Decisão inividual

A autonomia e dignidade na escolha pela vida artificial

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25 de setembro de 2012, 7h15

A tecnologia adia a morte, mas limita o morrer ao ambiente asséptico e frio das UTIs. Foi talvez considerando a lógica compensatória desses tempos, que o Conselho Federal de Medicina promulgou resolução que restitui ao paciente grave, com quadro progressivo e irreversível, a decisão sobre o uso de intervenções e procedimentos invasivos aos quais não deseja ser submetido.

A Diretiva Antecipada de Vontade ou o testamento vital vai além do mérito de respeitar a vontade do paciente: busca normatizar — desde 2009 dorme nos escaninhos da Câmara projeto sobre a questão — e desmistificar pactos reservados e informais há muito celebrados entre pacientes, seus familiares e médicos, especialmente os dois últimos. É de fato um contra-senso que pessoa ativa e consciente do seu existir delegue decisão tão essencial a parentes e representantes legais, constatação que se fortalece ao argumento de que as disposições pessoais adultas sobre o corpo hígido prevalecem às opiniões de familiares e até às orientações médicas.

Apesar de o testamento vital representar avanço compatível com normas consagradas em países que privilegiam a qualidade de vida, a negação da morte e as dicotomias saúde e doença, vida e morte, são heranças culturais fortes. A morte, no imaginário cristão, detém o apanágio da submissão aos desígnios divinos que ora se revelam após longa e paciente espera, ora na interrupção precoce ou inesperada da existência. Não admira o pronunciamento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil ser contra a resolução do Conselho Federal de Medicina. Logo, não devemos esperar compreensão fácil e pronta adesão à Diretiva Antecipada de Vontade por uma população ainda resistente às indispensáveis doações de órgãos e até aos prosaicos testamentos de bens. A adesão ao testamento vital deverá ser precedida de ceticismo, desconfiança e interpretações ambíguas, tal como sucedeu em países que o adotaram.

Embora seja compreensível que mentes condicionadas aos preceitos cristãos resistam em expressar, nos seus prontuários, se desejam ou não ser submetidas nas horas derradeiras a tratamentos medicamentosos ou cirúrgicos dolorosos, ventilação mecânica, nutrição enteral, hemodiálise ou reanimação em caso de parada cardiorrespiratória, não custa lembrá-las de que Karol Wojtyla, o já beatificado João Paulo II, preferiu esperar a morte em casa ao invés do hospital, onde certamente seria submetido a esforços terapêuticos fúteis e aflitivos. Exerceu o direito potestativo de viver e morrer com liberdade e dignidade.

Mas o tema é delicado: envolve o significado que damos à morte e à importância do modo como morremos. Mais ainda: reabre o debate sobre a possibilidade da introdução da eutanásia no país. Matéria que demanda urgência, até para que possamos optar pela santidade da vida mediante a rejeição dos métodos de antecipação/provocação da morte, ou estabelecer os termos em que as escolhas individuais centradas na qualidade da vida serão privilegiadas.

Se a tecnologia prolonga o morrer e adia a morte, por outro lado introduz complexidades na derradeira parte de nossas vidas. Uma das controvérsias é que os limites entre a ortotanásia — uso de procedimentos paliativos ao invés de métodos invasivos de suporte de vida — e a eutanásia nem sempre são nítidos. A fronteira entre não ser mantido vivo e ser morto é amiúde sutilmente cruzada. Há situações em que pacientes terminais ou seus familiares imploram para que os médicos mitiguem as dores lancinantes: como proibir a administração de morfina em doses cada vez mais altas até o ponto em que a morte sobrevém? Como submeter pessoas a tortura ou a tratamento desumano ou degradante, vedação constitucional expressa?

Se agora podemos expressar, nos testamentos vitais, se desejamos ou não ser mantidos vivos artificialmente, não podemos exigir que alguém antecipe a nossa morte. Para aqueles que defendem a santidade da vida a qualquer custo, a suspensão do suporte vital é tão modalidade de eutanásia quanto o suicídio assistido. Outros entendem que a suspensão do esforço terapêutico é licença para uma morte digna. Se a morte não pode ser pensada por quem já se foi, o morrer, enquanto parte integrante da vida, é aberto às possibilidades. Quando viver como se eternos fôssemos não mais é possível, a autonomia e a dignidade têm que ser respeitadas.

Tais polêmicas que envolvem liberdade, dignidade e a ética de decisões de cunho individual e coletivo são ampliadas quando inseridas em alguns dos gravíssimos problemas que devastam a saúde pública e se propagam para muito além dos corredores de postos de saúde e prontos-socorros apinhados de pacientes graves que, eventualmente, são triados para os escassos leitos, quando disponíveis.

Mas suponho ser nos frios recônditos das UTIs que os médicos são mais compelidos aos angustiantes processos decisórios em face de situações-limite e dilemas morais que se repetem a cada plantão. “Escolhas de Sofia” que se contrapõem aos valores da vocação médica. Ou, a arte de salvar e curar insultada e corrompida em prática aviltante, impotente e seletiva. É quando o direito de viver ou morrer deixa de ser potestativo. Insulto tanto à autodeterminação e à dignidade humana quanto à santidade da vida.

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