CNJ discute como deve ser o futuro da Justiça Militar
11 de fevereiro de 2014, 17h21
Aos 205 anos de idade, a Justiça Militar se vê no centro de um debate sobre o sentido de sua existência. O Conselho Nacional de Justiça marcou para esta quarta-feira (12/2) um evento para discutir os caminhos e soluções possíveis para esse ramo do Judiciário, e uma das propostas, a que tem apoio do presidente do CNJ, o ministro Joaquim Barbosa, é transformar a Justiça Militar em uma especialização do Judiciário comum. Ou seja, acabar com a estrutura autônoma que hoje as Forças Armadas e as polícias militares têm.
O debate proposto pelo CNJ se divide em três capítulos, que se subdividem em outros três itens. Os capítulos são existência, competência e estrutura. A parte que trata da existência não depende do CNJ. Seria necessária pelo menos uma Proposta de Emenda Constiucional, mas o conselho está disposto a capitanear a iniciativa. O que se discute, nessa primeira parte, é se a Justiça Militar deve continuar a ser um ramo autônomo do Judiciário, com carreiras específicas e tribunais regionais, ou não. No caso de se concluir que não faz sentido deixar como está, a discussão passa a ser como deve ficar.
A JM tem a seu favor o peso da tradição. Foi o primeiro órgão judiciário do país, trazido por D. João VI, ainda em 1808 — ano em que a corte portuguesa aportou no Brasil e transformou a colônia em capital da metrópole. É a Justiça Militar, portanto, a responsável pelos primeiros movimentos de organização de um Poder Judiciário Brasileiro. Hoje, o que se pretende dentro do âmbito militar forense é ampliar a competência, atualmente apenas penal,para questões administrativas e de organização da carreira.
Existem diversos debates dentro dessa mesma pergunta fundamental: ela deve julgar civis? Em que situações? Ela deve julgar só os chamados crimes próprios de militares, como motim e deserção? Ou também pode julgar os crimes impróprios, como improbidade administrativa? “Tem muita coisa para transformar, temos que discutir os códigos penal e de processo penal, mas todos têm que participar desse debate”, afirma.
Uma questão crucial posta pela conselheira é a gestão administrativa. Todo o Judiciário passa pelo momento de rever suas práticas organizacionais, e o grande problema é o excesso de demanda acumulada que gerou acervos invencíveis. A Justiça Militar não sofre disso. A carga de trabalho nesse caso chega a ser mais de 90% menor do que na Justiça comum. A primeira análise é de que se trata do Judiciário ideal: poucos casos possibilitam a análise mais detida de todos os processos. “Seria”, concorda Luiz Frischeisen, “se os crimes não prescrevessem”, rebate.
O evento que discutirá a Justiça Militar é organizado pelo CNJ e acontece nesta quarta-feira (12/2) às 9h, na sede da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU). Além da conselheira Luiza Frischeisen, presidente do grupo de trabalho, participam também: os conselheiro Gilberto Valente e Saulo Casali; o juiz auxiliar da presidência do CNJ Clenio Schulze; o diretor do departamento de gestão estratégica do CNJ, Ivan Gomes Bonifácio; a diretora do departamento de pesquisas judiciárias, Janaína Penalva da Silva; e o diretor da ESMPU, Nicolao Dino.
Leia a entrevista de Luiza Frischeisen à ConJur:
ConJur — Já é possível saber em que direção vai o estudo?
Luiza Cristina Fonseca Frischeisen — Não. Quando tudo isso começou, foram feitas inspeções em alguns estados, na área da Justiça estadual. Existem três estados que têm o que chamamos de Tribunal de Justiça Militar: São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. A Constituição permite que os estados com mais de 20 mil homens e mulheres na PM tenham um TJ militar.
ConJur — Na PM?
Luiza Frischeisen — Na PM. A primeira coisa que devemos fazer é essa diferenciação. Existe uma Justiça Militar Federal, que trata das Forças Armadas, e uma Justiça Militar estadual, que é parte integrante da PM, que são os soldados e oficiais da PM e os bombeiros. Mas só os estados com mais de 20 mil homens na PM podem ter TJ Militar, e nem todos têm. Brasília e Rio de Janeiro poderiam ter e não têm. A Justiça Militar estadual nesses casos é uma especialização do TJ comum.
