Juíza do CNJ cobra ações do Executivo para ressocialização
13 de novembro de 2013, 5h39
Para Marina Gurgel, o Poder Executivo é fundamental na solução do problema. Entretanto, ela relata que chefia do governo de Sergipe não esteve presente em reunião no dia 29 de outubro, quando se discutiu a questão. Participaram representantes do Poder Judiciário local, do Ministério Público, da Direção da Fundação Renascer (que administra as unidades), da Procuradoria do Estado e da Secretaria Estadual de Assistência Social.
Após a reunião, a direção da Fundação Renascer foi exonerada. Mas, de acordo com a Coordenadoria da Infância e Juventude do TJ-SE, nenhuma proposta para a solução dos problemas das unidades foi apresentada.
No mesmo dia, a 17ª Vara Cível de Aracaju determinou o prazo de 60 dias para que os adolescentes fossem transferidos do Centro de Atendimento ao Menor para um local adequado e que, após isso, nenhum menor fosse mantido ou recebido na unidade. A Ação Civil Pública foi movida pela Defensoria.
“A eficácia da medida aplicada pelo juiz, na sentença, depende do empenho do Poder Executivo, responsável pela sua execução”, explica a juíza, que reconhece que o problema não é exclusivo de Sergipe.
Em sua avaliação, o apoio técnico, que deveria ser do Estado, muitas vezes é substituído pela atuação de membros do Judiciário. “O que se vê atualmente é o mau funcionamento do sistema socioeducativo por falta de investimentos e indisposição dos gestores públicos”, diz.
Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Marina aponta que o acesso a drogas como crack é mais um ingrediente em uma mistura que pode ter um desfecho desastroso. Ela aponta que 74% dos jovens internos no país têm acesso a drogas e cobra um protocolo de tratamento. “Há um tabu muito forte em face a políticas de redução de danos nesta órbita. Estamos segregando dependentes químicos e criando, pouco a pouco, uma bomba relógio.”
Leia trechos da entrevista:
ConJur — Qual era o propósito da visita às unidades de internação de menores de Sergipe?
Marina Gurgel — Conhecer de perto o contexto das rebeliões ocorridas recentemente nas unidades e tentar uma reunião de sensibilização política com o governador e demais agentes estatais. O CNJ recebeu um ofício solicitando a presença do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Medidas Socioeducativas (DMF) no local na tentativa de mediar uma solução para os graves problemas identificados pela Coordenadoria da Infância e Juventude do TJ-SE. Esses problemas não são novos.
ConJur — Desde quando eles existem?
Marina Gurgel — Foram detectados pelo CNJ desde a primeira visita realizada por meio do Programa Justiça ao Jovem, em 2010, que apontava superlotação e negação de direitos mínimos aos adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas em meio fechado. A verdade é que os problemas verificados não são exclusivos daquele estado. Os problemas que afetam diretamente a execução destas medidas, de responsabilidade do Poder Executivo estadual, passam pela falta de investimentos em reforma e manutenção das unidades e a completa ausência de um projeto pedagógico para os adolescentes privados de liberdade.
ConJur — O que esse projeto pedagógico engloba?
Marina Gurgel — Em se tratando de adolescentes que cometem atos infracionais, esse projeto pedagógico implica na profissionalização, escolarização, tratamento contra drogadição e assistência social aos familiares, para que possam retornar ao lar após o cumprimento da medida. Ter uma referência afetiva que lhes dê sustentação emocional e um propósito existencial.
ConJur — E qual o perfil dos internos?
Marina Gurgel — Na maioria das vezes, são jovens que vivenciaram violência doméstica, conviveram com o alcoolismo desde a tenra idade e encontraram no tráfico uma promessa de sobrevivência e inclusão na cadeia de consumo. Deste jovens, 74% tem envolvimento com o uso de substancias psicoativas, dentre as quais, o crack. Esta é a média nacional identificada na pesquisa Panorama Nacional, do CNJ.
ConJur — O que a senhora viu na visita?
Marina Gurgel — Verificamos adolescentes confinados em celas imundas, sem banho de sol, algumas delas inundadas por água de esgoto, o que forçava os adolescentes a se dependurarem sobre as camas e grades. Houve grande evasão de adolescentes de ambas as unidades. As celas não tinham iluminação e aeração. Não havia qualquer atividade pedagógica. Os adolescentes afirmavam em voz uníssona que estavam confinados. Reclamavam o direito mínimo de tomarem banho de sol e de saírem das celas. Havia celas destruídas com imensos buracos após a rebelião. Também houve relatos de maus tratos e violência praticados pelos próprios agentes socioeducadores.
