Processo Novo

Justiça não pode ser medida apenas em números

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16 de setembro de 2013, 8h00

Spacca
Continuo, no texto desta segunda-feira (16/9), a tratar do tema a que me referi na semana passada, sob outra perspectiva: que devemos fazer, para que a jurisprudência seja íntegra?

São várias as condições que devem estar presentes para que haja um ambiente propício à criação de uma jurisprudência constante. Tenho tentado, em alguns textos da coluna Processo Novo, aqui na ConJur, expor algumas delas. No texto de hoje, examinarei dois assuntos que se relacionam e dizem respeito ao papel que deve ser exercido Superior Tribunal de Justiça, no Direito brasileiro. Ao final, desejo ter demonstrado o que não se deve fazer, sob pena de se eliminar qualquer possibilidade de que haja, entre nós, uma jurisprudência íntegra.

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A técnica de julgamento prevista para os recursos especiais repetitivos (artigo 543-C do CPC) — assim como para os recursos extraordinários com repercussão geral (artigo 102, parágrafo 3º da Constituição, e artigos 543-A e 543-B do CPC) — em muitos problemas. Não está claro, por exemplo, qual o critério a ser observado para a escolha dos recursos especiais “representativos da controvérsia” (artigo 543-C, parágrafo 1º do CPC) que servirão de base para o julgamento e fixação da tese a ser observada em relação aos recursos que ficaram sobrestados (artigo 543-C, parágrafo 7º do CPC) e em relação àqueles que vierem a ser interpostos posteriormente. Semelhantemente, os requisitos que permitem afirmar que um recurso extraordinário tem repercussão geral não são muito claros (arigo. 543-A, parágrafo 1º do CPC).

É grave, também, a situação decorrente da demora do julgamento de recursos especiais e extraordinários que observem tais técnicas. Milhares de processos ficam sobrestados, por muitos anos, aguardando a decisão do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. Por exemplo, no começo do ano de 2012 estimava-se que mais de 260 mil processos aguardavam o julgamento de recursos extraordinários com repercussão geral, pelo Supremo Tribunal Federal.  Esse número, hoje, deve ser muito maior. Em relação a alguns temas, há dezenas de milhares de processos sobrestados (por exemplo, há mais de 178 mil recursos aguardando decisão em relação ao tema 285, referente a diferenças de correção monetária de depósitos em caderneta de poupança, não bloqueados pelo Banco Central, por alegados expurgos inflacionários decorrentes do Plano Collor II).

Essa situação é preocupante. É natural, pois, que os próprios ministros do Superior Tribunal de Justiça afirmem que têm medo dos recursos repetitivos.

A falta de critérios claros na lei para o uso de tal técnica, aliada ao entusiasmo exagerado com que dela se fez uso, fez com que se chegasse a situações insustentáveis. O que fazer, por exemplo, quando, após se decidir que a lei deve ser interpretada neste ou naquele sentido, pouco tempo depois os membros do tribunal mudam de opinião? Como se corrigir o erro, em relação aos recursos que outrora se encontram sobrestados e foram decididos com base no sentido que, antes, se considerava correto?

O problema foi suscitado recentemente, na Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça. Discutia-se sobre a conveniência de se observar o procedimento previsto no artigo 543-C do CPC, quando fosse o caso de se alterar o sentido em que vinha se manifestando a jurisprudência do tribunal. Ao final, segundo se noticiou, decidiu-se que pronunciamentos a respeito de recursos especiais repetitivos deveriam observar o quórum mínimo de dois terços. Na ocasião, afirmou o ministro Napoleão Maia que “os recursos repetitivos deveriam confirmar uma jurisprudência, não desafiá-la”. Se o Superior Tribunal de Justiça passar a observar esse critério, viragens jurisprudenciais não seriam permitidas, no julgamento de recursos especiais repetitivos…

Essa decisão demonstra a necessidade de se estabelecer bases para a existência de uma jurisprudência íntegra, no Direito brasileiro. Técnicas como a prevista no artigo 543-C do CPC não podem ser usadas apenas para se eliminar uma quantidade muito grande de processos. É inconcebível que se defenda que os ministros do Superior Tribunal de Justiça profiram uma decisão qualquer, apenas para se resolver, desde logo, uma série de processos. Ora, a Justiça não pode ser medida apenas em números.

Para muitos, um recurso especial repetitivo, assim como um recurso extraordinário com repercussão geral, funcionaria como leading case, tal como se estivéssemos um sistema de common law (o uso da expressão no próprio site do STF — clique aqui, para download — demonstra isso). Proferida a decisão (que, de acordo com esse modo de pensar, seria, automaticamente, um precedente), sua observância seria obrigatória.

