Direito Comparado

Alimentos compensatórios no Brasil e no exterior (Parte 3)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

22 de janeiro de 2014, 7h01

O casamento pode ser qualificado como uma instituição, uma figura jurídica, uma categoria ou uma espécie de negócio jurídico. Sua natureza jurídica é questão das mais controvertidas, dada a existência de uma tensão entre cada vez maior entre (a) Direito e Moral e (b) o Direito Público e o Direito Privado, no que se refere à sujeição do casamento às respectivas esferas.

Em relação ao primeiro núcleo (a), desde o fim da década de 1960 até aos dias atuais, o casamento tem-se submetido a um gradual processo de alienação (no sentido de se alhear) do campo da moralidade. Os elementos religiosos, que durante tantos séculos serviram de conteúdo para as formalidades e os deveres matrimoniais, foram lentamente alienados do casamento. O divórcio, a tese do fim do dever de fidelidade e a descriminalização do adultério são símbolos dessa departição de espaços entre a Moral e o Direito no matrimônio. As recentes discussões sobre a poliafetividade, que é antípoda ao regime monogâmico, são mais um exemplo desse movimento em direção a um casamento sem conteúdo moral. Paradoxalmente, substitui-se essa Moral de origem religiosa por uma cada vez maior cobrança por solidariedade entre cônjuges, ex-cônjuges ou entre pais e filhos, no campo do afeto, mas cuja infração geralmente implica algum tipo de contrapartida financeira.

Em paralelo, é observada a (b) tensão entre os campos publicista e privatista no Direito de Família, mas de uma forma inteiramente nova. Não é de agora que se tem afirmado a existência de uma publicização do Direito de Família, a ponto de alguns autores defenderem sua autonomia em relação ao Direito Civil. Essa tese bem que poderia ser verdadeira se não fosse uma igualmente curiosa restrição da incidência do Direito Público (e seus institutos) no casamento. Até aos anos 1990, divorciar-se ou separar-se era algo profundamente solene, com prazos, audiências de conciliação e de reflexão —para que os cônjuges avaliassem se realmente desejavam pôr termo a sua união —, presença obrigatória do Ministério Público, recurso de ofício, além de outras pequenas formalidades. Hoje, tudo isso mudou. O casamento e sua proteção deixaram de interessar ao Estado, ao menos nos níveis tão intensos do passado. Cada vez mais, a união de duas pessoas é algo privado, que pode ser constituída ou extinta por meio de atos negociais, inclusive com a dispensa do poder Judiciário — quando ausente o litígio ou o interesse de incapazes —, por meio das serventias cartoriais. A infidelidade não mais interessa ao Direito Penal e já se começa a defender que a bigamia deixe de ser crime. O campo da autodeterminação matrimonial é cada vez mais dilatado.

Assim como houve esse avanço da autodeterminação no casamento, para se manter o paralelismo com as tensões já mencionadas, observa-se hoje uma maior intervenção no modo como as pessoas gerenciam os efeitos patrimoniais da extinção do casamento — ou da sociedade conjugal, conforme o caso. São exemplos disso a questão dos alimentos compensatórios e da intervenção judicial no regime de separação convencional de bens. Os elementos tipicamente familiares da relação entre os cônjuges deixaram de interessar ao Estado e agora ganham cada vez mais importância os de caráter patrimonial ou de eficácia patrimonial indireta. Esse câmbio no eixo do Direito de Família está a merecer estudos mais aprofundados, até por se revelar paradoxal em face de um discurso de despatrimonialização do Direito Civil.

E é sobre os alimentos compensatórios sob a perspectiva do Direito estrangeiro de que se ocupará esta que é a terceira coluna da série (leia as duas colunas anteriores, a primeira aqui e a segunda aqui).

Inicie-se pelo Direito espanhol. Na semana seguinte, quando se encerrará a série, ver-se-á o Direito francês.