ConJur — E o que essas inspeções encontraram?
Luiza Frischeisen — Havia um grande número de processos prescritos num universo muito pequeno de processos. O número absoluto de processos era pequeno. A partir daí começou-se a fazer um diagnóstico da Justiça Militar com levantamento de dados de processos e de gastos de servidores, de número de processos. Esses dados estão no site do CNJ e agora estamos em outra fase, a de analisar que tipo de processo eles julgam.
ConJur — Por quê?
Luiza Frischeisen — Porque a Justiça Militar tem vários debates. A primeira questão é: a Justiça Militar é uma Justiça para quê? É para julgar só militar ou civil também? Ë em razão da pessoa ou em razão da matéria. É uma Justiça mista? Julga militares independente do crime que eles cometam, desde que estejam no exercício da função, ou só crimes específicos? Que seriam os crimes militares próprios e não os impróprios. Essa é uma primeira diferenciação importante.
ConJur — Existe essa definição?
Luiza Frischeisen — Não. Essa é uma definição clássica do Direito Penal, a do crime militar próprio e crime militar impróprio. A gente tem um Código Penal Militar e um Código de Processo Penal Militar. Isso dá muito discussão. Hoje, por exemplo, um oficial do Exército que esteja no batalhão de engenharia e esteja construindo o Terminal 3 do aeroporto de Guarulhos e, eventualmente, houver algum ilícito nessa construção, vai responder na Justiça Militar ou na Justiça comum? Quando um oficial do batalhão de engenharia, que é responsável pela engenharia, faz as obras lá da engenharia, desvia a escavadeira para ganhar um dinheiro extra, isso é um crime militar ou não? Entendeu?
ConJur — Quais seriam os crimes militares próprios?
Luiza Frischeisen — Dois crimes clássicos militares são a deserção e o motim. Tem PM que se amotina no quartel, como foi aquela coisa da Bahia, ou o controlador de voo da Aeronáutica. Mas ele pode no curso lá cometer um crime militar dito militar impróprio, mas que estará regulado lá no Código Penal Militar, e foi no exercício da função policial.
ConJur — Hoje há discussões a respeito da Justiça Militar no Supremo, como se o civil pode ser processado por um foro militar.
Luiza Frischeisen — O que está no Supremo hoje são três questões. A primeira está em ações diretas de inconstitucionalidade, se o civil pode responder a processo na Justiça Militar. Essa questão vem da Corte Interamericana, e lá já foi dito que não pode. E eles julgaram casos muito parecidos com o brasileiro. São casos que vieram do México e do Peru, onde as Forças Armadas são usadas também para efeito policial. Então, a não ser que esse militar esteja na rua, é muito difícil um civil cometer um crime militar, como desacato ou algo assim. Outra questão que está no Supremo é se quando o integrante das Forças Armadas está no exercício de força policial, chamado pelo governador naquela situação excepcional, se ele comete crime militar, se aquele ato é um ato militar ou não. Também existe Ação Direta de Inconstitucionalidade. E a outra questão é se o crime de pederastia foi recepcionado ou não pela Constituição de 1988.
ConJur — Em certo sentido a Justiça Militar é o ideal: é o Judiciário que recebe poucos processos e pode se dedicar a cada um deles.
Luiza Frischeisen — Seria se os crimes não prescrevessem e eles julgassem rápido. Tem que ter uma equação de estrutura. Tudo bem, a Suprema Corte dos Estados Unidos julga pouco, mas ela é eficiente, julga rápido. Então, meu amigo, você já tem pouco processo e por que não julga rápido? Tem muita coisa para ser discutida, mas a Justiça Militar tem de estar aberta a essa discussão.
ConJur — Pela carga de trabalho que eles têm, deveriam julgar mais?
Luiza Frischeisen — Eu acho que eles querem julgar essas infrações, como a Constituição fala. Por exemplo, na esfera federal, a Justiça Militar não julga questões cíveis, e na estadual julga. Algumas coisas administrativas. Na Constituição diz assim: “Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares do estado nos crimes militares definidos em leis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vitima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação nas praças”. A Justiça Militar Estadual julga ações cíveis, a militar federal, não. Compete ao juiz de Direito processar e julgar singularmente os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares. Mas para mudar isso teria de ser uma Proposta de Emenda à Constituição, o CNJ não pode fazer nada a não ser indicar um caminho, ou sugerir um projeto.
