uma medida necessária em uma sociedade democrática.

A adequada interpretação do artigo 9o da convenção é a que prestigia a liberdade de pensamento, de consciência e de religião como “fundamentos de uma ‘sociedade democrática’, no sentido dado pela Convenção”. A dimensão religiosa dessa liberdade é um dos elementos mais importantes na composição da identidade dos fiéis e em sua “concepção de vida”. No entanto, ela é igualmente “um bem precioso para os ateus, agnósticos, céticos e indiferentes”. Ocorre que, “nas sociedades democráticas, nas quais várias religiões coexistem no seio de uma mesma população, pode ser necessário estabelecer limites à liberdade de manifestar a própria religião ou crença, a fim de conciliar os interesses dos vários grupos e garantir que as crenças de todos sejam respeitados”.

Na visão do TEDH, ao Estado cabe a função de “organizador neutro e imparcial do exercício de várias religiões”, a qual se exerce em prol de valores como “ a ordem pública, a harmonia religiosa e da tolerância em uma sociedade democrática”. Se os interesses individuais devem, em algumas situações, sujeitar-se aos de um grupo, isso não significa, de modo simplista, que a maioria deve impor sua visão de mundo às minorias. Esse convívio é difícil e só pode ser alcançado com base no diálogo e em “um espírito de compromisso que implica, necessariamente, várias concessões por parte de indivíduos ou grupos de indivíduos”.

Nessas situações, a autoridades nacionais são legitimadas democraticamente, de modo direto, para resolver esses conflitos. Elas estão em condições mais privilegiadas do que um tribunal internacional “para avaliar as necessidades e condições locais”.

Para além dessas restrições, o TEDH tomou posição em diversos problemas envolvendo a liberdade religiosa, ao estilo dos seguintes: a) proibição de uso de símbolos religiosos em escolas públicas, impostas a docentes e agentes administrativos (Kurtulmuş contra Turquia (dezembro), n. 65500/01, TEDH 2006-II); b) obrigação de retirar a roupa de conotação religiosa, no âmbito de uma inspeção de segurança (Phull contra França (dezembro), n. 35753/03, TEDH 2005-I; El Morsli contra França (dezembro), n. 15585/06, 4 de março de 2008); c) obrigação de aparecer com a cabeça descoberta em fotos para uso em documentos oficiais (Mann Singh contra França (dezembro), n. 24479/07, 11 de Junho de 2007). Em todas essas hipóteses, o Tribunal não identificou violação ao artigo 9o.

Após citar outros julgados do próprio tribunal, o TEDH passou a aplicar ao caso da lei francesa os fundamentos já resumidos.

Em síntese, entendeu o TEDH que:

a) O tribunal limitou sua apreciação da lei francesa criou uma interferência necessária em uma sociedade democrática, que destina a preservar a segurança pública e a proteger os direitos e as liberdades de terceiros.

b) Sobre o quesito da segurança pública, o TEDH entendeu que um Estado tem condições de discernir o que é essencial para que ele possa identificar as pessoas e evitar o perigo à vida e ao patrimônio de terceiros. Nesse caso, não se faria necessária uma lei como a francesa para autorizar ao Governo e seus agentes exigir a retirada de véu para assegurar a segurança pública. O alcance da lei é maior do que essa necessidade específica e ela não pode servir de fundamento de per si para se admitir a validez da norma.

b) Quanto à garantia dos requisitos mínimos para uma vida em sociedade, o que se integra à “proteção dos direitos e liberdades de terceiros”, a lei francesa deixou evidente, em sua exposição de motivos, que esse foi um valor que dá fundamento à norma. Ao juízo do tribunal, os Estados têm poderes para estabelecer “as condições nas quais os indivíduos podem viver juntos em sua diversidade”. O TEDH, por conseguinte, “considera que a proibição impugnada pode ser considerada justificada”, em princípio, desde voltada exclusivamente para assegurar a vida social em conjunto.

c) Se a restrição criada pela lei francesa encontra fundamento na preservação da vida social e do convívio das pessoas nesse âmbito, é o caso de saber se ela possui o atributo da proporcionalidade.

