AP 470

Jurisprudência sobre corrupção pode ser flexibilizada

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1 de setembro de 2012, 7h54

Encerrado o primeiro ciclo de votação no julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, advogados de defesa dos réus e criminalistas que acompanham o julgamento questionam se o Supremo Tribunal Federal, ao decidir pelas primeiras condenações, está ou não flexibilizando a jurisprudência sobre corrupção.

Os temas foram levados ao Plenário da alta corte nas sustentações orais dos advogados e ganharam, então, eco com a divergência aberta por dois ministros — Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli — e com os votos pelas condenações. Debate-se a necessidade de um ato de ofício para se caracterizar o crime de corrupção, a problemática da lavagem de dinheiro, a obrigação do acusador de individualizar condutas ao imputar os tipos penais e o valor de indícios como prova.

“É um pouco cedo para falarmos em mudança de jurisprudência”, afirmou à revista Consultor Jurídico o criminalista Thiago Bottino, professor de Direito Penal da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Direito) do Rio de Janeiro. “Embora a ministra Rosa Weber tenha falado que não é necessário o ato de ofício para caracterizar a corrupção e tenha expressado ainda que o crime de corrupção pode ser formal, mas também material, tendo feito ainda várias considerações em torno do tema, acredito que, no caso concreto que julgaram, estão presentes todos os elementos tradicionais que caracterizam a corrupção", disse.

O criminalista se refere ao voto da ministra Rosa Weber, que ocupou breves 30 minutos na segunda-feira (27/8), quando a ministra falou sobre “delitos de poder” e a “elasticidade sobre a admissão de provas”. “Nos delitos de poder, quanto maior o poder ostentado pelo criminoso, maior a facilidade de esconder o ilícito. Esquemas velados, distribuição de documentos, aliciamento de testemunhas. Disso decorre a maior elasticidade na admissão da prova de acusação”, disse a ministra.

Outro voto que gerou debate foi o do ministro Cezar Peluso, feito na quarta-feira (28/8). Ao pronunciar seu último voto como membro do Supremo Tribunal Federal e ao seguir o relator praticamente na totalidade das condenações, Peluso fez uma defesa do indício como meio de prova, afirmando, desse modo, que as provas indiciais se equivalem às provas diretas. “A atividade lógica do juiz em nada difere daquela do historiador”, disse o ministro, afirmando que “o indício nos ensina alguma coisa sobre o passado”. Peluso observou que não cabe exigir da acusação que prove o que os indícios confirmaram no curso do processo.

Para o ministro, não há hierarquia entre as chamadas provas diretas e o indício. “O sistema processual, não só o processual penal, assevera que a eficácia do indício é a mesma da prova direta ou histórico-representativa”, disse. “Se há fato extraoridinário que foge à conclusão com base na experiência, cabe então à defesa prová-lo. O comportamento ilícito se infere da experiência”, ressaltou Peluso.

Um outro advogado que acompanha o processo, ouvido pela ConJur e que não quis se identificar, afirmou que já é possível perceber uma orientação pela flexibilização dos crimes de corrupção com base no primeiro ciclo de votação do julgamento da Ação Penal 470.

“Uma coisa é afirmar e entender que não é necessário para a configuração e consumação do crime a prática efetiva do ato de ofício. Esse é um entendimento consolidado há décadas. Uma outra coisa, e parece que alguns ministros trilharam este caminho interpretativo, é entender que não se exige para a caracterização da corrupção a vinculação, ainda que apenas teórica, a qualquer ato de ofício", disse o criminalista.

"Basta, assim, que o cidadão, no exercício da função pública ou em razão dela, tenha recebido ou aceitado uma vantagem indevida sem que haja necessidade de vinculação de causa e efeito, mesmo que apenas potencial, a um determinado ato de ofício”, observou. “E mais ainda: sem que esse ato de ofício esteja na esfera de atribuições funcionais do servidor”, observou.

Para o criminalista, ao dispensar da relação entre corruptor e corrompido a vinculação com um potencial ato de ofício, o tribunal dá margem para a alteração de jurisprudência dos crimes de corrupção. “É uma abertura não autorizada pela própria redação do preceito das normas incriminadoras e vedada pelo caráter restrito e irrestrito do Direito Penal, que não permite interpretações extensivas sem que haja uma cláusula que a autorize”, disse o advogado.

O professor Thiago Bottino acredita, contudo, que somente com a evolução do julgamento é que ficará claro se haverá ou não mudança de jurispridência. Para Bottino, quando os ministros passarem a julgar o chamado núcleo político é que o processo ganhará mais complexidade em termos de discussão de jurisprudência. “Essa tese da corrupção que a ministra Rosa Weber começou a anunciar deve repercutir, eventualmente, em mudança de jurisprudência quando os ministros examinarem o caso dos deputados, naquela discussão sobre caixa dois”, diz.

“Com base no caso concreto que eles julgaram até aqui, ainda não há como afirmar que a jurisprudência para corrupção do Supremo mudou ou vai mudar. A ministra [Weber] anunciou que faria umas premissas teóricas em seu voto, mas ainda não as aplicou em julgamento, porque o caso analisado não exigia esse tipo de flexibilização”, disse o criminalista.

