Direito Comparado

Um novo “caso do véu” no Tribunal Europeu de Direitos Humanos (parte 1)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

2 de julho de 2014, 17h52

Spacca
Há muita discussão sobre quando se deu efetivamente o fim do modelo europeu de colonização imperial do século XIX. Logo após a Segunda Guerra Mundial, como um castelo de cartas, as colônias e possessões europeias conquistaram, de modo pacífico ou violento, sua independência. A exaustão das forças militares, a mudança do eixo de poder para a bipolaridade norte-americano-soviética, a retribuição pelo esforço de guerra das tropas coloniais, o empobrecimento das metrópoles, o fomento comunista aos grupos pró-independência e a nova economia industrial podem ser identificadas como causas determinantes para esse processo, que, em última análise, terminou com 500 anos de preeminência europeia no cenário político-militar internacional.

Nossa pequenina pátria-mãe, Portugal, cumprindo um vaticínio do historiador e espião britânico major Charles Boxer, lançado em seu clássico Império Marítimo Português (The Portuguese Seaborne Empire, 1969), foi a última metrópole europeia a renunciar a seus domínios em África, datados do século XIV. Só com a Revolução dos Cravos, em 1974, é que Portugal desistiu de seu império do ultramar, que conferia a seus monarcas o título de “rei Portugal e dos Algarves, d’Aquém e d’Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”. E não sem antes lutar com encarniçada teimosia, como previra Charles Boxer, ao dizer a seus concidadãos que não fizessem pouco caso dos portugueses.

Ao meu ver, o desmantelamento dos impérios europeus encontra seu marco e seu símbolo maior na campanha israelita-franco-britânica de 1956, no Canal do Suez. Após a derrubada da monarquia egípcia, com a deposição do rei Faruk, o coronel Gamal Abdel Nasser instalou um regime nacionalista, laico e pan-árabe no Egito. A retomada unilateral do Canal do Suez foi o gesto que ele escolheu para demarcar o fim de séculos de espoliação imperial em seu país. A reação da França e do Reino Unido, em combinação secreta com Israel, foi imediata e pelas vias militares, com o envio de paraquedistas e da infantaria naval. Em poucos dias, porém, com o repúdio explícito dos Estados Unidos e a reação dos russos, as antigas potências tiveram de desistir de sua aventura e fizeram retroceder suas forças militares, em absoluto descrédito e sob um clima de humilhação internacional. Anthony Eden, 1º Conde de Avon, então primeiro-ministro britânico, teve sua carreira política arruinada. Até hoje, esse evento histórico é uma cicatriz aberta no coração dos britânicos. Foi ali que caiu o véu que encobria sua fraqueza.

Um dos efeitos colaterais do desmantelamento dos impérios coloniais foi a maior migração da história europeia dos últimos 200 anos. E não uma imigração qualquer, mas a recepção de milhões de pessoas de etnias, credos, culturas e línguas diferentes para um espaço até então relativamente homogêneo em todos esses quesitos. Se, por séculos, a Europa viu-se como um continente branco, cristão (em suas diversas denominações) e ocidental, após a década de 1950, não mais se poderia acreditar nisso.

Para não se ampliar excessivamente o foco dessa análise, fique-se com a República Francesa, construída sob os escombros do Antigo Regime e debaixo da contradição essencial de ser uma nação que se proclamava a evangelizadora dos povos, com os ensinamentos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), mas que invadiu quase todas as nações europeias (até a queda de Napoleão em 1815) e que construiu seu próprio império colonial em África, Ásia e América.

Muito bem, os franceses mantiveram sua liberdade na hoje centenária Primeira Guerra Mundial com o sangue de suas tropas coloniais saarianas, subsaarianas, siríaco-libanesas e indochinesas, que foi derramado aos borbotões na guerra contra as potências centrais. Esses mesmos contingentes lutaram sem sucesso até à capitulação vergonhosa perante os alemães em 1940. E, com muito maior importância, foram os coloniais e os soldados da Legião Estrangeira, sob a liderança de um pequeno corpo de oficiais franceses, que mantiveram a honra francesa em luta contra o nazismo, sob a liderança mítica do general-de-brigada temporário Charles de Gaulle. A reconquista da França, em 1944-1945, fez-se graças a argelinos, vietnamitas, chadianos e outros tantos alistados sob a bandeira da Cruz de Lorena.

Após a Segunda Guerra, os franceses lutaram por quase 20 anos para conservar seu império colonial. A derrota na Indochina, na batalha de Dien Bien Phu (1954), e depois a retirada da Argélia, cuja descolonização levou ao poder novamente o general De Gaulle, foram os eventos que selaram o fim do colonialismo francês, a despeito de ainda se conservarem possessões, como a Guiana Francesa e algumas ilhas.

Os ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial e das lutas coloniais, homens e mulheres que serviram a França, mesmo contra seus conterrâneos, terminaram por permanecer em território francês. Ou, o mais grave, foram obrigados a emigrar para a antiga metrópole, a fim de não serem trucidados pelos novos governos nacionais, visto que combateram as forças pró-Independência, muita vez por razões de honra (por se acharem ligados por vínculos de lealdade militar a seus oficiais metropolitanos) ou convicção política. A partir de 1960, e até hoje, a imigração das ex-colônias permaneceu contínua, embora as motivações fossem outras, como a busca por novas condições de vida ou a atração exercida universalmente pela política europeia do bem-estar social.