Alimentos compensatórios na Espanha
No Código Civil espanhol, a matéria da “pensão compensatória” é objeto de seus artigos 97 a 101, que sofreram modificações recentes em 2005, graças à Lei 15/2005, de 8 de julho de 2005, em vigor desde 10 de julho de 2005.[1]

No art.97 do Código espanhol, está dito que se a separação ou o divórcio venha a produzir um “desequilíbrio econômico” de um cônjuge “em relação à posição do outro”, o qual implique “uma piora de sua situação anterior ao casamento”, o prejudicado terá direito a “uma compensação, que poderá consistir em uma pensão temporária ou por tempo indefinido, ou em uma prestação única, segundo o que se determine no acordo ou em sentença”. Se não houver acordo, o juiz determinará, na sentença, o valor da compensação, que “levará em conta as seguintes circunstâncias”: 1) os acordos a que tiverem chegado os cônjuges; 2) sua idade e seu estado de saúde; 3) sua qualificação profissional e sua empregabilidade; 4) sua dedicação anterior e futura à família; 5) seu trabalho e colaboração nas atividades empresárias, industriais ou profissionais do outro cônjuge; 6) a duração do matrimônio e da convivência conjugal; 7) a perda eventual de um direito de pensão; 8) o capital e os meios econômicos e as necessidades de um e outro cônjuge; 9) qualquer outra circunstância relevante. Na decisão judicial, fixar-se-ão as “bases para se atualizar a pensão e as garantias para sua efetividade”.[2]

No texto de 1981, afirmava-se que o cônjuge teria direito a uma pensão. Com a lei de 2005, passou-se a dizer que o direito recairia sobre uma “compensação”, que poderia assumir a natureza de pensão (temporária ou por tempo indeterminado) ou de uma prestação única.

A qualquer tempo, poder-se-á convencionar a substituição da pensão judicialmente fixada, nos termos do art. 97 do Código de Espanha, pela constituição de rendas vitalícias, o usufruto de determinados ou a transferência de um capital sob a forma de bens ou em dinheiro.[3] No entanto, se a pensão e suas bases de atualização houverem sido fixadas em sentença, só poderão ser modificadas supervenientemente “por alterações substanciais na fortuna de um ou de outro cônjuge”.[4]

Essa pensão, no Direito espanhol, não é perpétua, ainda que haja sido fixada por prazo indeterminado. Veja-se que são causas de sua extinção: a) haver cessado a causa que lhe deu origem; b) o credor passar a viver maritalmente ou casar com outra pessoa.[5]

O dever de pagar pensão pode-se transmitir aos herdeiros, dado que a morte do cônjuge solvens não é causa, por si só, de extinção de sua extinção. No entanto, seus herdeiros terão a legitimidade para requerer em juízo a redução ou a exoneração da pensão, se o acervo hereditário não puder satisfazer as necessidades criadas pela dívida ou se isso afetar seus direitos à legítima.[6]

Concluída a investigação sobre os aspectos puramente legais, é hora de se fazer anotações sobre a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de Espanha (equivalente ao Superior Tribunal de Justiça brasileiro).

Desde a reforma que instituiu a pensão em 1981 e após a alteração legislativa de 2005, o Supremo Tribunal de Justiça tem firmado alguns parâmetros a esse direito advindo da extinção do casamento ou da sociedade conjugal[7]: a) a pensão não é um “mecanismo indenizatório”, muito menos um “mecanismo para equilibrar os patrimônios dos cônjuges (SSTS de 10 de fevereiro de 2005, 5 de novembro de 2008 e 10 de março de 2009)”; b) cuida-se, na verdade, de uma “prestação econômica em favor de um dos esposos e a cargo de outro”, cujo “reconhecimento exige basicamente a existência de uma situação de desequilíbrio ou desigualdade econômica entre os cônjuges ou ex-cônjuges”; c) a pensão tem natureza diversa dos alimentos ou de uma condenação de caráter ressarcitório. Assim, é possível cumulá-la com os alimentos, que são atribuídos por efeito da situação de necessidade em que se encontrava um dos cônjuges (com referência a precedente do Supremo Tribunal de 2 de dezembro de 1987); d) o juiz, ao apreciar casos envolvendo o pedido de pensão, deve responder a três questões: i) produziu-se desequilíbrio gerador de pensão compensatória?; ii) qual o valor da pensão a ser fixada?; iii) a pensão deve ser definitiva ou temporária?