Lavagem e direitos fundamentais
Há uma expectativa entre os advogados que acompanham o caso sobre como o Supremo Tribunal Federal irá também se pronunciar sobre o crime de lavagem de dinheiro. O advogado Pierpaolo Bottini, que defende o réu Professor Luizinho, líder do PT na Câmara dos Deputados na época dos acontecimentos descritos na acusação, já havia afirmado da tribuna, durante a fase das sustentações orais, que a decisão do STF será emblemática por conta de poder definir os limites do tipo penal da lavagem de dinheiro no Brasil.

“Esse julgamento assume um caráter emblemático porque aqui se está a definir, talvez pela primeira vez, os limites do tipo penal da lavagem de dinheiro”, disse Bottini na ocasião de sua sustentação oral. “Se esta corte assumir que é possível a lavagem de dinheiro sem a ocultação ou dissimulação, sem uma indicação mínima do tipo penal antecedente, sem a demonstração do dolo, mesmo que eventual, se estará dando ao tipo de lavagem de dinheiro uma abrangência nunca antes imaginada e uma interpretação que certamente será seguida por todas as demais cortes do país”, afirmou.

Criminalistas que acompanham o julgamento disseram à ConJur que o ônus de se ter uma ação penal dessa abrangência julgada por um tribunal constitucional é que há uma tensão inerente entre condenar e se observar direitos fundamentais, e que os segundos podem sair prejudicados em uma eventual mudança de jurisprudência provocada pelo julgamento. “A corte parece disposta a flexibilizar direitos e garantias fundamentais. Os ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes começaram o voto declamando esses postulados constitucionais para, contudo, na sequência, ao meu ver, excepcioná-los, ante o caráter peculiar do caso concreto”, opinou um dos advogados. “Isso é extremamente preocupante. Não se trata de direito de segunda classe, de direito subalterno, que comporta restrição, é outro nível de direito”, disse.

O ministro Celso de Mello iniciou seu voto na quarta-feira (29/8) afirmando que a imposição do ônus penal cabe ao Ministério Público, pois, no sistema de Direito Positivo, é o acusador quem deve apontar a autoria e a materialidade do crime, ao “dissipar ambiguidades e desfazer dados eivados de obscuridade”.

“O processo penal só pode ser concebido e só assim pode ser visto como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu. Não é um instrumento de arbítrio do Estado”, disse o ministro em seu voto. Para o decano da corte, no caso dos réus e dos crimes já julgados na Ação Penal 470, a acusação conseguiu produzir uma “base probatória idônea” que justificou as condenações dos cinco  réus em julgamento naquela fase do processo.

Para o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, que cuida das defesas dos publicitários Duda Mendonça e Zilmar Fernandes, até agora, apenas a posição dos ministros em relação ao crime de lavagem de dinheiro é que gerou alguma preocupação em termos de flexibilização de jurisprudência. “Na questão da lavagem, houve flexibilização no meu ponto de vista. Eu entendo que não havia como falar em dissimulação ou ocultação no caso da esposa de João Paulo Cunha [a mulher do parlamentar foi quem sacou os R$ 50 mil reais repassados a ele], disse Kakay à ConJur. “Tanto é que, no recebimento da denúncia, o ministro Britto e o ministro Gilmar não a tinham acolhido nesse ponto. É necessário ocorrer uma discussão sobre isso, até porque a decisão fará um padrão de jusrisprudência para o país todo”, afirmou.

Para o criminalista, o risco é ocorrer uma banalização do conceito de lavagem de dinheiro a exemplo do que aconteceu, anos atrás, com o conceito de crime de quadrilha. “Houve um momento no Brasil em que tudo virou quadrilha. Todos os processos tinham crime de quadrilha. Eu tenho a preocupação que, a partir de agora, ocorra uma flexibilização e tudo passe a ser lavagem. Porém, esse é só o começo do julgamento, a ministra Rosa ainda não se pronunciou sobre isso e outros enfrentamentos ainda serão feitos. Temos que aguardar”, disse.

Kakay, contudo, apesar da expectativa sobre a posição que os ministros devem assumir no julgamento dos outros itens, diz que ainda é cedo para se falar categoricamente em mudança de jurisprudência. “Houve uma discussão técnica. Tanto que ocorreu a condenação do João Paulo Cunha numa das acusações de peculato, mas não na outra. O voto do ministro Peluso, embora favorável às condenações, foi técnico, ele fez uma análise técnica dos fatos”, observa.

“Condenar ou absolver faz parte do processo. Como advogado, é claro que trabalho pela absolvição, mas quando há um voto técnico, temos que respeitar. O que me preocupa são certas premissas, colocadas em termos de flexibilização de alguns direitos, e aí sim, entendo que o Supremo não deverá, ao final, considerar essas flexibilizações. Algumas são conquistas de décadas na jurisprudência, que fazem parte do Estado Democrático de Direito. Premissas tais como a presunção de inocência e a necessidade de produzir prova para condenar”,  afirma.

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