d) O TEDH reconheceu que há um número relativamente pequeno de mulheres nos territórios franceses (cerca de 1900, no final do ano de 2009), se comparado ao total de 65 milhões de franceses e ao número de islâmicos que vivem em França. Ademais, a proibição tem, de modo induvidoso, um impacto negativo sobre a situação de mulheres que, como a reclamante, usam as vestes que encobrem o rosto por sua vontade e em respeito a suas crenças religiosas. É ainda de se admitir que essas mulheres podem interpretar a restrição legal francesa como “uma uma ameaça à sua identidade”.

e) O tribunal europeu não desconsidera existir uma reação significativa contra a lei francesa por parte de organizações governamentais e não governamentais, internas e estrangeiras.

f) Não é desconhecido pelo TEDH que os trabalhos legislativos da lei francesa podem ter irritado a comunidade islâmica, mesmo em face de alguns de seus integrantes que são contrários ao uso do véu. Quando um Estado nacional conduz seu processo legislativo nesses termos, corre-se o risco de se acentuar visões islamofóbicas e de se impedir a integração desse grupo na comunidade francesa.

g) A despeito dessas objeções e da circunstância de que o âmbito de incidência espacial da lei (locais de acesso ao público, com exceção das áreas destinadas ao culto religioso) é muito amplo, “a Lei de 11 de Outubro 2010 não ofende a liberdade de se usar em público qualquer vestuário ou item de vestuário – com ou sem conotação religiosa – que não tem a finalidade de ocultar o rosto”. Dessa maneira, o TEDH está consciente de que, apesar de a lei ter efeitos preponderantes sobre as mulheres islâmicas, a restrição legal não tem caráter preeminentemente religioso.

h) A questão de se ter criminalizado a conduta do uso do véu é importante, pois “aumenta o impacto da medida sobre os interessados”. Ser réu em um processo-crime por esconder o rosto em público é algo “traumatizante para as mulheres que optaram por usar o véu” por causa de suas convicções religiosas”. Entretanto, “deve-se ter em conta que as sanções previstas pelos autores da Lei estão entre as mais leves que poderiam ser previstas”.

i) A proibição da lei francesa, de certo modo, teve a consequência de restringir o pluralismo. Tal efeito, porém, foi justificado pelo Governo francês como uma forma legítima de se oferecer uma resposta a uma prática considerada “incompatível, na sociedade francesa, com as regras básicas de comunicação social e, mais amplamente os ditames da “convivência”. A República Francesa, ao editar a lei, buscou proteger um princípio que, a seu entender, “é essencial para a expressão do pluralismo, não só, mas também de tolerância e abertura de espírito, sem os quais não há sociedade democrática”. Em síntese, o TEDH definiu que a restrição de direitos contida na lei francesa é “uma escolha da sociedade”.

j) Neste julgamento, o TEDH assinalou que deve conter o âmbito de sua análise da “conformidade” da lei francesa com a Convenção Europeia, uma vez que poderá interferir no equilíbrio encontrado, em um processo democrático, pela sociedade de França para resolver um problema interno tão sensível. A lei francesa foi elaborada dentro de uma legítima “margem de apreciação”.

k) Diferentemente do que alegado pelas organizações não governamentais, o TEDH acentuou que não há unanimidade na Europa quanto ao uso público das vestes que encobrem o rosto. França e Bélgica, de fato, estão em posição minoritária, pois nenhum outro Estado europeu adotou legislação com esse teor. Mas, há significativo debate sobre o tema nos meios jurídicos e sociais europeus, o que denota a ausência de uniformidade interna quanto ao problema.

Em conclusão o TEDH definiu que a proibição legal francesa deve ser entendida como “necessária em uma sociedade democrática”, o que torna a lei compatível com os artigos 8 º e 9o da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Além disso, não houve violação dos artigos 10 e 14 dessa convenção.


[1] A resenha da decisão está baseada em seu conteúdo integral, disponível neste link. Acesso em 7/7/2014.

[2] O texto integrante desta seção corresponde a paráfrases, transcrições parciais e resenhas do conteúdo original da decisão. Considerando-se a natureza deste escrito (uma coluna e não um artigo científico), deixa-se de fazer a notação em cada frase, paráfrase e resumo do texto original. O leitor é advertido da ausência de originalidade da maior parte do texto desta seção, cujo objetivo é precisamente dar-lhe uma visão geral da decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

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  • é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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