Independentemente dessa “nova imigração”, veja-se esse grupo de leais combatentes em prol da liberdade francesa, bem assim seus familiares, incluindo aí filhos, netos e bisnetos. Esses milhares de pessoas conservaram suas religiões, seus valores culturais, suas línguas em meio a uma realidade branca, cristã e ocidental. Passados 50, 60 ou mesmo 100 anos, são os netos e bisnetos desses heróis anônimos que hoje ocupam as periferias das grandes cidades francesas. Esse espólio do projeto colonial francês está em toda parte e sem se submeter aos efeitos da queda de natalidade típica da sociedade europeia contemporânea.

Um dos pontos de maior saliência do choque cultural advindo desse processo histórico tem se radicado no problema do uso do hijab, a cobertura de cabeça e do rosto das mulheres da religião islâmica, que seguem os preceitos da 33ª surata, em seu versículo 59. Vulgarmente referido como “véu islâmico”, essa parte da vestimenta feminina tem sido o foco de uma crescente preocupação normativa de diversos países europeus.

A França laica, republicana e igualitária, editou a Lei 2010-1192, de 11 de outubro de 2010, na qual se declara solenemente que ninguém, em um espaço público, poderá usar veste que se destine a dissimular seu rosto (artigo 1º). O conceito de espaço público é fornecido pelo artigo 2º da lei francesa: ele se constitui das vias públicas, dos lugares abertos ao público ou que são usados para uma finalidade ligada ao serviço público. Ainda neste artigo, encontram-se exceções à regra proibitiva do artigo 1º: a) quando a veste se enquadrar em uma conduta exigida ou autorizada por lei ou por regulamento; b) quando seu uso se der justificadamente por razões de saúde ou de caráter profissional, bem assim se for parte de atividades esportivas, de festas, de manifestações artísticas ou tradicionais.

O artigo 3º da Lei 2010-1192 prevê como sanção ao descumprimento da regra do artigo 1º o pagamento de uma multa ou de pena alternativa de restrição de direitos (cumprir o “estágio de cidadania”, previsto no parágrafo oitavo do artigo 131-16 do Código Penal). O artigo 4º da lei, que alterou o Código Penal, definiu que os perpetradores do uso da veste que dissimula o rosto, que assim o fazem por meio de ameaça, violência, coação, abuso de autoridade ou de poder, poderão sofrer a pena de 1 ano de prisão e outra de multa de 30 mil euros. Se a pessoa coagida, forçada ou ameaçada a usar essa veste, em razão de seu sexo, for menor, a pena será gravada para o dobro (2 anos de prisão e multa de 60 mil euros).

O artigo 7º, de modo bem curioso, estabeleceu que, após 18 meses da promulgação da lei, o governo francês deverá remeter ao Parlamento um relatório sobre os efeitos de sua aplicação.

Antes de sua entrada em vigor, Lei 2010-1192, que é autografada pelo então presidente francês Nicolas Sarkozy, foi submetida ao Conselho Constitucional de França, que emitiu a Decisão 2010-613 DC, de 7 de outubro de 2010, tendo participado do julgamento os conselheiros Jean-Louis Debré (presidente do Conselho Constitucional), Jacques Barrot, Claire Bazy Malaurie, Guy Canivet, Michel Charasse, Jacques Chirac (ex-presidente da República Francesa), Renaud Denoix de Saint Marc, Valéry Giscard d’Estaing (ex-presidente da República Francesa), Jacqueline de Guillenchmidt e Pierre Steinmetz.[1]

O julgamento do Conselho Constitucional de França tomou como paradigma os artigos 4º, 5º e 10º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o histórico documento da Revolução Francesa, e o inciso 3 do Preâmbulo da Constituição da República de 1946, que assegura a igualdade de direitos entre homens e mulheres.[2]

Os fundamentos de decisão, que, como é tradição em França, são muito sucintos, podem ser assim resumidos:

a) A edição da lei baseou-se na multiplicação de situações, que antes não eram comuns, de dissimulação do rosto humano. O Parlamento, ao apreciar essa mudança social, entendeu que essa prática poder-se-ia constituir um perigo para a segurança pública e uma maneira de se desrespeitar as exigências mínimas da vida em sociedade.

b) A submissão das mulheres a essa prática, independentemente de ser um ato de vontade própria ou não, termina por colocá-las em um estado de exclusão e de inferioridade, que é incompatível com os princípios constitucionais da igualdade e da liberdade.

c) O legislador, dessa forma, agiu ponderadamente e conseguiu atingir um ponto de equilíbrio entre a proteção da ordem pública e a garantia de direitos constitucionalmente protegidos.

O Conselho Constitucional decidiu que a Lei 2010-1192 é constitucional. Fez-se, no entanto, uma única ressalva: não se poderia proibir o uso dessa veste em locais destinados ao culto religioso, dado que a própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão preserva expressamente a liberdade religiosa.

Uma súdita da República Francesa, nascido em 1990, no entanto, recorreu ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) em face da aplicação da Lei 2010-1192, sob o fundamento de que haveria a ofensa aos artigos 8, 9 e 14 da Convenção Europeia de Direitos Humanos. A autora da reclamação ao TEDH afirma que é uma crente devota e que usa a burqa e o hijab como expressão de suas convicções religiosas, culturais e pessoais. Sua prática não foi ditada por ordens ou pressões de seu marido ou de qualquer membro de sua família. Independentemente disso, o uso dessas vestes não era sistemático, mas que o faz em eventos religiosos ou quando sente que isso é necessário para sua paz interior e para satisfação de seus sentimentos espirituais. Além disso, quando é necessário, por razões de segurança, em bancos e aeroportos, ela não se furta de exibir seu rosto às autoridades.

É sobre essa reclamação e o resultado do julgamento de que se ocupará a próxima coluna.


[1] A íntegra da decisão está disponível aqui. Acesso em 1º de julho de 2014.

[2]La loi garantit à la femme, dans tous les domaines, des droits égaux à ceux de l’homme”.

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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