Avaliação de especialistas

"Transcrição total de escutas permite defesa melhor"

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12 de fevereiro de 2013, 7h26

Quando o Supremo Tribunal Federal, em 2009, permitiu definitivamente o acesso dos advogados a inquéritos policiais em andamento contra seus clientes, com a publicação da Súmula Vinculante 14, resolveu boa parte do desequilíbrio entre defesa e acusação nos processos criminais, principalmente nos decorrentes de grandes operações da Polícia. Nesta quinta-feira (7/2), a corte aperfeiçoou a obra ao determinar que os áudios de interceptações telefônicas feitas pela Polícia devem ser transcritos na íntegra, e não mais apenas com relação a trechos de interesse da acusação. Na opinião de especialistas ouvidos pela ConJur, se a decisão for seguida por juízes e tribunais, será o fim da rotina impossível, imposta aos defensores, de ter de ouvir, em apenas dez dias — prazo para apresentação de defesa preliminar de acusados — milhares de horas de gravações telefônicas grampeadas.

Ao julgar a Ação Penal 508, nesta quinta, o Plenário do Supremo, por maioria, reconheceu que a degravação das escutas é parte indissociável da regra que autoriza as interceptações, a Lei 9.296/1996. A lei prescreve que sempre que houver a gravação da comunicação, será determinada sua transcrição. Segundo o relator do processo, ministro Marco Aurélio, no caso concreto não houve transcrição integral de nenhuma conversa envolvendo o réu e os demais envolvidos, constando nos autos apenas trechos de diálogos, gravados em dias e horários diversos.

Em Agravo Regimental protocolado no Supremo, a Procuradoria-Geral da República alegou que a mídia entregue aos advogados do caso com as gravações era suficiente para proporcionar o contraditório da defesa. Para a acusação, após esperar a fase final da ação penal para só então pedir a degravação do áudio, a defesa pretendeu protelar a decisão para que os crimes prescrevessem. Já a defesa alegou que a Lei de Interceptações exige a transcrição integral, mas que ela queria transcritos apenas os trechos onde o réu fora citado.

"A existência de processo eletrônico não implica o afastamento da Lei 9.296/1996. O conteúdo da interceptação telefônica verificada, registrado em mídia, há de passar pela degravação, afirmou o ministro Marco Aurélio em seu voto, seguido pela maioria do Plenário do Supremo nesta quinta — clique aqui para ler. "A formalidade é essencial à valia, como prova, do que contido na interceptação telefônica."

Em outubro, o advogado paulista Cícero José da Silva teve indeferido um pedido de liminar em Habeas Corpus pelo ministro Celso de Mello, do Supremo — clique aqui para ler. Ao negar o pedido, o ministro afirmou que sua decisão se baseava no princípio da colegialidade — já que a jurisprudência do Supremo, firmada no Inquérito 2.424, era de que a transcrição integral não era necessária —, mas que, pessoalmente, discordava da posição. Agora, após a mudança de entendimento da corte, o criminalista já prepara um pedido de reconsideração ao ministro — clique aqui para ler o pedido de Habeas Corpus. "A condenação se baseou em uma interceptação ilegal, a cujo conteúdo a defesa não teve acesso satisfatório", afirma. Seu caso demanda não só a transcrição, mas também a tradução de diálogos com estrangeiros.

Segundo o criminalista Celso Vilardi, do escritório Vilardi Advogados, a decisão desta quinta do STF soluciona parte de um problema decorrente de interceptações que se prolongam. Segundo ele, embora a lei preveja que o prazo das escutas não ultrapasse o período de 15 dias, renováveis por outros 15, não é raro durarem até um ano e meio. "Mesmo que o advogado gaste 14 horas por dia para ouvir os áudios, jamais conseguirá apresentar defesa preliminar no prazo de dez dias, como prevê a lei", afirma.

Para o advogado, conhecido por derrubar operações célebres da Polícia Federal com base em alegações de nulidade de provas — o currículo inclui Midas, Cana Brava, Kaspar II e a célebre Castelo de Areia —, embora se tenha acesso aos inquéritos, os CDs com os áudios costumam chegar até meses depois, uma vez que não se pode ter acesso a áudios de réus que sejam defendidos por outros advogados, o que exige a separação dos arquivos. "Nesse período, o prazo não corre, mas isso atrapalha a compreensão geral do processo. O Ministério Público tem acesso a tudo à medida que os dados são colhidos." Segundo Vilardi, isso obriga os advogados a pedir, constantemente, a prorrogação dos prazos para formular a defesa. "O ideal seria que, conforme a interceptação vá sendo feita, seja também incorporada aos autos." Ele afirma que os juízes de primeiro grau não têm o hábito de reconhecer a nulidade do processo no caso de falta de transcrição integral.

Antonio Sérgio de Moraes Pitombo, do Moraes Pitombo Advogados, lembra que, geralmente, os trechos transcritos pela Polícia para incorporar os processos criminais pinçam apenas o que interessa à acusação e tiram frases do contexto, o que seria evitado com a transcrição integral dos diálogos. "É uma prática kafkiana. Em interrogatórios, a Polícia reproduz trechos sem sentido das gravações para que o acusado diga o que significam", conta. "A Polícia supõe conhecer jargões usados no crime e interpreta diálogos como se identificassem práticas criminosas", diz Pitombo. "O problema só aumentou quando as interceptações começaram a ser usadas como único elemento de prova."

Nos debates travados nesta quinta pelos ministros do Supremo, o presidente da corte, ministro Joaquim Barbosa, afirmou que exigir a transcrição integral das escutas "inviabilizará o processo penal". É o que também afirma o desembargador Alex Zilenovski, da 2ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo e ex-corregedor do Dipo (Departamento de Inquéritos Policiais e Corregedoria da Polícia Judiciária da Capital). "As interceptações são cada vez mais frequentes e longas, e a Polícia científica tem grande dificuldade de fazer as transcrições. Exigir a integralidade vai dificultar o trabalho", diz. Segundo ele, boa parte dos diálogos não interessa, "é bobagem".

Na avaliação do desembargador, a mudança deve prejudicar também o trabalho dos juízes. "A avaliação da prova fica mais dificultosa. Serão centenas de páginas do processo somente com a transcrição de horas de gravação que não interessam."

Ele afirma que, no procedimento atual, os advogados, em geral, não são prejudicados. "Se a defesa acredita que o trecho pinçado foi interpretado de forma distorcida, pode apontá-lo ao juiz." Por isso, em sua opinião, alguns casos de cerceamento de defesa não poderiam servir para uma regra geral.

Moraes Pitombo não concorda. Segundo ele, mesmo com o apontamento feito pela defesa, raramente os juízes ouvem os trechos que desmontam a tese da acusação, "até porque é um trabalho árduo". Ele afirma que o maior trabalho que a degravação integral exigirá dos técnicos da Polícia e do Judiciário faz parte da tarefa atribuída a eles pela lei. "Não tenho nenhuma pena do Estado. Se alguém quer levar um cidadão ao tribunal para ser acusado, que o faça como manda a lei. Que se diminua, então, o período das escutas para o que determina a norma."

Segundo Vilardi, a saída será a Polícia e a Justiça passarem a usar softwares de transcrição que acelerem o trabalho. "Nem todo o réu tem condições de arcar com o custo de um equipamento assim, e não se pode limitar a defesa à condição econômica", defende.

Clique aqui para ler o voto do ministro Marco Aurelio.
Clique aqui para ler decisão do ministro Celso de Mello negando liminar.
Clique aqui para ler o pedido de HC
 do advogado Cícero José da Silva.

AP 508

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