O julgamento realizado recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça a que me referi acima demonstra, contudo, que tal modo de pensar não condiz com o que sucede na prática jurisprudencial brasileira: viragens jurisprudenciais frequentes, divergências de entendimentos praticamente insolúveis entre turmas dos próprios tribunais superiores, e uma tendência em solucionar os problemas da jurisdição apenas com a redução forçada de número de processos em trâmite, sem um correspondente aumento da qualidade da prestação jurisdicional. A preocupação, manifestada pelo ministro Napoleão Maia, no caso referido, deve ser compartilhada por todos nós: o uso desmedido do procedimento previsto no artigo 543-C do CPC pode levar tal técnica ao colapso.

Parece correto o entendimento, manifestado na decisão noticiada, no sentido de se utilizar a técnica prevista no art. 543-C do CPC apenas quando houver uma série de decisões que, interpretando um texto legal para aplicá-lo a casos, sejam proferidas em um mesmo sentido. E mais: tal entendimento deve ser compartilhado pela comunidade, e não apenas por parte dela.

Alguém poderá dizer que a constância da jurisprudência não é requisito expresso no artigo 543-C do CPC, ou que esse artigo exige apenas que os votos dos ministros sejam tomados por maioria simples, para se fixar uma tese no julgamento de recursos especiais repetitivos. Mas sem uma jurisprudência constante que ostente entendimento amplamente compartilhado, o resultado de tal julgamento será frágil, e tenderá a não ser observado pelo próprio tribunal — sofrendo várias tentativas de revisão — e por outros órgãos julgadores. Sendo assim, o Superior Tribunal de Justiça acabará falhando no seu papel de indicar qual o correto modo de interpretar a lei federal.

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Tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição 209/2012, que cria o requisito da “relevância da questão federal” para o recurso especial. [O texto integral da proposta pode ser lido aqui]

A proposta foi concebida pelos próprios ministros do Superior Tribunal de Justiça. Segundo a ideia que norteou sua criação, com o requisito o tribunal deixaria de julgar temas “irrelevantes”, como “multas de trânsito, cortes de fornecimento de energia, briga entre condôminos, cobrança de contas d’água, enfim, controvérsias corriqueiras da vida diária”.

Tais temas são, de fato, destituídos de relevância? O próprio Superior Tribunal de Justiça tem súmulas a respeito (p.ex., multa de trânsito, as de número 312 e 434; água, as de número 407 e 412; condomínio, as de número 260 e 478…), o que demonstra que a generalização exposta na notícia parece não ter fundamento.

Aprovada a proposta de emenda constitucional, os dispositivos das leis federais que regulam os assuntos que, de acordo com Superior Tribunal de Justiça, não teriam relevância, poderão ser interpretados e aplicados de modo diferente, em cada um dos estados do país. Teremos, então, leis federais, mas normas (ou, com outras palavras, o sentido como se interpreta e aplica a lei) diferentes em cada um dos estados, o que deve vir a ocorrer em relação a controvérsias “corriqueiras” relativas a Direito Bancário, do Consumidor, Tributário, Administrativo, Penal… O Direito Federal, sob esse prisma, acabaria sendo “estadualizado”.

Ora, se o Superior Tribunal de Justiça, através do recurso especial, atua para promover a uniformidade de interpretação da lei federal, tal proposta de emenda constitucional tende a desvirtuar seu papel. Por isso, entendo que na hipótese de cabimento prevista no artigo 105, inciso III, alínea c da Constituição (quando a decisão recorrida “der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal”), a relevância da questão federal está in re ipsa, pois diz respeito ao próprio sentido da existência do Superior Tribunal de Justiça, no Direito brasileiro (por semelhantes razões, tenho sustentado que deve ser reconhecida a repercussão geral do recurso extraordinário quando se der a disposição constitucional interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal — escrevi nesse sentido na obra CF Constituição Federal comentada, 2.ed., Ed. Revista dos Tribunais, comentário ao artigo 102, III da Constituição).

Há outras razões para não concordar com a Proposta de Emenda Constitucional 209/2012. O problema apontado, porém, basta aos propósitos deste texto. Se aprovada a PEC, deveria o requisito restringir-se à hipótese prevista na alínea a do artigo 105, III da Constituição. Não sendo assim, o Superior Tribunal de Justiça deixará de realizar a tarefa que lhe foi atribuída pela Constituição, que é a de zelar pela uniformidade de inteligência da norma federal infraconstitucional.

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Os dois problemas acima referidos demonstram como é possível, seja com o mal uso de mecanismos como o previsto no artigo 543-C do CPC, seja com a restrição do acesso ao Superior Tribunal de Justiça, desvirtuar o papel desse tribunal, que é exatamente o de velar pela uniformidade de interpretação do Direito Federal. Não se consegue obter tal uniformidade fixando “precedentes” não baseados em jurisprudência constante, ou criando restrições que podem fazer com que se dê, em cada um dos tribunais de justiça dos estados e dos tribunais regionais federais, um sentido diferente à lei federal.

Ao fim e ao cabo, com isso não se obtém jurisprudência íntegra, mas, ao contrário, jurisprudência inconstante, movediça e artificial.  

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