Constituição e Poder

Canotilho torna-se Doutor Honoris Causa pela UFMG

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5 de junho de 2013, 19h54

Spacca
Uma justa homenagem ao grande jurista
Para minha alegria pessoal, tomei conhecimento de que a festejada e vetusta Casa de Afonso Pena, como é carinhosamente conhecida a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), concederá, no próximo dia 6 de junho de 2013, o título de Doutor Honoris Causa ao grande constitucionalista português, José Joaquim Gomes Canotilho, professor aposentado da Universidade de Coimbra, reconhecidamente um dos maiores juristas de nossos tempos.

É, sem dúvida, uma daquelas raras ocasiões em que, no Brasil, se presta homenagem a quem realmente merece. Consoante nos informa a célebre instituição acadêmica mineira, entre outros tantos méritos, o professor Canotilho é sem dúvida “o autor estrangeiro que mais influenciou a doutrina constitucionalista brasileira após o advento da Constituição Republicana de 1988”.

Como tive ocasião de escrever aqui mesmo na ConJur, “o notável professor edificou uma vida voltada ao estudo do Direito, onde o que mais ressalta é o compromisso permanentemente renovado com a dignidade da pessoa humana, com a consolidação da democracia e com a efetivação dos direitos fundamentais. Herdeiro da tradição iluminista, sempre confiante na capacidade do homem de conformar o próprio destino, Canotilho acabou tendo profunda influência no desenvolvimento do Direito Constitucional que se ensina nas Academias brasileiras e que tem aplicação em nossos tribunais. Divergindo de um antigo costume de intelectuais estrangeiros, entretanto, jamais ministrou conselhos, ou receitas, para os nossos problemas. Ao contrário, vezes sem conta, repetiu lá fora que via nos juristas brasileiros o que havia de mais criativo no estudo do Direito Constitucional e, comprovando essa admiração, dedicou a sua principal obra, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, aos seus alunos brasileiros.”

Além disso, quem conhece o professor Canotilho sabe: “poucos juristas terão tido a mesma preocupação em se manter atualizado com tudo o que há de mais contemporâneo na sua área de conhecimento. E tal preocupação jamais se deixou confundir — de forma alguma — com certo espírito novidadeiro, do novo pelo novo. Nada mais infenso ao espírito sóbrio e honesto com que sempre se portou o professor José Joaquim Gomes Canotilho ao fazer ciência. O que há — e sempre houve — na produção intelectual do Mestre de Coimbra — e isso facilmente se percebe — é uma preocupação permanente de que as teorias por ele empregadas sejam mesmo adequadas aos objetos a que se propõem explicar”[1].

Como acabamos por concluir vários dos alunos que tivemos a honra e a felicidade de frequentar o seu gabinete de estudos na Universidade de Coimbra e de dividir com ele algumas das nossas preocupações teóricas, “graças a uma evolução constante e uma busca sem tréguas pela maior atualização possível de suas posturas teóricas, sem perder em nada na reconhecida estruturação metódica, teórica e principiológica de sua produção intelectual, não nos era incomum constatar que o pensamento do Professor Canotilho muito frequentemente não estava onde nós o colocávamos, estando, na maioria das vezes, alguns anos adiante”[2].

Tudo considerado, nada mais adequado do que a homenagem que a Casa de Afonso Pena teve a sensibilidade histórica de lhe prestar.

A dívida com aqueles que nos antecedem
Com o justo galardão, a UFMG estará também, de alguma maneira, em nome de todos os brasileiros, promovendo a correção de uma grave injustiça histórica. De fato, não obstante o inestimável serviço prestado pelo professor Canotilho à nação brasileira, o que é especialmente sentido nas faculdades de Direito e nos nossos tribunais, ao que se sabe, é a primeira vez que o grande jurista português recebe, em nosso país, a merecida honraria. Considerada a indiscutível contribuição do professor Canotilho à democracia e ao nosso Direito Constitucional, a demora da academia brasileira em lhe prestar semelhante homenagem só pode mesmo ser explicada com a inteligência de Alexandre Dumas, que, ao redigir suas memórias, deixou observado que “há favores tão grandes que só podem ser pagos com a ingratidão”.

É de se louvar, pois, a Faculdade de Direito da UFMG por essa relevante manifestação de memória e de justiça histórica. Um maior respeito ao passado talvez seja a conduta moral mínima que devemos àqueles que nos antecederam. Infelizmente, insistia Fredric Jameson, em seus estudos sobre a atual sociedade de consumo, nos tempos pós-modernos, todos parecem viver um eterno presente no qual as experiências e as conquistas humanas que compõem a história, por múltiplas e fragmentadas que sejam, por difíceis e sofridas que se revelem, são absolutamente corroídas por um arrogante desprezo de nossas gerações com relação ao passado, ao que se soma uma irresponsável e incompreensível despreocupação com o futuro. Tudo parece que sempre esteve aí à nossa disposição e tudo parece que sempre estará, independente do esforço e da luta daqueles que nos antecederam.

Em famoso poema, dedicado “àqueles que nascerão depois” (An die Nachgeborenen), Bertolt Brecht presta um justo tributo às gerações passadas, concitando os homens futuros a não esquecerem dos tempos difíceis nos quais aqueles que lhes antecederam tiveram que construir o presente e o futuro que lhes deixarão como legado. Pois bem, do ponto de vista prático, toda a vida do professor Canotilho — em boa parte das vezes, em condições históricas bem adversas — esteve voltada à concretização das constituições democráticas — aí incluída a Constituição brasileira de 1988 — que surgiram na terceira quadra do século passado, como resultado direto da luta travada por povos e minorias de todos os continentes. Valho-me, portanto, de alguns versos do grande pensador alemão para também prestar a minha homenagem ao grande jurista português:

Aos que virão depois
“Realmente, vivemos tempos sombrios.
Uma palavra sem malícia é sinal de estupidez.
Uma testa sem rugas significa indiferença.
Aquele que ri é apenas porque
Ainda não recebeu a terrível notícia.
Que tempos são esses, em que
Conversar sobre árvores é quase um crime,
Pois implica silêncio sobre tantas injustiças?
(…)
Eu vim para a cidade no tempo da desordem,
Quando a fome reinava.
Eu estive entre os homens no tempo da revolta
E me revoltei ao lado deles.
(…)
Assim se passou o tempo
Que me foi dado sobre a Terra.
Vocês, que irão emergir
Das ondas em que nós perecemos,
Pensem, quando falarem das nossas fraquezas,
Dos tempos sombrios de que tiveram a sorte de escapar”.

Portanto, penso que todos os brasileiros devem saudar o extraordinário gesto de gentileza acadêmica e de memória histórica agora manifestado pela Faculdade de Direito da UFMG.


[1] Néviton Guedes, in Prefácio ao livro Canotilho e a Constituição Dirigente, organizado por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, RJ: Renovar, 2003, p 10.
[2] Néviton Guedes, in Prefácio ao livro Canotilho e a Constituição Dirigente, organizado por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, RJ: Renovar, 2003, p 10/11.

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