ConJur — Como o Estado se posiciona diante dos internos?
Marina Gurgel — De modo geral, não ha mínimo investimento no sistema socioeducativo. E quando me refiro a investimento, quero incluir estrutura física e, sobretudo, plano pedagógico. É comum que os próprios adolescentes reclamem em face da ociosidade, diante da inexistência de atividades voltadas à educação ou profissionalização. Algo igualmente preocupante é a falta de acesso a tratamento contra a drogadição, que inviabiliza qualquer plano de ressocialização.
ConJur — De que maneiro isso se agrava?
Marina Gurgel — Sem medidas de cunho assistencial, não há recuperação. Atualmente não se tem nem uma coisa nem outra, pois os adolescentes, dependentes químicos, não têm acesso a tratamento sequer ambulatorial. O fato é que o país não conta com um protocolo de tratamento contra drogas devastadoras como o crack. Há um tabu muito forte em face de políticas de redução de danos nesta órbita. Quando a situação pessoal exige tratamento mediante internação, a situação ainda é pior. Estamos segregando dependentes químicos e criando, pouco a pouco, uma bomba relógio de carne e osso.
ConJur — Qual é o panorama em relação ao crack?
Marina Gurgel — Em estudo recente, elaborado pela Fiocruz em parceria com o Ministério da Justiça, detectou-se que o contingente de adolescentes dependentes químicos por crack chega a 14%. Temos uma população, apenas nas capitais, de mais de 370 mil dependentes de crack, dos quais 50 mil aproximadamente estão nesta faixa etária, segundo aquela pesquisa. Importante chamar a atenção para este grave problema e convocar a população para que cobre uma resposta mais efetiva mediante a implementação de políticas públicas curativas. Infelizmente, quando a prevenção e profilaxia não funcionam a contento, a remediação do problema tem um custo humano absurdamente maior e mais difícil. Se o Estado falha na prevenção, é inaceitável que seja omisso no tratamento e ressocialização.
ConJur — O que o CNJ pode fazer diante dessa situação?
Marina Gurgel — O CNJ tem ingerência diante de membros e servidores do Poder Judiciário e Cartórios Extrajudiciais, tão somente. Contudo, conhecendo o funcionamento da Justiça Infanto-Juvenil e do modo como vêm sendo executadas as medidas socioeducativas por parte do Poder Executivo, o conselho busca mobilizar esforços conjuntos a favor da otimização do sistema. Isso porque, em se tratando dessa matéria, o trabalho de todos os atores é interdependente. A eficácia da medida aplicada pelo Juiz, na sentença, depende do empenho do Poder Executivo, responsável pela execução da medida aplicada, por exemplo.
ConJur — Há algo sendo feito?
Marina Gurgel — O Poder Judiciário já se deu conta disso e já temos exemplos de protagonismos na articulação e fortalecimento das medidas socioeducativas em meio aberto, de responsabilidade do Poder Executivo municipal, como é o caso do TJ-SE, por meio de sua coordenadoria. O apoio técnico, que deveria partir do Estado, vem sendo dado, muitas das vezes, pelos atores do sistema de Justiça, diante da inação estatal. É preciso que os Estados assumam esse protagonismo, prestando o apoio necessário aos municípios, como determina a Lei do Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo). Só assim evitaríamos uma intervenção tardia do Estado, que deixa de impedir o envolvimento do adolescente com atos infracionais mais graves.
ConJur — O executivo é, então, o grande responsável?
Marina Gurgel — O que se vê atualmente é o mau funcionamento do sistema socioeducativo por falta de investimentos e indisposição dos gestores públicos. Partem para a segregação como única medida sem se preocuparem com um projeto efetivo de ressocialização. Prestam um desserviço à sociedade, pois fazem uma "figuração" para a população sem resolver o problema. Insisto que, a continuar assim, estaremos alimentando uma bomba relógio que só ira incrementar e recrudescer os problemas já existentes no sistema carcerário.
ConJur — A senhora vê falhas no modelo de recuperação?
Marina Gurgel — Acredito que se há falhas graves, que comprometem a ressocialização. Elas estão mais localizadas na execução do modelo do que no próprio modelo. A verdade é que o atual modelo, existente desde 1990, nunca foi implementado. Não contamos com medidas socioeducativas em meio aberto articuladas nos municípios. As medidas socioeducativas em meio fechado, por sua vez, pautam-se, atualmente, na negação de direitos que vão além da liberdade restringida na sentença. Sem um plano pedagógico resumem-se a depósitos humanos.
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