Cassação automática de mandato é imposição tirânica
7 de setembro de 2013, 12h49
* Texto publicado originalmente na Folha de S.Paulo do dia 7 de setembro de 2013.
O STF deu uma ziguezagueada na resposta ao tema. Decidiu, por apertada maioria, de uma maneira no caso do mensalão e de outra, já com os novos ministros, no caso do senador Ivo Cassol.
A controvérsia no mensalão parece ter raízes mais políticas do que jurídicas. É que essa matéria no direito, gostemos ou não, é certa como a luz do dia. Diz o artigo 55 da Constituição Federal, em regra especialmente definida para regular a perda do mandato do parlamentar, que este o perderá quando "sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado". Já o parágrafo 2º do mesmo dispositivo explicita que, nessa hipótese, "a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal…". Mais claro e direto é impossível.
Os que sustentam que a última palavra quanto à perda do mandato em decorrência da condenação é do Judiciário fazem-no com fundamento no art. 15, III, da Constituição, o qual prevê a perda dos direitos políticos em caso de condenação. Não é razoável e nem lógico — dizem os adeptos dessa corrente — que o parlamentar com os direitos políticos suspensos possa continuar a exercer o mandato.
José Afonso da Silva, um dos maiores constitucionalistas brasileiros, é categórico quanto à necessidade da manifestação da Casa a que o parlamentar pertença para a perda de seu mandato. Afirma que "aí se instaura um processo político de apuração das causas que justificam a decretação da perda do mandato. Trata-se de uma decisão constitutiva" ("Curso de Direito Constitucional Positivo", p. 540).
O ministro Teori Zavascki, em artigo doutrinário, escrito muito antes da polêmica instaurada com o processo do mensalão, também perfila o mesmo entendimento. Sustenta que se trata de uma "estranha exceção", mas que pode representar "um mecanismo de defesa".
O jurista Gilmar Ferreira Mendes, na sua alentada obra de direito constitucional, lembra que em antigo precedente do STF havia sido fixada a intelecção de que, quanto a parlamentares, vale a norma especial do art. 55, VI e parágrafo 2º da Constituição. Como juiz, votou diferente no caso do mensalão.
O automatismo da perda do mandato decorrente da condenação criminal pretendido por alguns, gostemos ou não, simplesmente não existe. Tal interpretação ignora a sistematicidade da Constituição que, como, desde os anos 60, advertia Bobbio, não é um amontoado de regras esparsas, e sim um conjunto que deve ser interpretado no seu todo.
Ir para o norte quando a lei, certa ou erradamente, indica o sul não é apenas uma forma de violentar a Constituição, mas o próprio regime democrático. É também ignorar as razões históricas que determinaram a expressa proteção especial ao detentor do mandato popular. Saíamos de uma ditadura na qual arbitrariedades eram cometidas, inclusive com condenações pelo Judiciário, sobretudo o militar. Portanto, não poderia o regime democrático deixar de prever mecanismos de resguardo para evitar que arbitrariedades, de quaisquer naturezas, implicassem, mecanicamente, na perda do mandato popular.
Pode ser que, sob o signo da democracia, a regra protetiva não tenha mais razão de ser e, assim como foi revisto o regime da imunidade formal — que fazia o processo penal contra o parlamentar depender de prévia licença —, deva-se rever a regra que impõe a manifestação da Casa a que pertença o parlamentar em caso de condenação emanada do Judiciário. Enquanto, porém, não houver reforma da Constituição, o Judiciário deve aplicar a regra de clareza solar, sob pena da mais absoluta subversão do sistema democrático, com o Judiciário impondo-se tiranicamente sobre a regra democraticamente discutida e votada.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!