ConJur — Mas é como o ministro Joaquim Barbosa colocou naquela ocasião, sobre a necessidade de existir ou não uma Justiça Militar no Brasil?
Luiza Frischeisen — Não. A gente tem que evoluir, até porque isso passa por PEC. Não é o CNJ que vai dizer: “Olha, agora calculamos aqui e vamos extinguir esse negócio aí”. Pode ser a opinião dele, mas tem que ser levado ao plenário e tem a questão da PEC. Mas há muita coisa para fazer independentemente de PEC, ou de acabar com a Justiça Militar. Tem muita coisa para transformar, temos que discutir os códigos, mas eles não podem estar fechados ao debate.
ConJur — E eles estão?
Luiza Frischeisen — Há um discurso muito grande no STM, de dizer que “somos a justiça mais antiga” etc. Gestão é uma coisa que está se discutindo em todas as justiças. Nós temos que discutir gestão, temos que discutir eficiência e adequação à Constituição e aos valores da Constituição. Um exemplo: há grande concentração das Forças Armadas no sul do país, no Rio Grande do Sul, porque havia um grande número de tropas no Rio Grande do Sul. Hoje as tropas do Exército, que é o maior contingente da Justiça Militar, estão no norte. Então, o juiz do Amapá tem mil processos, e o juiz de uma auditoria do Rio Grande do Sul tem cento e poucos processos. Aí precisa investigar alguma coisa no norte e não tem uma auditoria. Há muita coisa para discutir. Fora, por exemplo, vamos supor que a PEC da desmilitarização da polícia militar passe, que é a PEC 51. E aí? A polícia militar deixou de ser militar? O que faz com a justiça militar estadual? Vai ter que incorporar à Justiça comum?
ConJur — A Justiça Militar se afasta do centro das discussões?
Luiza Frischeisen — Exatamente. A gente tem até o papel de divulgar a existência da Justiça Militar, entende? Até pras pessoas saberem que ela existe, que ela cumpre um papel, é importante, muito importante ter esse ramo separado, porque esse valor “hierarquia” está intrínseco nos tipos penais. Agora, todo mundo tem que discutir. A Justiça Militar não é só o STM, não são só os TJs militares, são os juízes auditores, o sistema de justiça, os promotores.
ConJur — Mas isso não é inverter a discussão? Em vez de dizer “a Justiça Militar existe”, não seria melhor criar um jeito para que ela não precisasse mais ser do tamanho que é?
Luiza Frischeisen — Isso eu não sei. Aí você está querendo concluir, e eu ainda não concluí. Você já chegou na conclusão, está dando um prognóstico, e eu ainda estou no diagnóstico.
ConJur — Esse argumento da história não é um tanto estranho? Quer dizer, “em nome da tradição devemos manter tudo como está”.
Luiza Frischeisen — Eu não digo que é um argumento passível de ser desconstruído. O Poder Judiciário preserva e a ele interessa a questão da tradição, da tradição positiva. Argumentam também que o Superior Tribunal Militar na época da ditadura acabou sendo até um garantidor, quando tinha processo. Mas isso é outra discussão. Agora, o que eu acho é que não se pode ficar preso a isso, tem que pensar no presente e no futuro. Então, tem que pensar a Justiça Militar hoje, ainda que se invoque o passado para saber porque se chegou ao que é hoje, mas tem que se pensar o futuro. E o futuro é outra coisa. O futuro é processo eletrônico, é gestão, é eficiência.
ConJur — Pela carga de trabalho que eles têm, deveriam julgar mais?
Luiza Frischeisen — Eu acho que eles querem julgar essas infrações, como a Constituição fala. Por exemplo, na esfera federal, a Justiça Militar não julga questões cíveis, e na estadual julga. Algumas coisas administrativas. Na Constituição diz assim: “Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares do estado nos crimes militares definidos em leis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vitima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação nas praças”. A Justiça Militar Estadual julga ações cíveis, a militar federal, não. Compete ao juiz de Direito processar e julgar singularmente os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares. Mas para mudar isso teria de ser uma PEC, o CNJ não pode fazer nada a não ser indicar um caminho, ou sugerir um projeto.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!