Esse tríplice questionamento, conforme apontado na doutrina[8], significou uma mudança recente na orientação do Supremo Tribunal de Justiça, quanto aos critérios para reconhecimento do direito à pensão e de sua quantificação. Deixou-se de lado o critério objetivo, que se pautava pela simples observação da existência de um desequilíbrio entre os patrimônios dos cônjuges, causado pela cessação do vínculo entre eles, remetendo-se aos critérios dos incisos do artigo 97 do Código Civil para se definir valores e extensão temporal da pensão. O mais alto tribunal de direito ordinário de Espanha adotou um critério subjetivo, segundo o qual o juiz, ao apreciar o pedido de pensão, deve valorar os critérios do artigo 97, levando-se em conta também seus incisos, para definir se a pensão é devida, qual seu valor e até quando deverá ser paga. Cita-se como marco dessa alteração jurisprudencial a já mencionada STS de 19 de janeiro de 2010.

Em um julgado de 2009[9], o Supremo Tribunal de Justiça discutiu a aplicabilidade à doutrina dos atos próprios, invocada pelo cônjuge-varão contra o pedido de pensão pelo cônjuge-virago, que havia firmado pacto antenupcial com a seguinte cláusula: “Os gastos de cada um dos cônjuges, de qualquer tipo e em quaisquer circunstâncias, serão de encargo exclusivo de quem os produzir, sem possibilidade de repercussão alguma em face do outro ou de seus bens”. Segundo o recorrente, essa cláusula deixaria “patente a vontade de ambos os cônjuges de se desvincular totalmente do outro no plano econômico, o que, em suma, suporia uma renúncia da esposa e um impedimento na hora de se postular a pensão que, em que pese a isso, lhe foi reconhecida”. No acórdão, afastou-se essa tese, sob o color de que: a) a cláusula foi firmada em um negócio preliminar, dependente de circunstâncias futuras, fortuitas e impossíveis de serem predicadas em um documento como o pacto antenupcial; b) a existência de desequilíbrio futuro não teria como ser objeto de parâmetros no pacto. Esta é, porém, uma matéria ainda insegura no Direito espanhol, na medida em que se encontram acórdãos reconhecendo a força das cláusulas antenupciais, ressalvando sua desconsideração para casos de vícios de consentimento.[10]

A mudança legislativa de 2005 introduziu a possibilidade de limitação temporal das pensões compensatórias. Essa alteração resultou da experiência pretoriana, que há muito vinha admitindo a fixação de prazo para as pensões.[11]

Na próxima coluna, ver-se-ão outras experiências no Direito estrangeiro.


[1] Todos os textos em espanhol foram traduzidos pelo colunista.
[2] Redação original modificada pelo art.1º da Lei 30/1981, de 7/7/1981, e, posteriormente, pelo art.1.9 da Lei 15/2005, de 8/7/2005.
[3] Art. 99, com a redação alterada pela Lei 30/1981, de 7/7/1981.
[4] Art.100, com a redação alterada pela Lei 30/1981, de 7/7/1981.
[5] Art.101, primeira parte, com a redação alterada pela Lei 30/1981, de 7/7/1981.
[6] Art.101, parte final, com a redação alterada pela Lei 30/1981, de 7/7/1981.
[7] STS 864/2010, de Pleno de 19/1/2010.
[8] Campo Izquierdo, Ángel Luis. La pensión compensatória. Boletín Derecho de Familia. Nov. 2011.
[9] STS 1130/2009, de 10/3/2009.
[10] STS de 9/2/2010.
[11] No Supremo Tribunal de Justiça, assim se reconheceu em definitivo na STS de 14/10/2008, quando se apreciou um caso oriundo do regime legal anterior a 2005.

Autores

  • é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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